Resumo: Ao acicate dos “embargos infringentes”, o texto pretende mostrar  como o discurso político insinua a índole cultural da corrupção.

 

Nós apenas baixamos a cabeça

 

Pego a palavra corrupção e a coloco numa sala pequenina, junto com a palavra cultura. Assim: corrupção : cultura. À guisa de cobaias num laboratório de pesquisas.

A ideia é observar como reagem à situação.

A princípio arredias, cada uma pro seu lado, parecem rejeitar a convivência. Mas quando não tem ninguém olhando, começam a trocar afagos e beijinhos. Nessa fase a corrupção sempre toma a iniciativa. Quer porque quer infiltrar-se na cultura.  Depois, o pudor desaparece, a intimidade cresce. E tanto cresce que a cultura acaba permitindo a infiltração.  

Dito de outro modo: de tanto convivermos complacentemente com a corrupção, esta já se insinua na categoria dos imperativos culturais.

É possível que um pedaço de pano se insinue na categoria das manifestações divinas. Para tanto, basta que alguém creia. Não. Não estou falando disso. O que eu defendo aqui é que a corrupção se insinua como  item cultural não pela via da crença, mas da argumentação política.

O forte argumenta: a corrupção faz parte da nossa cultura. E o fraco baixa a cabeça persuadido. 

É claro que o discurso da persuasão não trilha o caminho das formulações exatas, mas decorre de um truque, um ardil, um jogo semiótico também conhecido pelo nome de  mito. Mito moderno, ou burguês, mito de Roland Barthes. Parente remoto do mito clássico de Joseph Campbell, e de Mircea Eliade.

Porém, como seu ancestral, este mito é uma fala. Uma fala que transforma um dado histórico em pura natureza.  

Ao lado das falácias o mito empurra com a barriga, em eterna procrastinação (veja-se a propósito o caso dos “embargos infringentes”) a reabilitação moral do país. Durante certa fase colecionei mitos. Cheguei até a escrever um artigo à conta de um mito que recolhi da boca de um senador do PMDB.

Mas hoje trago um exemplo  felino, recolhido na espontaneidade das conversas informais.

Diz um admirador de Fernando Henrique:

- Desde que o PT passou a governar, a corrupção tomou conta do Brasil.

- Negativo – responde um simpatizante petista.  A corrupção vem dos tempos de Pedro II.

Eis aí o sortilégio do mito.  Não há mais o que discutir. O dado histórico da corrupção hodierna perde-se nas brumas de um estigma atávico.

E assim todo o  lixo produzido e todo o lixo a produzir acomoda-se em nossa cultura como a coisa mais natural do mundo.

Quer dizer: podemos roubar à vontade, sem remorsos, porque esta é a nossa vocação.

Nossa uma ova!  A vocação é dos políticos. O argumento é deles. Nós apenas baixamos a cabeça.