Noite macabra 

 Capítulo 1- Um estranho

Há uma fase em nossas vidas que despendemos boa parte de nossos dias revivendo nossas histórias. No auge dos meus 83 anos, muito bem vividos; estou certa que, fatalmente, cheguei a essa fase. É evidente que nos lembramos de flashes, pequenas cenas desbotadas que se tornaram memoráveis, seja pelo excesso de alegria contido nelas, seja pela tristeza que representam, ou, ainda, pela excentricidade da circunstância.

Por isso, venho a relembrar um fato que me ocorreu quando eu tinha apenas 17 anos de idade e era apenas uma garota, como tantas outras, um pouco desmiolada, deveras sonhadora, e principalmente, muito romântica. Contudo, existia em mim uma outra característica ainda mais peculiar, minha imaginação fértil.

Essa última informação é fundamental para que se compreenda o porquê depois desse fato passei a questionar constantemente se essa minha tal capacidade imaginativa não estaria me arrastando para uma loucura precoce.

A data era 6 de dezembro de 1954 e eu iria à festa de aniversário de uma de minhas amigas. No caminho até sua casa eu me perdi e resolvi pedir uma informação a algum estranho que estivesse por ali.

Um garoto alto, magro, vestido de preto e com aparência melancólica estava parado na esquina seguinte e apesar de achá-lo um pouco estranho e ficar receosa de lhe falar, não me restava outra opção; a rua estava vazia e eu já estava com medo de passar a noite perambulando pela cidade.  Então respirei fundo e fui até lá. Ele pareceu não perceber que eu me aproximava, até que, provavelmente, ouviu meus passos e se virou para me olhar. Não consegui esperar que ele dissesse qualquer coisa e apressadamente falei:

 -Pode me dar uma informação? Estou perdida e eu preciso chegar na Avenida das Flores. O senhor sabe onde fica esse endereço?

Ele me olhou como se me analisasse por um tempo e ainda me encarando, disse:

 -Sim, eu sei onde fica, mas acho que já está muito tarde para uma senhorita andar por aí sozinha. Se me permitir, eu posso acompanhá-la.

Fiquei aflita com a proposta, mas ele não deixava de ter razão, então pensei que não teria perigo deixar que ele me acompanhasse e que eu era uma boba, que só estava com receio por sua aparência exótica. Por fim, aceitei.

No primeiro minuto ficamos caminhando em silêncio, até que ele enfim falou:

 -Avenida das Flores? Eu já estive por lá, não é complicado de chegar.

Eu balancei a cabeça num sinal de concordância e ele voltou a falar: -Mas que tipo de namorado é o seu que deixa uma senhorita andar sozinha por essa cidade, que convenhamos, já não é mais tão segura há tempos?

Respondi automaticamente sem hesitar:

-Não tenho namorado, então tenho que pedir ajuda a estranhos. Eu esperava que ele compreendesse o meu tom bem-humorado e ríssemos juntos, mas não foi o que aconteceu.

Quando já tínhamos andado por umas três ruas, apesar de não conhecer muito bem o caminho, percebi que não estávamos indo para o centro, onde acontecia a festa, então perguntei:

-Não conheço bem o caminho, mas sei que o centro fica para a esquerda e nós estamos indo para a direita, então… - Ele me interrompeu: - Eu a levarei para lá, mas antes eu gostaria de te mostrar uma coisa.

Eu fiquei gelada, pensei em todos os lugares onde ele poderia me levar e tudo que poderia fazer comigo, mas a essa altura mesmo que eu dissesse que não queria ir, se ele fosse um criminoso, me levaria à força. Então respondi:

-Tudo bem, mas é melhor que seja rápido, porque já está bastante tarde, não é mesmo?

Ele acenou com a cabeça concordando e disse:

-Fique tranquila, vai me agradecer por levá-la a esse lugar.

Andamos por mais umas quatro ruas falando sobre algumas coisas. Ele me contou que fazia parte de um grupo, onde as pessoas tinham um jeito peculiar de viver - isso explicava as roupas esquisitas - então fiquei mais tranquila. Também contei sobre minha família e das coisas do meu cotidiano.

De repente ele me interrompeu e falou em um tom de deslumbramento e fascínio:

-Chegamos, senhorita.

Eu olhei para todos os lados, mas não havia nada de novo, só algumas casas como em qualquer outra rua. Porém, no fim da rua se encontrava o cemitério municipal, mas não podia ser lá onde ele me levaria; que pessoa em sã consciência levaria uma estranha para dar um passeio em um cemitério? Se bem que ele não parecia ser uma pessoa normal e esse pensamento me deixou com calafrios.

 

Capítulo 2- Aproximação

Ele me puxou levemente pelo braço e eu fui acompanhando; o que parecia uma maluquice era real. Ele estava me levando ao cemitério e eu estava apavorada, mas o que eu podia fazer? Se eu gritasse, talvez ninguém me ouvisse, porque já era bem tarde da noite e as casas mais próximas já estavam a uma distância consideravelmente grande de nós; se eu tentasse lutar contra ele, também não ia dar em nada, apesar de magro, ele era mais forte do que eu. Então tudo que eu podia fazer era acompanhá-lo e torcer para que depois, ele me levasse à festa como havia prometido. Tentei ficar mais calma, mas diante da situação era bastante difícil.

Quando chegamos, logo na entrada, eu fiquei mais nervosa ainda, já que aquele lugar era macabro demais no meu ponto de vista – e acho que no de todas as pessoas normais também - e a noite, acentuava mais o clima de terror que havia ali. Todavia, para o garoto, aquilo parecia trivial e ele mantinha um semblante totalmente pacífico. Eu poderia jurar que ele demonstrava também um ar de empolgação.

Quando entramos, senti como se o vento tivesse ficado mais gelado e meu coração batia cada vez mais acelerado. Ele olhou para mim e sorriu - o que visivelmente não era um ato corriqueiro - e disse num tom de gozação:

-Está com medo? Eu venho aqui todas as noites, pois esse lugar me traz uma paz interior imensa.

Respondi com a voz um pouco trêmula:

- É bem exótico... Quer dizer, eu não tenho o hábito de vir a cemitérios e também evito a escuridão completa.

Ele fechou o rosto e continuou a caminhar, até que parou diante de uma cova muito bonita e que demonstrava ser cuidada com muito desvelo; era toda azulejada em pisos alternados nas cores branca e preta e coberta com flores que eu nunca havia visto, por isso não pude determinar o tipo; mas a cor era de um roxo bem vivo e uma textura realmente genuína. Além disso, me impressionei com a foto que havia na lápide, pois era a imagem de um homem muito parecido com o garoto que me levara até ali - de certo era algum parente muito próximo - e concluí que, por saudades, ele vinha ao cemitério todas as noites visitá-lo. Tendo chegado a essa conclusão, as coisas tornaram-se mais leves.

Observando-me calmamente, ele falou: - Aqui eu me sinto em casa, é como se eu pertencesse a este lugar. Bem, de uma certa forma, eu pertenço mesmo.

Eu fui completamente arrancada de meus pensamentos com o que ele havia dito e respondi ainda confusa:

-Cada pessoa tem suas crenças e pode melhor avaliar o que lhe traz alguma espécie de consolo.

- Não é como se eu tivesse escolhido isso, é mais como se eu tivesse que aceitar e seguir em frente, de qualquer maneira. - Ele disse em resposta ao meu comentário.

Eu fiquei olhando para ele e refletindo sobre suas palavras, mas não me sentia apta a dizer mais nada, porque, na verdade, não estava certa do que ele queria dizer.

Ficamos em silêncio por vários minutos, durante os quais ele nem parecia estar mais presente ali. Até que, enfim, disse:

- Sabe, me lembrei de uma coisa. Você ainda não me disse seu nome, e nem eu o meu... Meu nome é Oscar, e o seu?

Eu: - Meu nome é Maria Eunice, creio que com isso, estamos devidamente apresentados.

Ele: Maria Eunice, você já teve um sonho que pareceu tão real que quando você acordou ficou em dúvida se aquilo tudo realmente havia acontecido ou se o sonho apenas foi muito intenso?

- Claro que sim – respondi. - Aliás, tenho um sonho corriqueiro, no qual eu estou chorando muito, mas não sei o porquê, e, próxima a mim tem uma multidão de pessoas em círculo, lamentando algo em sussurros. Quando eu me aproximo e entro no círculo, ele está vazio. E então uma mulher se aproxima de mim e me entrega um papel perfumado com uma fragrância extremamente doce e muito familiar, mas o sonho sempre acaba quando eu estou tentando ler o que está escrito no bilhete.

Ele perguntou se aproximando um pouco mais de mim: - O que você acha que está escrito no bilhete?

Acho que é um endereço. - respondi.

Ele me olhou intensamente por bastante tempo como se estivesse pensando no que fazer, até que falou:

- Se me der permissão, eu gostaria de fazer uma coisa que pode parecer precipitada e com certeza será muito atrevimento da minha parte... Mas é como se nós dois só tivéssemos essa noite juntos.

Ele ficou bem próximo do meu rosto e parou, olhou nos meus olhos e eu entendi do que ele estava falando.

Mesmo que eu achasse que aquilo tudo era uma tremenda loucura; o cemitério, a cova, o visual; e agora esse desejo dele de me beijar, considerando que havíamos nos conhecido há pouco mais de uma hora, eu me sentia totalmente envolvida naquela situação, quase como se uma força externa estivesse me guiando; ia além da questão de certo e errado, da precaução e da leviandade, e do meu bom senso absolutamente questionável. Então, lancei a ele um olhar em sinal de concordância e ele se aproximou quase que juntando nossos corpos completamente e depois me beijou com uma enorme suavidade que em nada combinava com aquele visual pesado e com aquele cenário macabro. Foi muito rápido e eu não tive tempo de pensar em coisa alguma, além de me permitir sentir aquela emoção que eu jamais havia experimentado.

Quando ele acabou de me beijar, eu não queria abrir meus olhos, pois não sabia como lidar com a minha vergonha, mas ele tocou o meu rosto com suas mãos e quando abri meus olhos, nós nos olhamos novamente de forma visceral; um olhar que transbordava tudo que o coração estava sentindo. Ficamos abraçados em um silêncio surpreendentemente confortável e eu completamente entregue aquela doce loucura.

 

Capítulo 3 - Mistério

Em algum momento eu devo ter me rendido ao cansaço e adormecido em seus braços, pois acordei com a luz forte do sol das 10h em meu rosto e inconsciente de onde estava. Aos poucos, as memórias da noite anterior foram retornando, então olhei para o lado e vi que já havia algumas pessoas visitando as covas de seus conhecidos, mas olhei para todos os lados e não consegui encontrar quem eu procurava. Onde ele poderia estar? Me levantei meio desorientada e fui andando pelo cemitério em sua busca ou de alguém que me dessa alguma informação sobre seu paradeiro, até que eu avistei um coveiro e caminhei em sua direção.

 -Bom dia, o senhor pode me ajudar? É que eu estava aqui com um amigo e agora ele desapareceu e eu não sei voltar para casa sozinha, então, eu preciso encontrá-lo... Ele é magro, alto e estava vestido de preto - disse eu afobada.

O velho coveiro pareceu ficar tão confuso quanto eu, com as coisas que eu falei, e meio atordoado falou:

-A senhorita está bem? Quer que eu ligue para algum parente seu?

Eu não entendi por que ele estava falando aquilo e logo respondi:

-Não, o senhor não entendeu, eu estou acompanhada, só preciso encontrá-lo...

Ele me interrompeu:

-Desculpe, mas é impossível que a senhorita tenha vindo acompanhada para cá, pois eu vejo todos que passam pela porta de entrada e não vi ninguém com essas características. Além disso, a senhorita não parece estar muito bem... Aliás, como entrou aqui se também não a vi passando pela entrada?

Eu fiquei sem reação, pois não sabia realmente o que dizer. Eu deveria contar que entramos aqui à noite? Bom, na verdade era a única opção que eu tinha naquele momento.

-Acontece que, eu não sei como, meu amigo deu um jeito de entrarmos aqui a noite passada, mas acabei adormecendo e ele desapareceu.

-Olha senhorita, eu sinceramente não sei do que você está falando, mas mesmo se vocês tivessem entrado escondidos aqui à noite, eu teria visto esse seu amigo saindo agora de manhã, pois aqui só tem uma entrada e uma saída.

Eu não sabia mais o que fazer. Então, desorientada dei as costas a ele e retornei a cova que estava quando acordei, na esperança de que ele tivesse voltado para me procurar. Fiquei sentada por um bom tempo lá, mas ninguém apareceu.

Voltei a analisar a cova e realmente era uma das mais bonitas do cemitério, se não a mais bonita, então comecei a ler as coisas escritas na lápide, até que uma delas me pegou de surpresa: o nome na lápide era Marco Antônio Oscar Torres Moreira. Como assim? Me perguntei.

Já não bastava a semelhança física do falecido com o garoto da noite anterior, até o nome era o mesmo? Veio-me, então, uma hipótese à cabeça, mas ela me pareceu tão absurda que me questionei se já não estava ficando louca de vez, como minha mãe sempre falava que eu ficaria por ser curiosa demais.

Resolvi ir embora do cemitério, pois além de não ter explicações para nada do que havia acontecido, eu ainda teria que enfrentar minha mãe, que provavelmente me mataria por ter passado a noite fora. Se hoje em dia isso ainda é algo grave, imagine naquela época. E eu não poderia deixar de me perguntar o que eu falaria para ela. Se nem mesmo eu sabia ao certo o que havia acontecido naquela perturbadora noite.

Quando cheguei a minha casa, todos estavam sentados no sofá consolando mamãe, que estava em prantos. No instante que me viram, o alívio tomou conta de suas expressões, menos mamãe, que parecia não acreditar que eu estava de fato ali na sua frente, sã e salva, e numa mistura de incredulidade com desespero, falou:

-Minha filha, pelo amor de Deus, por onde você andou?

Me sentia muito envergonhada e com remorso pela situação de mamãe, mas tentando acalmá-la, falei:

-Calma mãe, eu estou bem! É que ontem eu estava indo para a festa da Sílvia, conforme tinha te falado, mas no caminho perdi o ânimo e decidi ir à casa de outra amiga, a Mariane. Chegando lá, nós nos empolgamos tanto na conversa que não vimos o tempo passar, então, ficou muito tarde para eu voltar sozinha pra casa e a mãe dela me ofereceu estadia.

-Mas minha filha, você tinha que ter avisado! Os piores pensamentos passaram pela minha cabeça. Nunca mais faça isso, por favor!

Mamãe me abraçou forte e eu vi que todos me olhavam impressionados. Passado o golpe inicial e todo o sermão que eu ouvi merecidamente, eu lembrei que tinha muitas coisas pendentes na minha cabeça, que eu precisava organizar e me despedi de todos:

-Mamãe, eu te peço perdão por tudo novamente, eu nunca mais farei isso, te prometo, mas agora eu estou muito cansada, preciso de um banho e ir para a cama, em minha casa. Agradeço imensamente a todos vocês por fazerem companhia à mamãe.

Deitei-me na minha cama na intenção de que, se fechasse os olhos, surgiria milagrosamente uma explicação para toda aquela loucura. Mas obviamente isso não aconteceu e minha cabeça estava tão pesada que, na realidade, eu mal conseguia raciocinar direito. Fechei meus olhos novamente e senti aquela fragrância doce e inebriante do bilhete do meu sonho recorrente, tomando conta do ambiente inteiro, me elevando para um estado de paz e calmaria tal qual um alucinógeno faria; e me deixei levar, caindo num sono profundo e imperturbável.

Os dias, as semanas, os meses e os anos se passaram, e eu nunca obtive a resposta que eu procurava, mas eu me lembro disso todos os dias. Eu tento me convencer de que foi apenas um sonho, daqueles que parecem tão reais que você se pergunta se realmente aconteceu ou se foi apenas um sonho muito intenso. No fundo eu sei que não foi. Também já admiti a hipótese de que eu possa ter tido uma espécie de surto naquela noite. Porém, a única conclusão a qual eu sempre chego é que essa é uma das melhores memórias que eu tenho e que eu vou levar comigo dessa vida.

Para ser sincera, já faz tempo que eu não espero mais por uma resposta, porque eu já escolhi a versão na qual eu quero acreditar.