NO PÓS-PANDEMIA, 

REAPRENDER A VIVER EM COMUNIDADE

 

Qualquer que seja o ponto a que chegamos,

caminhemos na mesma direção”.

(Fl 3,16)

 

Há uma beleza ímpar a respeito da eclesialidade presente no relato dos Evangelhos Sinóticos sobre quando o Senhor acalmou a tempestade revolta. A cena é bem concreta: os discípulos reunidos na barca, e nela está Jesus. Quando a noite se faz densa e as trevas envolvem o ambiente, a barca e também o coração dos discípulos, inicia-se uma forte tempestade: ventos contrários infundem com violência, a barca balança, tudo indica que está prestes a afundar, e é então, em meio à aflição, que os discípulos se recordaram: Jesus está presente na barca! E por isso clamam-lhe: “Mestre, estamos perecendo e tu não te importas?”. Então o Senhor se levanta, se impõe sobre a embarcação, pronuncia sua Palavra e a tempestade se acalma, os ventos cessam e o mar revolto se tranquiliza.

De fato, toda experiência de discipulado com Cristo pressupõe a experiência constante de enfrentar provações, mas na certeza de que não estamos sós; Ele está presente hoje em sua barca, a Igreja. No leme está o sucessor de Pedro; ministros ordenados conduzem o povo no serviço; os religiosos impulsionam a navegação com suas incessantes orações e obras de caridade; e nós, leigos e leigas remamos, nos colocamos a serviço da Comunidade, ofertamos nossa vida na convivência com os irmãos e irmãs, em resposta ao Batismo que recebemos. E o Senhor Jesus não nos abandona, permanece presente, como a Verdadeira Videira na qual estamos todos unidos (cf. Jo 15,1-8), ainda que não percebamos, ainda que sua presença seja silenciosa, Ele jamais se afastou de sua Igreja, nestes dois séculos de História.

A mais recente provação que abalou não só a barca da Igreja, mas todo mundo, foi sem sombra de dúvidas a Pandemia do novo coronavírus, que ceifou as vidas de milhões de pessoas, sobretudo nos países mais pobres e sem o justo acesso às campanhas devidas de imunização. Colapsos nos sistemas políticos, econômicos e também de saúde, crises intensas, conflitos iminentes, uma humanidade toda tendo escancarada sua fragilidade e impotência diante de tal situação. E para agravar ainda mais toda esta tempestade, nos vimos obrigados ao distanciamento e o isolamento sociais, como que presos em nossas casas e sem muitas escolhas; até nossas Igrejas, a Comunidade, nosso porto seguro, estavam fechadas! Teríamos que, a duras penas, reaprender a ser Igreja em tempos tão atípicos.

Não foram tempos fáceis, e marcados por extrema ausência, saudade, sentimento de perda, e a incerteza de quando poderíamos regressar ao convívio comunitário. Mas o pior passou! Então, nos voltamos ao Cristo que jamais se ausentou da barca da Igreja e do mar do mundo, e clamamos: “Desperta, Senhor! Socorre-nos!” E Deus “esteve ao nosso lado e nos deu forças” (2Tm 4,17), “até aqui nos ajudou o Senhor” (1Sm 7,12). Contudo, um novo desafio nos é imposto: como viver e organizar nossas comunidades no que os especialistas chamam de período pós-pandêmico? De fato, muitos membros de nossas Igrejas não mais retornaram; descobriram e cultivaram uma experiência mais intimista e pessoal da fé, na comodidade de seus sofás e na praticidade de transmissões de TV e lives, que não configuram a sacramentalidade da Igreja e nem o modo católico e universal de viver a fé. Então, com os que nos restaram, como viver em Comunidade agora?

Todavia, não podemos nos esquecer de que todo o mundo foi transformado desde 2020 para cá. Mesmo os que não carregam em si as sequelas do vírus ou do processo de internação, ainda assim trazem consigo feridas causadas por perdas, por mudanças de rotina e comportamento, por crises, desempregos, penúrias e traumas de todo tipo. Fomos todos afetados, não se pode negar! Regressamos com muitas saudades, nosso coração se enche de alegria, caminhamos esperançosos; mas ainda mancamos perante os novos desafios.

Na verdade, acredito que todos nos equivocamos neste retorno, e confio que ainda haja como melhorar. Sem perceber, na ânsia, na pressa, na saudade por regressar às nossas atividades e compromissos, talvez tenhamos focado demasiadamente nas ações e deixado de lado o fato de que nossas Comunidades são formadas por pessoas e para pessoas. Não são as atividades que são conduzidas a Cristo, mas as pessoas; não é com as demandas que Jesus busca se encontrar, mas com gente, com histórias, com corações. E são essas pessoas que continuamente convivem conosco que merecem um olhar mais humano de nossa identidade eclesial.

Nossos agentes, grupos e pastorais regressam desta tempestade com sua sensibilidade à flor da pele. Estamos todos exaustos. Foram tempos atípicos, de distanciamento, cercados de perdas. O psicológico de todos está abalado, está frágil. Antes de reconduzir serviços, há que olhemos para os servidores, as pessoas que conosco partilham a vida e a missão, e que precisam ser ouvidas, acolhidas, amparadas. Se o pós-pandemia é um tempo de recomeço, então, recomecemos! No sentido de reviver o mesmo abraço que nos fez encontrar na comunidade um lar e nos irmãos uma família, recuperar a primeira acolhida, regressar ao primeiro amor (cf. Ap 2,3-5). Se não partirmos do começo, vamos acumulando afazeres e atividades realizadas automaticamente, e vamos nos sobrecarregando, acumulando obrigações e pesos, sem nos aliviar do que, por conta da pandemia, vem pesando nossas mentes e corações.

Conflitos são inevitáveis; a beleza da diversidade pressupõe também divergências. Contudo, é preciso que reaprendamos a viver em comunidade, que trabalhemos as feridas que a pandemia nos causou, para redescobrir a beleza que reside na convivência com os irmãos. A comunidade é nossa casa, este é o nosso lugar.

Uma coisa é fato: viver em comunidade não é fácil! Porque lidar com gente não é nada fácil, e tudo que é próprio do ser humano está inevitavelmente presente também na vivência eclesial. Somos, de fato, Igreja santa composta de pecadores, e nossos membros, por mais capazes e bem formados que sejam, carregam em si e não conseguem esconder suas limitações e revezes, seus cansaços e problemas. E aí está o desafio: diante de tudo isso, viver como irmãos!

Justamente o que torna tão desafiadora e ao mesmo tempo tão maravilhosa a vida em comunidade é que ela não é nada fácil. E isto porque é formada por pessoas que unidas “por um só espírito, um só Batismo” (Ef 4,5), são diferentes entre si, visto “que há um só corpo, mas com diversidade de membros” (1Cor 12,12). Formamos uma comunidade diversa; nossas comunidades sempre são diversas. A igreja é universal mas não é e não deseja ser uniforme. De fato, assim rezamos ao Senhor na liturgia: “Vossa Igreja, reunida pela unidade da Trindade, é para o mundo o corpo de Cristo e templo do Espírito Santo, para a glória da vossa sabedoria”[1].

A comunidade é lugar de gente, é casa de discípulos que juntos fazem um caminho. O caminho é um só, é Cristo (Jo 14,6), mas não podemos desconsiderar que cada pessoa caminha em seu ritmo, com seus passos, ao lado de diferentes companheiros de viagem. Trilhamos a mesma estrada, seguimos o mesmo destino, mas cada um leva sua própria mochila, se apoia em seu cajado, em sua história, e na diversidade de cada irmão, tornamos a comunidade colorida, completa, repleta de dons e serviços. “Há diversidade de dons mas o mesmo é o espírito. Há diversidade de ministérios, mas o mesmo é o Senhor. Há diferentes atividades, mas um mesmo Deus que realiza todas as coisas em todos” (1Cor 12,4-6).

Quem se arrisca a viver em comunidade (porque é um ato de coragem, é para pessoas fortes), deve aprender a acolher no outro também a partilha de um modo diferente e pessoal de ser católico, de ser comunhão. O outro é também um chão sagrado, para o qual eu devo retirar as minhas sandálias e adentrar com toda a reverência; o irmão de comunidade também arde a sarça da presença do Senhor (cf. Ex 3,2-5).

E acima de tudo, aprendamos a perdoar! Todos na comunidade temos dias difíceis. Muitas vezes não sabemos o que o outro passa em casa e o que lhe aperta o coração durante seus serviços ordinários conosco em nossos grupos e pastorais. Quantas histórias se escondem nos sorrisos, ou mesmo na ausência dele. Quantas dificuldades são camufladas nos bom-dias que recebemos, e também naqueles que não recebemos de pessoas que, podem até parecer mal-educadas, mas só Deus sabe o que passam e enfrentam. Antes de nos sentarmos na cátedra de nossas certezas para proferir nossos julgamentos, nos desarmemos num abraço, perdoemos sempre, mesmo que tenhamos a razão; e como família, nos aproximemos mais do Pai nosso: “Sede misericordiosos, como também o vosso Pai Celeste é misericordioso” (Lc 6,36). Perdoemos sempre; não porque somos capazes e conseguimos por nossas forças, mas porque Cristo já perdoou o que em nós não é digno de perdão. Façamos por Ele e vamos aos poucos assumindo em nós os mesmos sentimentos de Jesus (cf. Fl 2,5).

Enfim, diante de tantos desafios e com tanto para fazer; ainda que cansados e tão fragilizados, não deixemos de caminhar, sigamos em frente, sempre juntos, pois Jesus caminha ao nosso lado, faz o nosso coração arder, e nos abre os olhos ao explicar a Palavra e partir o Pão (cf. Lc 24,13-35). “Quem nos separará do amor de Cristo? Tribulação? Angústia? [Pandemia?] Nada será capaz de nos separar do amor de Deus por nós, manifestado em Cristo Jesus, nosso Senhor. Em tudo isso, somos mais que vencedores, graças àquele que nos amou!” (cf. Rm 8,31-39).

É tempo de respirar, de revigorar nossas forças, tratando nossos traumas e cuidando de nossas fragilidades e sensibilidades. Que, diante dos desafios, não nos esqueçamos de que o sol nasce todos os dias, há sempre um recomeço, e o que hoje foi conflito, amanhã volta a ser abraço, perdão, reencontro e fraternidade. Seja esta quaresma um grande deserto de encontro com o Senhor e de vitória sobre as tentações (cf. Mt 4,1-11). Permitamos que Ele nos transfigure (Mt 17,1-9), que venha em socorro de nossa sede (Jo 4,5-42), abra nossos olhos (Jo 9,1-41), nos tire da sepultura e nos faça viver (Jo 11,1-45).

Irmãos e irmãs, “qualquer que seja o ponto a que chegamos, caminhemos na mesma direção” (Fl 3,16). A Páscoa se aproxima. A libertação e a vitória já fazem brilhar sobre nós sua luz, deixemo-nos alcançar. Que a Senhora das Dores, que diante da cruz permaneceu em pé, interceda por nós, seque nossas lágrimas e nos conduza ao sepulcro vazio, para que participemos da vitória de nosso Senhor Jesus Cristo.

Se a pandemia foi uma tempestade tão terrível, maior é a força de nosso Deus, que cessa os ventos e devolve a paz. Busquemos nela a superação dos desafios e recomecemos. Reaprendamos a viver em comunidade. É tempo de ressuscitar!

 

Douglas Diego Palmeira Rocha.

Reunião do Conselho de Pastoral Paroquial.

Paróquia Nossa Senhora do Patrocínio.

Monte Mor, 14 de março de 2023.

 

 

[1] Prefácio dos Domingos do Tempo Comum VIII