Nietzsche: Humano, demasiado humano

Por Jacot Werner Stein | 10/03/2020 | Filosofia

HUMANO, DEMASIADO HUMANO
1. Um livro para espíritos livres (1.878)
2. Opiniões e sentenças diversas (1.879)
3. O andarilho e sua sombra (1.880)

0. Humano, demasiado humano [Menschlichs, Allzumenschliches] (1878) de Friedrich W. Nietzsche (1844-1900) reunem-se sobre este mesmo título três obras: o primeiro volume, com subítulo "Um livro para espíritos livres" [Ein Buch für freie Geister]; e o segundo volume reunem duas obras em uma uma: Opiniões e sentenças diversas [Vermischte Meinungen und Sprüch] (1879) e O andarilho e sua sombra [Der Wanderer und sein Schatten] (1880). 

Humano, demasiado humano é o monumento de uma crise. Ele se proclama um livro para espíritos 'livres': quase cada frase, ali, expressa uma vitória -- com ele me libertei do que 'não pertencia' à minha natureza. (...) [EH/EH, Humano, demasiado humano com duas continuações, §1]
Os começos deste livro situam-se nas semanas do primeiro festival de Bayreuth; uma profunda estranheza em relação a tudo o que me cercava é um de seus pressupostos. Quem tem ideia das visões que já então me haviam cruzado o caminho pode imaginar o que eu sentia, ao acordar uma dia em Beyreuth. Inteiramente como se sonhasse... Onde estava afinal? (...) [EH/EH, Humano, demasiado humano com duas continuações, §2]
O que em mim então se decidiu não era uma ruptura com Wagner -- eu percebi um total desvio de meu instinto, do qual um desacerto particular, fosse ele Wagner ou a cátedra da Basileia, era apenas um sinal. Uma 'impaciência' comigo mesmo me tomou; vi que era hora de refletir, retornar a mim. (...) [EH/EH, Humano, demasiado humano com duas continuações, §3]
Naquela época, meu instinto decidiu-se inflexível pelo fim daquele ceder, seguir, confundir-se com outros. Qualquer espécie de vida, as condições mais desfavoráveis, doença, pobreza -- tudo me pareceu preferível àquela indigna "falta de si", na qual havia caído por ignorância, por 'juventude', e na qual havia depois permanecido por letargia, pelo chamado "sentimento do dever". (...) [EH/EH, Humano, demasiado humano com duas continuações, §4]
Humano, demasiado humano, este monumento de uma rigorosa disciplina de si, com a qual dei um brusco fim a todo "embuste superior", "idealismo", "sentimento belo" e outras feminilidades de que fora contagiado, foi redigido no principal em Sorrento; recebeu sua conclusão e sua forma definitiva em um inverno na Basileia, sob condições bem mais desfavoráveis que em Sorrento. No fundo é o sr. Peter Gast, então na Universidade da Basileia, e a mim muito afeiçoado, quem tem este livro na consciência. Eu ditava, a cabeça enfaixada e dolorida, ele escrevia, e corrigia também -- ele foi, no fundo, o verdadeiro escritor; eu fui apenas o autor. (...) [EH/EH, Humano, demasiado humano com duas continuações, §5]
O modo como eu pensava então (1876) sobre mim mesmo, com que tremenda segurança eu tinha em mãos minha tarefa e o que nela er histórico-universal -- disso o livro inteiro, mas sobretudo uma passagem bem explícita, dá testemunho: apenas, com a astúcia que me é instintiva, também ali contornei novamente a palavrinha "eu", e dessa vez não foi Schopenhauer ou Wagner, mas um dos meus amigos, o excelente dr. Paul Rée, a quem aureolei com glória histórico-universal -- felizmente, uma criatura muito fina para... (...) [EH/EH, Humano, demasiado humano com duas continuações, §6]

1. Humano, demasiado humano é o livro em que Nietzsche toma coragem para se emancipar. Com o primeiro volume, publicado em 1878, Nietzsche decreta a sua independência intelectual, libertando-se de Schopenahuer, de Wagner, da metafísica, do idealismo, do romantismo, enfim, de tudo o que não fazia parte de sua índole. Nesse sentido, as considerações feitas em retrospectiva por Nietzsche sobre essa obra -- nos prefácios de 1886 e em Ecce Homo --, considerações que veiculam a tese do reencontro consigo mesmo, ao invés de ruptura intempestiva, não devem ser lidas tão somente como reflexos de uma manobra egocêntrica que busca, oportunamente, deixar um autor mais confiável e palatável aso seus leitores. Pois não estamos diante da gestação de uma 'nova fase', mas de uma decisão de tornar público o que já se encontrava em estado latente numa enorme massa de anotações privadas. O enaltecimento dos pontos de vista das ciências naturais, da teoria do conhecimento e da filosofia da linguagem, do realismo, do criticismo e do ceticismo -- os pontos de vista das ciências naturais, da teoria do conhecimento dos pontos de vista norteadores de Humano, demasiado humano --, permeia grande parte do espírito nietzschiano entre o final da década de 1860 e início de 1870. Além do mais, essa obra não somente corrobora posicionamentos filosóficos que já se encontravam praticamente prontos, mas confere também organização à produção que lhe sucede, caucionando um todo unificado e coerente. Nietzsche almejava publicar Humano, demasiado humano, incluindo seus apêndices, com Aurora e A gaia ciência numa única edição em dois volumes que se chamaria, num primeiro momento, "Vademecum Vadetecum", e, depois, "A Relha do Arado"; ele também considerava os livros Genealogia da Moral e Para além de Bem e Mal enquanto retomadas da obra de 1878. Assim, Humano, demasiado humano não representa exatamente uma mudança súbita e pontual provocada pelo acúmulo de vicissitudes, como as experiências das andanças em Sorrento, os diálogos com Paul Rée ou o adoecimento. Com efeito, é o propagandista da causa de Bayreuth, que toma a palavra em O Nascimento da Tragédia e as Considerações Extemporâneas, um personagem moldado pelas expectativas de um público bastante peculiar, que deve ser visto como um tipo de desvio inesperado de um caminho que estava sendo trilhado. Perante esse cenário, o mais acertado seria acolher o desejo expresso por Nietzsche ao seu editor de publicar "Humano, demasiado humano" sob o pseudônimo de Bernhard Cron não como um desejo de fugir de si, mas o inverso: tratar-se-ia de uma estratégia para escapar de um nome banalizado que somente referendava as idiossincrasias do wagnerianismo, ou seja, daquilo que não lhe pertencia. 

Defeito hereditário dos filósofos. -- Todos os filósofos têm em si o defeito comum de partirem do homem do presente e acreditarem chegar ao alvo por uma análise dele. Sem querer, paira diante deles "o homem", como uma 'aeterna veritas', como algo que permanece igual em todo o torvelinho, como uma medida segura das coisas. Tudo o que o filósofo enuncia sobre o homem, entretanto, nada mais é, no fundo, do que um testemunho sobre o homem de um espaço de tempo 'muito limitado'. Falta de sentido histórico é o defeito hereditário de todos os filósofos; muitos chegam a tomar, despercebidamente, a mais jovem das configurações do homem, tal como surgiu sob a pressão de determinadas religiões, e até mesmo de determinados acontecimentos políticos, como a forma firme de que se tem de partir. Não querem aprender que o homem veio a ser, que até mesmo a faculdade de conhecimento veio a ser; enquanto alguns dele s chegam a fazer com que o mundo inteiro se urda a partir dessa faculdade de conhecimento. -- Ora, 'tudo o que é essencial' no desenvolvimento humano transcorreu em tempos primordiais, bem antes desses quatro mil anos que conhecemos mais ou menos; nestes pode ser que o homem não se tenha alterado muito mais. Mas o filósofo vê "instintos" no homem do presente e admite que estes fazem parte dos fatos inalteráveis do homem e nessa medida podem fornecer uma chave para o antendimento do mundo em geral: a teologia inteira está edificada sobre o falar-se do homem dos últimos quatro milênios como de um 'eterno', em direção ao qual todas as coisas do mundo desde seu início tenderiam naturalmente. Mas tudo veio a ser; 'não há fatos eternos': assim como não há verdades absolutas. -- Portanto, o 'filosofar histórico' é necessário de agora em diante e, com ele, a virtude da modéstia. [MAI/HHI, §2]

2. É em Humano, demasiado humano que, portanto, Nietzsche traz a público a 'sua' filosofia. O nome dessa filosofia é 'filosofia histórica'. Em antagonismo à filosofia metafísica, a filosofia histórica tem como seu traço distintivo a primazia conferida ao vir-a-ser em detrimento do ser, ao 'sentido histórico' em detrimento do suprahistórico. Nietzsche torna público, nesse momento, a sua descoberta, realizada entre 1872-1873 em escritos não publicados, de que a realidade do tempo ou do vir-a-ser é inconteste, o que provoca o desmoronamento do edifício dos filósofos, sustentado pela metafísica e sua 'ciência do ser'. Essa nova filosofia evidencia que a 'necessidade metafísica' propalada pelos filósofos, como Schopenhauer, não é uma 'conditio sine qua non' da atividade filosófica, podendo ser enfraquecida e superada. E mesmo que a existência de um mundo metafísico não possa ser refutada de forma peremptória, o fato é que esse mundo nos seria inacessível -- tanto as tentativas de se revelar a coisa-em-si pelo condicionado, quanto pela certeza imediata da lei lógica do princípio da identidade, são infrutíferas.

Questões fundamentais da metafísica. -- Se alguma vez a história da gênese do pensamento for escrita, também a seguinte proposição de um lógico eminente estará nela, iluminada por uma nova luz: "A lei universal originária, para o sujeito cognoscente, consiste na necessidade interior de reconhecer cada objeto em si, em sua essência própria, como idêntico consigo mesmo, portanto como existindo por si e, no fundo, permanecendo constantemente igual e imutável, em suma, como uma substância". Mesmo essa lei, que aqui é denominada "originária", veio a ser: algum dia será mostrado como, nos organismos inferiores, essa propensão surge pouco a pouco: como os embotados olhos de toupeira dessas organizações, inicialmente, nada mais viam do que sempre o mesmo; como em seguida, quando as diferentes emoções de prazer e desprazer se tornam perceptíveis, pouco a pouco são distinguidas substâncias diferentes, mas cada uma com 'um' atributo, isto é, uma única referência a um tal organismo. -- O primeiro grau do [pensamento] lógico é o juízo: cuja essência consiste, segundo a afirmação dos melhores lógicos, na crença. Na base de toda crença está a 'sensação do agradável ou doloroso' em referência ao sujeito da sensação. Uma nova e terceira sensação, como resultante das duas sensações singulares precedentes, é o juízo em sua forma mais inferior. -- A nós seres orgânicos nada interessa originariamente em cada coisa, a não ser sua 'relação conosco' em referência a prazer e dor. Entre os momentos em que tomamos consciência dessa referência, os estados da sensação, estão os de repouso, de não-sensação: ali o mundo e cada coisa são para nós sem interesse, não notamos neles nenhuma alteração (como ainda hoje alguém intensamente interessado não nota quando alguém passa por ele). Para as plantas, todas as coisas costumam ser calmas, eternas, cada coisa igual a si mesma. Do período dos organismos inferiores foi legada ao homem a crença de que há coisas 'iguais' (somente a experiência instruída pela mais alta ciência contradiz essa proposição). Talvez a crença primordial de todo ser orgânico, desde o início, seja até mesmo que todo o restante do mundo é um e imóvel. -- O que está mais distante daquele grau primordial do [pensamento] lógico é o pensamento da 'causalidade': até hoje pensamos ainda, no fundo, que todas as sensações e ações são atos da vontade livre; se o indivíduo que sente considera a si mesmo, toma cada sensação, cada alteração, por algo 'isolado', isto é, incondicionado, desconexo: emerge de nós, sem ligação com o anterior ou o posterior. Temos fome, mas originariamente não pensamos que o organismo quer ser conservado, e esse sentimento parece fazer-se sentir 'sem fundamento e fim', isola-se e se toma por 'arbitrário'. Portanto: a crença na liberdade da vontade é um erro originário comum a todo ser orgânico, tão antigo que existe desde que existem nele as emoções lógicas; a crença em substâncias incondicionadas e em coisas iguais é, do mesmo modo, um erro originário, igualmente antigo, de todo ser orgânico. Mas, na medida em que toda metafísica se tem dedicado principalmente à substância e à liberdade da vontade, pode-se designá-la como a ciência que trata dos erros fundamentais do homem -- mas, no entanto, como se fossem verdades fundamentais. [MAI/HHI, §18]

3. Far-se-á notar os efeitos dessa destruição da antiga filosofia, a filosofia perene, primordialmente nos horizontes metodológico e formal. Em sendo o vir-a-ser a única realidade acessível do filósofo, isso significa que se deve partir do concreto, da experiência, ao invés da especulação conceitual, fazendo com que o método historicista, fecundado pelo indutivismo dos cientistas naturais, seja eleito como sendo aquele gnoseologicamente mais promissor. Isso não significa por certo, que a perspectiva científica seja desprovida de erros. Ainda assim, o caminho da ciência é o mais vantajoso por repreender a ociosidade do intelecto ao invariavelmente privilegiar a mudança no lugar da permanência.

O erro sobre a vida necessário à vida. -- Toda crença no valor e dignidade da vida repousa sobre pensamento impuro; só é possível porque a simpatia pela vida e sofrimento universal da humanidade é muito fracamente desenvolvida no indivíduo. Mesmo os homens mais raros, que de modo geral pensam além de si mesmos, não captam no olho essa vida universal, mas partes delimitadas dela. Quem sabe dirigir seu olho principalmente a exceções, quero dizer, aos talentos superiores e às almas ricas, quem toma seu surgimento por alvo de todo o desenvolvimento do mundo e se alegra com suas obras, pode então acreditar no valor da vida, porque, com efeito, 'deixa de ver' os outros homens: portanto, pensa impuramente. E, do mesmo modo, quem capta no olho todos os homens, mas só leva em conta neles 'um' gênero de impulsos, os menos egoístas, e os desculpa no tocante aos outros impulsos: pode então, mais uma vez, esperar algo da humanidade em seu todo e nessa medida acreditar no valor da vida: portanto, também nesse caso, por impureza de pensamento. Mas quem procede de um modo ou do outro é sempre, ao proceder assim, uma 'excessão' entre os homens. Ora, precisamente a maioria dos homens suporta a vida sem resmungar demais, e com isso 'acredita' no valor da existência, mas precisamente porque cada qual só quer e afirma a si mesmo, e não sai de si como aquelas exceções: todo extrapessoal, para eles, ou não é perceptível ou o é, no máximo, como uma fraca sombra. Portanto, somente nisto repousa o valor da vida para o homem comum, cotidiano: ele se dá mais importância do que ao mundo. A grande falta de fantasia de que sofre faz com não possa sentir-se dentre de outos seres e, por isso, ele toma parte o menos possível em seu destino e sofrimento. 'Quem', ao contrário, pudesse efetivamente tomar parte neles haveria de desesperar do valor da vida; se conseguisse captar em si a consciência total da humanidade e senti-la, ele sucumbiria, amaldiçoando a existência -- pois a humanidade no todo não tem 'nenhum' alvo e, consequentemente, o homem, ao considerar o decurso inteiro, não pode encontrar nele seu consolo e trégua, mas seus desespero. Se vê em tudo o que faz a falta de finalidade última do homem, seu próprio agir adquire a seus olhos o caráter do esbanjamento. Mas sentir-se, como humanidade (e não somente como indivíduo), tão 'esbanjado' como vemos a florescência isolada ser esbanjada pela natureza, é um sentimento acima de todos os sentimentos. -- Mas quem é capaz dele? Certamente apenas um poeta: e poetas sabem sempre consolar-se. [MAI/HHI, §33]

4. Será também devido a essa centralidade do vir-a-ser que, pela primeira vez, Nietzsche adota, em "Humano, demasiado humano", os aforismos enquanto veículos para transmitir as suas posições. Enquanto a filosofia metafísica apresenta sistemas, imobilizando a tarefa do pensamento, a filosofia histórica vê a si mesma como uma filosofia em vir-a-ser, o que significa que, em concordância com o espírito hipotético da ciência, as suas verdades são provisórias e sujeitas a constantes ajustes. Nietzsche supõe existir uma dissimetria entre o plano dos signos (estático) e o do pensamento (processual), de tal modo que os aforismos devem ter como finalidade atrair os leitores para o horizonte da fluidez através de sua incompletude -- é o incompleto que motiva o leitor a continuar pensando.

Os tiranos do espírito. -- Somente onde incide o raio do mito a vida grega brilha; de resto, é obscura. Ora, os filósofos gregos se despojam justamente desse mito: não é como se quisessem sair da luz do sol para se pôr na sombra, na obscuridade? Mas nenhuma planta evita a luz; no fundo, aqueles filósofos buscavam somente um sol 'mais claro', o mito para eles não era puro, não era luminoso o bastante. Encontravam essa luz em seu conhecimento, naquilo que cada um deles denominava sua "verdade". Mas naquele tempo o conhecimento tinha um esplendor ainda maior; era jovem ainda e ainda sabia pouco de todas as dificuldades e perigos de suas sendas; ainda podia esperar chegar com um único salto ao centro de todo ser e de lá resolver o enigma do mundo. Esses filósofos tinham uma robusta crença em si e em sua "verdade" e com ela derrubavam todos os seus vizinhos e predescessores: cada um deles era um combativo e violento 'tirano'. Talvez a felicidade de acreditar na posse da verdade nunca foi maior no mundo, mas também nunca foi maior a dureza, a arrogância, o caráter tirânico e maldoso de uma tal crença. Eram tiranos, eram portanto aquilo que todo grego queria ser e que todo grego era, quando 'podia' ser. Talvez apenas Sólon constitua uma excessão; em seus poemas ele diz como desdenhou a tirania pessoal. Mas o fazia por amor à sua obra, à sua legislação; e ser legislador é uma forma sublimada de tirania. Até mesmo Parmênides ditava leis, assim como também Pitágoras e Empédocles; Anaximandro fundou uma cidade. Platão era o desejo encarnado de se tornar o supremo legislador filosófico e fundador de Estados; parece ter sofrido pavorosamente com o não-cumprimento de sua essência, e sua alma, perto do fim, parecia cheia da mais negra bílis. Quanto mais os filósofos gregos perdiam em potência, mais sofriam interiormente dessa biliosidade e malevolência; já quando as diferentes seitas defendiam suas verdades nas ruas, as almas de todos esses pretendentes da verdade estavam totalmente encharcadas de ciúme e espuma, o elemento tirânico raivava agora como veneno em seu próprio corpo. Esses muitos pequenos tiranos teriam podido comer-se crus; não havia mais nenhuma centelha de amor e demasiaod pouca alegria por seu próprio conhecimento restava neles. -- Por toda parte vale a proposição: os tiranos, o mais das vezes, são assassinados, e sua posteridade tem vida curta -- e vale também para os tiranos do espírito. Sua história é curta, violenta, seu efeito se interrompe subitamente. Quase de todos os grandes helenos se pode dizer que parecem ter chegado tarde demais, assim de Ésquilo, de Píndaro, de Demóstenes, de Tucídides; uma geração depois deles -- e está sempre tudo acabado. Isto é o que há de tempestuoso e inquietante na história grega. Agora, por certo, admira-se o evangelho da tartaruga. Pensar historicamente significa agora o mesmo que pensar que em todos os tempos a história teria sido feita segundo o proposição: "o menos possível no tempo mais longo possível!". Ai, a história grega corre tão rapidamente! Nunca mais se viveu tão perdulariamente, tão sem medida. Não posso me convencer de que a história dos gregos tenha tomado aquele curso 'natural' que é tão celebrado nela. Eles tinham talentos demasiado múltiplos para serem gradativos daquela maneira passo a passo da tartaruga na competição com Aquiles: e é isso que se denomina desenvolvimento natural. Entre os gregos tudo avança depressa, mas recua igualmente depressa; o movimento da máquina inteira é tão intenso que uma única pedra lançada em suas engrenagens a faz estalar. Uma tal pedra era, por exemplo, Sócrates; em uma noite, o desenvolvimento da ciência filosófica, tão maravilhosamente regular até então, mas sem dúvida demasiado acelerado, foi destruído. Não é ocioso perguntar se Platão, se tivesse permanecido livre do enfeitiçamente socrático, não teria encontrado um tipo ainda superior do homem filosófico, que para nós está perdido para sempre. Vemos, nos tempos anteriores a ele, como em uma oficina de esultor, tais tipos. O sexto e o quinto séculos, entretanto, parecem prometer ainda mais e mais alto do que eles próprios produziram; mas ficaram na promessa e no anúncio. E no entanto dificilmente há uma perda mais grave do que a perda de um tipo, de uma nova, suprema, até então ignorada, 'possibilidade de vida filosófica'. Mesmo dos tipos mais antigos a maioria foi mal transmitida pela tradição; todos os filósofos de Tales a Demócrito me parecem extraordinariamente difíceis de reconhecer; mas quem é capaz de recriar essas figuras move-se entre imagens do mais poderoso e puro dos tipos. Essa aptidão é, sem dúvida, rara, falta até mesmo aos gregos posteriores que se ocuparam com o estudo da filosofia mais antiga; Aristóteles, sobretudo, parece não ter seus olhos na cabeça quando está diante dos filósofos mencionados. E, assim, é como se esses esplêndidos filósofos tivessem vivido em vão, ou como se somente devessem preparar os grupos sequiosos de polêmica e de discurso das escolas socráticas. Há aqui, como foi dito, uma lacuna, uma quebra no desenvolvimento; alguma grande infelicidade deve ter ocorrido, e a única estátua em que poderiam ser reconhecidos o sentido e o fim desse grande exercício prévio de escultura quebrou-se ou não deu certo: o que propriamente ocorreu, permaneceu para sempre um segredo do oficina. -- Aquilo que aconteceu entre os gregos -- que cada grande pensador, na crença de ser possuidor da verdade absoluta, tornou-se tirano, de tal modo que também a história do espírito, entre os gregos, adquiriu aquele caráter violento, precipitado e perigoso que sua história política mostra --, essa espécie de acontecimento não se esgotou com isso: muita coisa igual ocorreu até o tempo mais moderno, embora cada vez mais raramente e, agora, dificilmente com a consciência ingênua e pura dos filósofos gregos. Pois, no todo, o ensinamento oposto e o ceticismo falam agora muito poderosamente, alto demais. O período dos tiranos do espírito passou. Nas esferas da cultura superior terá de haver sempre, sem dúvida, um domínio -- mas esse domínio, de agora em diante, está nas mãos dos 'oligarcas do espírito'. Eles formam, à despeito de toda separação espacial e política, uma sociedade solidária, cujos membros se 'conhecem' e se 'reconhecem', sejam quais forem as estimativas favoráveis e desfavoráveis que a opinião pública e os juízos dos escritores do dia e do tempo que atuam sobre a massa possam pôr em circulação. A superioridade intelectual, que antes separava e inimizava, costuma agora 'ligar': como poderiam os indivíduos afirmar a si mesmos e em sua própria rota andar pela vida contra todas a correntezas, se não vissem seus semelhantes, aqui e ali, vivendo sob condições iguais e se não agarrassem suas mãos, em combate, tanto contra o caráter oclocrático do semi-espírito e da semicultura, quanto contra as ocasionais tentativas de, com o auxílio da atuação das massas, erigir uma tirania? Os oligarcas são necessários um ao outro, têm uns nos outros sua melhor alegria, entendem seus sinais distintivos -- mas, apesar disso, cada um deles é livre, combate e vence em 'seu' lugar e prefere sucumbir do que se submeter. [MAI/HHI, §261]

5. É, assim, desde essa perspectiva filosófica heterodoxa, que Nietzsche elege o grande objeto de investigação de Humano, demasiado humano: o homem. É o próprio Nietzsche quem revela, numa carta endereçada a Cosima e Richard Wagner no início de 1878, que esse livro expressa os seus sentimentos mais íntimos acerca do homem e das coisas. Dessa forma, pode-se dizer que essa obra é um tratado de 'antropologia filosófica', mas de uma antropologia deveras muito distinta daquela disseminada pela tradição metafísica. Pois enquanto os filósofos costumam apreender o homem como uma verdade eterna, Nietzsche aponta para a historicidade que se oculta por detrás dessas afirmações. Quer dizer, os filósofos alienam-se de sua própria historicidade, ignorando que aquilo que falam sobre o homem pertence a um momento particular do tempo. Para desfazer essa ilusão, Nietzsche recorre à 'observação psicológica', inspirada nos moralistas franceses, e também a investigações históricas cientificamente respaldadas, o que inclui estudos etnográficos e naturalistas. O método da história comparada, empreendido no campo etnológico, mostra, de seu lado, de que maneira a imagem do homem atual foi, no essencial, moldada em tempos primitivos; estudos biológicos revelam, por sua vez, que o homem representa apenas um período no interior da evolução dos animais. Logo, alheios ao sentido histórico, ao ceticismo e à desconfiança que move o espírito científico, os filósofos foram ludibriados pela imagem do homem destacado da natureza e do tempo, não reconhecendo que, com efeito, o homem 'veio a ser', mesmo que ele tenha mudado pouco nos últimos quantro mial anos.

Convicção é a crença de estar, em algum ponto do conhecimento, na posse da verdade incondicionada. Essa crença pressupõe, portanto, que há verdades incondicionadas; do mesmo modo, que foram encontrados aqueles métodos perfeitos para chegar a elas; enfim, que todo aquele que tem convicções se serve desses métodos perfeitos. Todos esses três postulados demonstram desde logo que o homem das convicções não é o homem do pensamento científico; está, diante de nós, na idade da inocência teórica e é uma criança, por adulto que seja quanto ao mais. Mas milênios inteiros viveram nesses pressupostos infantis, e deles jorraram as mais poderosas fontes de força da humanidade. Aqueles inúmeros homens que se sacrificaram por suas convicções pensavam fazê-lo pela verdade incondicionada. Todos eles estavam errados nisso: provavelmente nunca um homem se sacrificou ainda pela verdade; pelo menos a expressão dogmática de sua crença terá sido não-científica ou científica pela metade. Mas propriamente queriam ter razão porque pensavam que 'tinham de' ter razão. Deixar arrancar de si sua crença significava, talvez, pôr em questão sua felicidade eterna. Em um assunto dessa extrema importância era demasiado audível a "vontade" soprando ao ouvido do intelecto. A pressuposição de todo crente de qualquer tendência era não 'poder' ser refutado; se os contra-argumentos se demonstravam muito fortes, restava-lhe sempre, ainda, caluniar a razão em geral e, talvez, até mesmo implantar o 'credo quia absurdum est' como estandarte do extremo fanatismo. Não é o combate das opiniões que tornou a história tão violenta, mas o combate das crenças nas opiniões, isto é, das convicções. Se, entretanto, todos aqueles que faziam uma ideia tão alta de sua convicção lhe ofereciam sacrifícios de toda espécie e não poupavam honra, corpo e vida para servi-la houvessem dedicado apenas a metade de sua força a investigar com que direito aderiam a esta ou aquela convicção, por que caminho haviam chegado a ela: que aspecto pacífico teria a história da humanidade! Quanto mais haveria de conhecido! Todas as cenas cruéis da perseguição aos hereges de toda espécie nos teriam sido poupadas, por duas razões: primeiro, porque os inquisitores teriam, antes de tudo, inquirido dentro de si mesmos e ultrapassado a pretensão de defender a verdade incondicionada; em seguida, porque os próprios hereges não teriam mais nenhum interesse, diante de proposições tão mal fundadas como as proposições de todos os sectários e "ortodoxos", depois de tê-las investigado. [MAI/HHI, §630]

6. E não só isso: os valores morais, religiosos e estéticos, norteadores da vida dos homens, também vieram a ser. Esses valores não possuem uma origem divina, mas humana, de tal modo que o caráter histórico dos homens necessariamente imprime um caráter contingente aos seus valores mais estimados. Nietzsche se ocupará com esse problema em grande parte dessa obra, sendo especialmente profícuas as suas considerações acerca da moral. A sua tese de que "bom" e "mau" só são compreendidos enquanto valores em si pelo erra da razão de confundir os efeitos com as causas, pelo esquecimento de raízes utilitárias desses valores, a serviço dos costumes, será o ponto de partida para o desenvolvimento de Genealogia da Moral.

[MAI/HHI, §635] No conjunto, os métodos científicos são, pelo menos, um resultado tão importante da investigação quanto qualquer outro resultado: pois sobre a compreensão do método repousa o espírito científico, e todos os resultados da ciência não poderiam, se aqueles métodos se perdessem, impedir um renovado recrudecimento da superstição e do não-senso. Pessoas de espírito podem 'aprender' quanto quiseram dos resultados da ciência: nota-se sempre em sua conversação, e especialmente nas hipóteses que ela contém, que lhes falta o espírito científico: não têm aquela instintiva desconfiança contra os desvios do pensamento que, em decorrência de longo exercício, lançou suas raízes na alma de todo homem científico. A eles basta, sobre um assunto, encontrar em geral alguma hipótese, e depois são fogo e flama por ela e pensam que com isso está tudo feito. Ter uma opinião já significa, para eles, fanatizar-se pro ela e daí em diante guardá-la no coração como convicção. Eles se acaloram, diante de uma coisa inexplicada, pela primeira ideia que lhes passe pela cabeça e pareça semelhante a uma explicação: do que contantemente resultam, em especial no domínio da política, as piores consequências. --
Por isso, agora, cada qual deveria ter aprendido a conhecer pelo menos 'uma' ciência desde o fundamento: pois saberia então o que quer dizer método e como é necessária a extrema atenção. É especialmente às mulheres que este conselho deve ser dado; pois são elas agora, irremediavelmente, as vítimas de todas as hipóteses, sobretudo quando estas dão a impressão de serem cheias de espírito, fascinantes, vivificantes, fortalecedoras. E até mesmo, observando com mais precisão, nota-se que a maior parte daqueles que têm cultura deseja, ainda agora, de um pensador, convicções e nada além de convicções, e que somente uma pequena minoria quer 'certeza'. Aqueles querem ser arrebatados fortemente, para com isso obterem para eles próprios um aumento de força; estes poucos têm aquele interesse pela coisa mesma, que não visa a vantagens pessoais, nem mesmo ao mencionado aumento de força. É com aquela classe, amplamente preponderante, que se conta por toda parte onde o pensador se comporta e se designa como 'gênio' e, portanto, assume a expressão de um ser superior, ao qual compete autoridade. Na medida em que o gênio dessa espécie entretém o ardor das convicções e desperta desconfiança contra o sentido cauteloso e modesto da ciência, ele é um inimigo da verdade, por mais que acredite ser seu pretendente. [MAI/HHI, §635]

7. Doravante, o grande desafio que se impõe é o de como implementar essa nova perspectiva trazida pela filosofia histórica sem requisitar unicamente uma revisão teórica dso fundamentos do conhecimento, mas uma profunda transformação cultural -- pois a filosofia histórica só prospera no interior de uma cultura progressista, científica. Tendo isso em vista, Nietzsche elege o agente que deve executar essa transformação cultural, que também é uma elevação cultural: o 'espírito livre'. O espírito livre, que é mais um novo paradigma do que um indivíduo concreto, tem por finalidade inspirar a libertação das convicções. Nesse sentido, deve-se entender o espírito livre em contraposição ao espírito cativo. Enquanto o espírito cativo representa o senso comum, guiado pela fé e agindo unicamente por hábito, o espírito livre solicita 'razões', uma solicitação que estimula o surgimento de uma atitude de desconfiança para com tudo que é duradouro. Essa atitude, quando levada pelo espírito livre para todos os campos em que se estabelecem laços sociais -- desde os laços com a família até os com o estado --, cria um terreno fértil para que a necessidade inercial por verdades absolutas seja enfraquecida, sendo substituída pelo entusiasmo com o ceticismo e, enfim, com a mudança. Assim, Humano, demasiado humano pode também ser apreendido, em sua faceta mais audaciosa, como um manual para o florescimento de uma nova cultura: uma cultura de espíritos livres. 

O andarilho. -- Quem chegou, ainda que apenas em certa medida, à liberdade da razão, não pode sentir-se sobre a Terra senão como andarilho -- embora não como viajante 'em direção' a um alvo último: pois este não há. Mas bem que ele quer ver e ter os olhos abertos para tudo o que propriamente se passa no mundo; por isso não pode prender seu coração com demasiada firmeza a nada de singular; tem de haver nele próprio algo de errante, que encontra sua alegria na mudança e na transitoriedade. Sem dúvida sobrevêm a um tal homem noites más, em que ele está cansado e encontra fechada a parta da cidade que deveria oferecer-lhe pousada; talvez, além disso, como no Oriente, o deserto chegue até a porta, os animais de presa uivem ora mais longe, ora mais perto, um vento mais forte se levanta, ladrões lhe levem embora seus animais de tiro. É então que cai para ele a noite parovosa, como um segundo deserto sobre o deserto, e seu coração se cansa da andança. Se então surge para ele o sol da manhã, incandescente como uma divindade da ira, se a cidde se abre, ele vê, nos rostos dos que aqui moram, talvez ainda mais deserto, sujeira, engano, insegurança do que fora das portas -- e o dia  é quase pior que a noite. 
Bem pode ser que isso aconteça às vezes ao andarilho; mas então vêm, como recompensa, as deliciosas manhãs de outras regiões e dias, em que já no alvorecer da luz ele vê, na névoa da montanha, os enxames de musas passarem dançando perto de si, em que mias tarde, quando ele, tranquilo, no equilíbrio da alma de antes do meio-dia, passeia entre árvores, lhe são atiradas de suas frondes e dos recessos da folhagem somente coisas boas e claras, os presentes de todos aqueles espíritos livres, que na montanha, floresta e solidão estão em casa e que, iguais a ele, em sua maneira ora gaiata, ora meditativa, são andarilhos e filósofos. Nascidos dos segregos da manhã, meditam sobre como pode o dia, entre a décima e a décima segunda badalada, ter um rosto tão puro, translúcido, transfiguradamente sereno: -- buscam a 'filosofia de antes do meio-dia'. [MAI/HHI, §638]

Referências:

ITAPARICA, André Luís Mota. Nietzsche: estilo e moral. São Paulo, Ijuí: Discurso Editorial, Ed. Unijuí, 2002.

MARTON, Scarlett [ed. resp.] Dicionário Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola, 2016.

NIETZSCHE, Friedrich W. Humano, demasiado humano. In: Obras Incompletas. Seleção de textos Gérard Lebrun; Tradução e notas Rubens Rodrigues Torres Filho; Apêndice Antônio Cândido de Mello e Souza; Introdução (pesquisa) Olgária Chaim Ferez; consultor da introdução Marilena de Souza Chauí. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

___________. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
SALANSKIS, Emmanuel. Moralistes darwiniens: les psychologies évolutionnistes de Nietzsche et Paul Rée. "Nietzsche-Studien, v.42, n1, p.44-66, 2013.