CONSIDERAÇÕES EXTEMPORÂNEAS

0. As considerações extemporâneas aqui selecionadas referem-se a David Strauss; à utilidade e à desvantagem da história para a vida; a Schopenhauer como educador; e a Richard Wagner em Bayreuth.

As quatro "Extemporâneas" são integralmente guerreiras. Elas demonstram que eu não era nenhum "João Sonhador", que me diverte desembainhar a espada -- e talvez também que tenho o punho perigosamente destro. (...) (EH/EH - As Extemporâneas, §1)

Desses quatro atentados, o primeiro teve êxito extraordinário. O barulho que provocou foi esplêndido em todos os sentidos. Eu havia tocado em sua ferida uma nação vitoriosa -- dizia que sua vitória 'não' era um acontecimento cultural, mas, talvez, tlavez algo bem diferente... (...) (EH/EH - As Extemporâneas, §2)

Quanto às Extemporâneas que levam os nomes de Schopenhauer e Wagner, eu não afirmaria que elas possam servir especificamente à compreensão ou mesmo à colocação do problema psicológico dos dois casos -- excetuando, claro, umas poucas coisas. Por exemplo, o fundamental na natureza de Wagner já é caracterizado, com profunda segurança instintiva, como um talento de ator, de que os métodos e intenções não passam de consequências. No fundo, com esses escritos eu desejava fazer algo bem diferente de psicologia -- um problema de educação sem equivalente, um novo conceito de 'cultivo de si, defesa de si' até a dureza, um caminho para a grandeza e para tarefas histórico-universais exigia sua primeira expressão. (...) (EH/EH - As Extemporâneas, §3)

1. Nas primeiras edições brasileiras dos textos de Friedrich W. Nietzsche (1844-1900), o título "Unzeitgemässe Betrachtungen" é traduzido -- no nosso entender, de maneira satisfatória -- por Considerações Extemporâneas. No léxico da língua portuguesa, "extemporâneo" significa "aquilo que está fora do tempo apropriado", ou ainda, "o que não é característico da época em que ocorre". Enfim, "extemporâneo" serve para designar algo que não está em consonância com o tempo no qual está inserido. Ora, essa acepção está intimamente relacionada com a compreensão de Nietzsche acerca de "extemporâneo", pois o filósofo, de fato, entende extemporaneidade como negação e afastamento de sua própria época. Contudo, isso não esgota o sentido que esse termo recebe no contexto do pensamento nietzschiano. Isso porque a extemporaneidade a qual Nietzsche se refere não é uma espécie de negação alienada de sua época, mas um afastamento reflexivo que objetiva realizar um ataque "crítico" direcionado a ela. Ou seja, "extemporâneo" em Nietzsche não é sinônimo de escapismo do seu mundo e do seu tempo, já que a atitude do filósofo consiste, sobretudo, num combate contra a mediocridade cultural de seu momento histórico. A negação de sua própria contemporaneidade tem, portanto, o intuito do confronto, posto que essa negação é, na verdade, um afastamento estratégico da cotidianidade e da mentalidade a serem combatidas. De fato, as "Considerações Extemporâneas" são pequenos textos ensaísticos -- caracterizados pela polêmica e virulência -- que criticam de forma mordaz algumas instituições da cultura europeia da segunda metade do século XIX. Inicialmente, o projeto de Nietzsche era publicar vários desses opúsculos "panfletários" no espaço de cinco anos. Contudo, só quatro foram, realmente, finalizados. Entre abril de 1873 e outubro de 1874, apareceram os três primeiros. O quarto e último só vem a público em julho de 1876. Consideradas como escritos da primeira fase da obra nietzschiana, as "Extemporâneas" apresentam algo comum aos livros de Nietzsche publicados nesse período, a saber, a influência de Arthur Schopenhauer e Richard Wagner.

2. A primeira consideração extemporânea, David Strauss, o Devoto e o Escritor [David Strauss, der Bekenner und der Schriftsteller], publicada em 1873, ataca de forma violenta a então recém-publicada obra do teólogo hegeliano David Strauss (1808-1874), "A antiga e a nova fé" (1872). No entender de Nietzsche, Strauss seria "o chefe dos filisteus da cultura", pois sua obra seria uma espécie de "evangelho" de um tipo de erudito conformado com o cotidiano e comprometido com o cumprimento da regra e com a execução do dever. Devotado às tarefas burocráticas estabelecidas por instâncias sociais superiores, o "filisteu da cultura" -- do qual Strauss seria o protótipo -- tem seus esforços sempre voltados para a conservação de sua vida pacata e segura.

(...) O fato simplesmente incrível de que Strauss não soube aproveitar nada da crítica kantiana da razão seu testamento das ideias modernas e de que por toda parte só fala ao goso do mais grosseiro realismo faz parte, precisamente, das surpreendentes características desse novo evangelho, que de resto só se apresenta como o resultado laboriosamente conquistado de contínua pesquisa histórica e natural e, com isso, renega até mesmo o elemento da filosofia. (...) (DS/Co. Ext. I, §6)

'E assim também ele trata a cultura'. Comporta-se como se a vida para ele fosse apenas 'otium', mas 'sine dignitate': e nem mesmo em sonho lança fora seu jugo, como um escravo que mesmo depois de libertar de sua miséria sonha com sua pressa e suas pancadas. Nossos eruditos quase não se distinguem, e em todo caso não em seu favor, dos lavradores que querem aumentar uma pequena propriedade herdada e assiduamente, dia e noite a fio, se esforçam em lavrar o campo, conduzir o erado e espicaçar os bois. (...) (DS/Co. Ext. I, §8)

3. Em 1874, aparece a segunda consideração extemporânea, Da Utilidade e Desvantagem da História da para a Vida [Vom Nutzen und Nachtheil der Historie für das Leben]. Este texto tem como alvo a tendência exacerbadamente historicista que dominava a mentalidade acadêmica na segunda metade historicista que dominava a mentalidade acadêmica na segunda metade do século XIX. Nietzsche defende a tese de que a história pode se expressar de três maneiras, a saber, a história monumental, a história tradicionalista e a história crítica. O filósofo vai então elencar as vantagens e desvantagens de cada umas dessas três manifestações em relação à conservação e ao desenvolvimento da vida. A história monumental promove o conhecimento acerca de passados grandiosos e, ao realizar essa tarefa, fornece paradigmas para o presente.
Ou seja, a história monumental é útil à vida porque pode estimular o homem do presente à conquista. Em suma, uma vez que a história monumental mostra que a grandeza que já existiu outrora -- isto é, mostra que a grandeza foi possível em civilizações passadas -- ela pode incentivar o desejo do seu retorno. A história tradicionalista, que se caracteriza por uma atitude de conservação e veneração do passado, teria o poder de produzir um sentimento de "prazer e satisfação" ao fazer o indivíduo se sentir pertencente a uma tradição. Segundo o filósofo, a história entendida nessa acepção evita a total dispersão das sociedades e a busca desenfreada pela novidade banal. Quanto à história crítica, essa teria o papel de promover rompimentos com partes do passado que precisariam ser "julgadas" como nocivas e descartadas em função da promoção de uma vida salutar. Essas três manifestações de história carregariam consigo, todavia, possibilidades de degeneração. Algumas dessas degenerações seriam, por exemplo: a promoção da impotência e a indolência frente à grandiosidade já alcançada num passado monumental; o sufocamento da energia criativa do presente por conta de uma exclusiva e excessiva conservação da tradição; a condenação e o descarte de "erros", "violências" e "desregramentos" que foram 'necessários' à manutenção da vida. Também é digna de nota a crítica que Nietzsche desfere contra a concepção escatológica da historicidade cristã. Numa análise que adianta uma reflexão que vai aparecer de maneira mais incisiva no final de sua obra, o filósofo vai defender que a concepção histórica do cristianismo -- concepção que estaria, segundo ele, incrustada na noção moderna de história -- promove uma exacerbada preocupação com a morte e impede o interesse pela vida. Enfim, de uma maneira geral, a "Segunda consideração extemporânea" visa submeter a história ao crivo da vida e criticar o desejo cientificista de conquista de verdade histórica a todo custo.

(...) Se é uma felicidade, se é uma ambição por uma nova felicidade em um sentido qualquer, aquilo que firma o vivente na vida e o força a viver, então talvez nenhum filósofo tenha mais razão do que o cínico: pois a felicidade do animal, que é o cínico perfeito, é a prova viva da razão do cinismo. A menor das felicidades, se simplesmente é ininterrupta e faz feliz ininterruptamente, é sem comparação mais felicidade do que a maior delas, que venha somente como um episódio, por assim dizer como humor, como incidente extravagante, entre o puro desprazer, a avidez e a privação. (...)  (HL/Co. Ext. II, §1)
(...) Em que, então, é útil ao homem do presente a consideração monumental do passado, o ocupar-se com os clássicos e os raros de tempos antigos? Ele aprende com isso que a grandeza, que existiu  uma vez, foi, em todo caso, 'possível' uma vez e, por isso, pode ser que seja possível mais uma vez; segue com ânimo sua marcha, pois agora a dúvida, que o assalta em horas mais fracas, de pensar que talvez queira o impossível é eliminada. (...) (HL/Co. Ext. II, §2) 
(...) Certamente um tal astro, um astro luminoso e soberbo, se interpôs, a constelação efetivamente se alterou -- 'pela ciência, pela exigência de que a história seja ciência'. Agora não é mais somente a vida que rege e refreia o saber em torno do passado: todas as estacas de limite foram arrancadas e tudo o que era uma vez precipita-se sobre o homem. Até onde houve um vir-a-ser, até lá se deslocaram, para trás, ao infinito, todas as perspectivas. (...) (HL/Co. Ext. II, §4)
(...) Em que situações desnaturadas, artificiais e, em todo caso, indignas há de cair, em um tempo que sofre de cultura geral, a mais verdadeira de todas as ciências, a honrada deusa nua, a filosofia. Em um tal mundo da uniformidade exterior forçada, ela permanece monólogo erudito do passeador solitário, fortuita presa de caça do indivíduo, oculto segrego de gabinete ou inofensiva tagarelice entre anciãos acadêmicos e crianças. (...) (HL/Co. Ext. II, §5)
O sentido histórico quando refreia, quando reina 'irrefreado' e traz todas as suas consequências, erradica o futuro, porque destrói as ilusões e retira às coisas sua atmosfera, somente na qual elas podem viver. A justiça histórica, mesmo quando é exercida efetivamente e em intenção pura, é uma virtude pavorosa, porque sempre solapa o que é vivo e o faz cair: seu julgamento é sempre uma condenação à morte. (...) (HL/Co. Ext. II, §7)
(...) A cultura histórica também é, efetivamente, uma espécie de encanecimento inato, e aqueles que trazem em si seus sinais desde a infância têm de chegar à crença instintiva na 'velhice da humanidade': à velhice, porém, convém agora uma ocupação senil, ou seja, olhar para trás, fazer as contas, concluir, procurar consolo no que foi por meio de recordações, em suma, cultura histórica. (...) (HL/Co. Ext. II, §8)
(...) De fato, está mais que no tempo de avançar contra os descaminhos do sentido histórico, contra o desmedido gosto pelo processo, em detrimento do ser e da vida, contra o insensato deslocamento de todas as perspectivas, com todo o batalhão de maldades satíricas; e deve ser sempre dito em louvor do autor da "Filosofia do Inconsciente" que ele foi o primeiro a conseguir sentir agudamente o ridículo da representação do "processo universal" e, pela curiosa seriedade da sua exposição, fazer com que ele fosse sentido ainda mais agudamente. (...) (HL/Co. Ext. II, §9)

4. A terceira consideração extemporânea, também publicada em 1874, tem como título Schopenhauer como Educador [Schopenhauer als Erzieher]. Esse texto, que foi elaborado a partir das notas para sexta e sétima conferências de "Sobre o Futuro de nossos Estabelecimentos de Ensino" [Ueber die Zukunft unserer Bildungsanstalten], ataca de forma agressiva a mentalidade e as instituições universitáiras da Alemanha da segunda metade do século XIX. Segundo o filósofo, o ensino superior de sua época tinha o propósito de formar homens subordinados e medíocres que viriam a servir às instituição e ao Estado. Isso porque, conforme a mentalidade dominante da época, o Estado seria o alvo máximo da humanidade. Em outras palavras, nenhuma meta poderia ser entendida como superior à preservação da existência do Estado. Esse sistema educacional seria, portanto, eficaz para engendrar "tipos" resignados como o "erudito" estéril, o "funcionário de Estado", o "negociante" e o "filisteu da cultura". Todavia, esse mesmo sistema seria incapaz -- e até mesmo impediria -- o florescimento e o desenvolvimentode indivíduos com talentos geniais. No entender de Nietzsche, todavia, uma verdadeira educação deveria empenhar-se no "nascimento e maturação" do gênio. No desenvolvimento do seu argumento, Nietzsche caracteriza, ainda, dois tipos antagônicos, a saber, os "servidores filosóficos" e os filósofos. O primeiro, integrado ao sistema educacional vigente, caracterizar-se-ia por possuir um pensar domesticado e comprometido com os interesses do Estado -- provedor de sua subsistência. O "servidor filosófico" seria o erudito profissional perito em história da filosofia que, especializado em "repensar" o pensamento dos grandes filósofos, impede o florescimento do verdadeiro filósofo. Este último seria um livre pensador que retira de si mesmo as suas próprias verdades sem intermediários.

(...) Esse foi o primeiro perigo à sombra do qual Schopenhauer cresceu: isolamento. O segundo é: desespero da verdade. Este perigo acompanha todo pensador que toma seu caminho a partir da filosofia kantiana, pressuposto que seja um homem vigoroso e inteiro no sofrer e desejar, e não apenas uma sacolejante máquina de pensar e de calcular. (...) (SE/Co. Ext. III, §3)
(...) Toda filosofia que acredita removido ou até mesmo solucionado, através de um acontecimento político, o problema da existência é uma filosofia de brinquedo e uma pseudofilosofia. Com muita frequência, desde que há mundo, foram fundados Estados; isso é uma velha peça. Como poderia uma inovação política bastar para fazer dos homens, de uma vez por todas, habitantes satisfeitos da Terra? (...) (SE/Co. Ext. III, §4)
(...) Mas, em suma, o que nos revelaram todas as essas considerações? Que por toda parte onde, agora, a cultura parece promovida mais animadamente, não se sabe nada deste alvo. Por mais que o Estado enfatize o que faz de meritório pela cultura, ele a promove para se promover e não concebe nenhum alvo que seja superiorao seu bem e à sua existência. (...) (SE/Co. Ext. III, §6)
(...) Um outro grande privilégio coube a Schopenhauer, por não ter sido destinado de antemão a ser erudito nem educado para isso, mas efetivamente ter trabalhado por algum tempo, embora a contragosto, em um balcão de comerciante e, em todo caso, ao longo de toda a sua juventude, ter respeirado o ar mais livre de uma grande casa comercial. Um erudito nunca pode tornar-se um filósofo; pois mesmo Kant não foi capaz disso, mas permeneceu até o fim, a despeito do ímpeto inato de seu gênio, como que em estado de crisálida. (...) (SE/Co. Ext. III, §7)
(SE/Co. Ext. III, §8) Vista com mais precisão, aquela "liberdade" com que agora o Estado, como eu dizia, contempla alguns homens em nome da filosofia já não é nanhuma liberdade, mas uma função, que alimenta seu homem. A promoção da filosofia, portanto, consiste penas em que hoje em dia pelo menos a certo número de homens é possibilitado pelo Estado 'viver' de sua filosofia, por poderem fazer dela um ganha-pão: enquanto os antigos sábios da Grécia não recebiam estipêndio da parte do Estado, mas no máximo eram às vezes, como Zenão, honrados com uma coroa de ouro e um monumento funerário no "Cerâmico". (...) (SE/Co. Ext. III, §8)

5. A quarta e última consideração extemporânea, Richard Wagner em Beirute [Richard Wagner in Bayreuth], foi publicada por ocasião da inauguraçãodo 'Festspielhaus', a sala de espetáculos dedicada à apresentação da obra de Wagner, construída na cidade de Bayreuth, na Alemanha. O texto em questão, ao mesmo tempo em que rende homenagem a Wagner, consiste também numa severa crítica à decadência cultural da Europa. Esse declínio cultural poderia ser observado através do exame da arte moderna alemã, sobretudo, das instituições teatrais. Para Nietzshce, o público que frequentava os espetáculos teatrais buscava apenas um divertimento de fácil assimilação: os artistas caracterizavam-se pelo platonismo e superficialidade; os empresários e organizadores buscavam unicamente o lucro desenfreado. Enfim, a arte, reduzida a uma mercadoria de luxo e ostentação, tornara-se estéril e inofensiva. Nessa época, Nietzsche enxerga Wagner como o antípoda extemporâneo dessa mediocridade artística. O compositor seria a ponta de lança de uma rerivavolta cultural que teria o poder de combater a decadência da arte moderna e instaurar um novo momento de grandiosidade na cultura alemã. O teatro de Bayreuth  seria a referência fundamental de uma "revolução social" que poderia promover um "grande porvir" para a sociedade europeia. Já durante a inauguração do "Festspielhaus" Nietzsche viria a se decepcionar. 

Para que um acontecimento tenha grandeza, é preciso reunir duas condições: que a grandeza inspire os que o realizam e os que o vivenciam. Em si nenhum acontecimento possui grandeza, mesmo o desaparecimento de constelações inteiras de estrelas, a destruição de povos, a fundação de vastos Estados, guerras empreendidas com arsenais e perdas extraordinárias - diversos acontecimentos como esses são dispersos, como simples flocos, pelo sopro da história. (...) (WB/Co. Ext. IV, §1)
Seria estranho se o que alguém faz da melhor forma e o que mais gosta de fazer não se tornasse, também, visível ne configuração geral de sua vida. A vida, em homens com um excepcional talento, não deveria, como em geral, refletir somente o caráter, mas também e sobretudo o intelecto e sua aptidão mais singular. A vida do poeta épico trará em si algo do caráter épico -- como é o caso, dito de passagem, de Goethe, no qual os alemães se habituaram, muito erroneamente, a ver sobretudo o lírico --, assim como a vida do dramaturgo transcorrerá dramaticamente. (...) (WB/Co. Ext. IV, §2)
Na relação entre essas duas forças mais profundas, na devoção de uma a outra, residiu a grande necessidade através da qual Wagner podia permanecer inteiramente ele próprio; era, ao mesmo tempo, a única coisa que ele não tinha em seu poder, que tinha de observar e aceitar, ao passo que era a sedução para a infidelidade e seus terríveis perigos que ele sempre via de novo aproxima-se de si. Aqui corria uma abundante fonte de sofrimento para o homem que está em devir: a incerteza. Cada um de seus impulsos aspirava à desmedida, todos os seus dons generosos queriam se soltar uns dos outros e buscar sua própria satisfação: quando maior sua plenitude, tanto maior eram o tumulto e a hostilidade a um encontro. (...) (WB/Co. Ext. IV, §3)
A história do desenvolvimento da cultura desde os gregos pode ser considerada curta se observarmos apenas o caminho que foi efetivamente percorrido, deixando de lado as paradas, recuos, hesitações, espreitas. A helenização do mundo, e, para torná-la possível, a orientalização do helenismo -- a dupla tarefa do grande Alexandre -- continuam sendo o último dentre os grandes acontecimentos; e a velha questão de saber se é possível, em geral, transplantar uma cultura estranha continua sendo o problema sobre o qual se debruçam os modernos. (...) (WB/Co. Ext. IV, §4)
Wagner colocou a vida presente e o passado sob o raio de luz de um conhecimento forte o bastante para permitir abarcar com o olhar uma extensão pouco comum: por isso ele é um simplificador do mundo; pois essa simplificação sempre consiste em que o olhar de quem conhece se torna sempre de novo senhor da prodigiosa multiplicidade e desordem de um aparente caos, condensando em unidade o que antes estava disperso e inassimilável. (...) (WB/Co. Ext. IV, §5)
Desejo mostrar por meio de dois exemplos como a sensação em nossa época foi invertida e como a época não tem nenhuma consciência dessa inversão. Outrora se olhava de cima, com franca superioridade, os que lidavam com o comércio de dinheiro, mesmo quando se precisava deles; admitia-se que toda sociedade davia ter suas entranhas. Atualmente eles são o poder dominante na alma da humanidade moderna e seu componente mais ávido. (...) (WB/Co. Ext. IV, §6)
Não pode ser de outra forma: o observador diante do qual se encontra uma natureza tal como a de Wagner deve involuntariamente de tempos em tempos ser confrontado consigo próprio, com sua pequenez, com sua fragilidade, e indagar: o que ela significa para ti? E tu, para que estás aí? (...) (WB/Co. Ext. IV, §7)
A verdadeira vida de Wagner, na qual se revela pouco a pouco o dramaturgo ditirâmbico, foi também uma incessante luta consigo próprio, visto que ele não era apenas esse dramaturgo ditirâmbico: a luta com esse mundo contraditório foi para ele feroz e sinistra porque ele escutava esse "mundo", esse sedutor inimigo, falar de dentro de si mesmo e porque abrigava em si um poderoso demônio de contradição. (...) (WB/Co. Ext. IV, §8)
Pensar que "é o artista Wagner" e refletir sobre o espetáculo de um poder e de uma licença verdadeiramente livres: isso será necessário a cada um para sua salvação e restabelecimento, a cada um que pensou "como foi o devir do homem Wagner" e sofreu com isso. (...) (WB/Co. Ext. IV, §9)
Um artista que tem sobre si um tal império subjuga, sem o querer, todos os outros. (...) (WB/Co. Ext. IV, §10)
A sã razão nos guarde da crença de que a humanidade um dia encontrará um regime ideal e definitivo e que a felicidade, como o sol dos trópicos, brilhará com os mesmos raios sobre homens de um tal modo ordenados: Wagner nada tem a ver com essa crença, ele não é um utópico. (...) (WB/Co. Ext. IV, §11)

 

Referências:
 

MARTON, Scarlett. Distancia y combate: la (in)actualidad de Nietzsche. Estudios Nietzsche, v. 12, p.133-145, 2012.
________. [ed.] Dicionário Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola, 2016.
NIETZSCHE, Friedrich W. Considerações Extemporâneas. In: Obras Incompletas. Seleção de textos Gérard Lebrun; Tradução e notas Rubens Rodrigues Torres Filho; Apêndice Antônio Cândido de Mello e Souza; Introdução (pesquisa) Olgária Chaim Ferez; consultor da introdução Marilena de Souza Chauí. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

 

STEIN, Jacot e CAMPOS, Marcelo de Deus