"Embora nosso tempo se arrogue o progresso de afirmar novamente a “metafísica”, a questão aqui evocada caiu no esquecimento. E, não obstante, nós nos consideramos dispensados dos esforços para desenvolver novamente uma γιγαντομαχία περί τής ούσίας. A questão referida não é, na verdade, uma questão qualquer. Foi ela que deu fôlego às pesquisas de Platão e Aristóteles para depois emudecer como questão temática de uma real investigação. O que ambos conquistaram manteve-se, em muitas distorções e “recauchutagens”, até à Lógica de Hegel. E o que outrora, num supremo esforço de pensamento, se arrancou aos fenômenos, encontra-se, de há muito, trivializado." (HEIDEGGER, 2005, p.27) Este é o primeiro parágrafo da Introdução de Ser e Tempo (1.927), obra fundamental de Martin Heidegger (1.889-1.976). Esta obra possui Introdução intitulada: “Exposição da Questão sobre o Sentido do Ser”. Ela possui dois capítulos. O primeiro deles intitulado “Necessidade, Estrutura e Primado da Questão do Ser”.  A primeira frase inicia-se com uma conjunção adversativa ‘embora’, cuja função caracteriza uma oração subordinada: nela há a subordinação da ideia de ‘nosso tempo’, temporalizando seu escrito, tornando-o e tomando-o a partir do tempo presente, tanto acadêmico quanto cotidiano. Neste sentido, a ideia de progresso reafirma a metafísica ou discurso metafísico, contudo o tema do ser ou a própria metafísica fora esquecida. Heidegger neste momento não fala, mas desde Hegel a linguagem assume toda e qualquer função temática. Simultaneamente ao esquecimento ocorre também a sensação ou o sentimento dos homens considerarem-se dispensados dos esforços para desenvolver novamente uma ‘gigantomakia peri tés ousias’. Trata-se de uma batalha de gigantes sobre o Ser. Os gigantes são Platão e Aristóteles, as referências primordiais da metafísica. Essa batalha não refere-se a uma questão qualquer, ou seja, trata-se de um quantificador universal, significa todo ou toda, contudo é uma totalidade indeterminada, podendo ser um todo ou uma totalidade, inclusive significa também algum ou alguma, não importando qual seja. Essa necessidade, isto é, essa condição de sine qua non, que não pode ser de outro modo, constitui-se quase como um imperativo não categórico, mas como um imperativo do saber, do conhecimento, da teoria do conhecimento e da antropologia que se apresenta como uma repetição explícita da questão do ser. Essa repetição expressa por pelo pensador alemão é em relação ao que fora pensamento pelas pesquisas empreendidas por Platão e por Aristóteles. Ela caiu no esquecimento e este esquecimento deve dar lugar não a uma questão temática, da qual se pensa outras questões, como a linguagem mesma.  Mas, a questão do sentido constitui-se como uma real investigação. O que a justifica é esse sentido de ‘real’, que não é pura abstração, mas é o empreendimento de uma vida. De Platão a Aristóteles pouco fora modificado até a obra Lógica de Hegel. E é a partir de todas as distorções e recauchutagens que partirá o pensador da Floresta Negra, além destes três pensadores também serão investigadas as obras de Sto. Agostinho de Hipona, S. Tomás de Aquino, Descartes e Pascal, principalmente. A necessidade de uma repetição explícita da questão do ser configura-se como um esforço supremo de pensamento, supremo porque põe novamente o que tantos pensaram sem ser um plágio. Contudo, o fôlego das pesquisas de Aristóteles e de Platão foram, ao longo do tempo, trivializadas. O esforço do pensamento consiste também na superação dessa trivialização ocorrida desde o fim da Antiguidade Clássica, passando pela Idade Média e Modernidade.  A expressão ‘nosso tempo’ alude a uma referência direta da mudança de enfoque da questão do sentido do ser tomando-a como pensamento, mas tratando o pensamento enquanto fenômeno.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I. 15. ed. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis/RJ: Vozes, 2005.