A movimentação orquestrada pelo governo americano para intervenção na Venezuela não tem nada a ver com crise humanitária. Tem a ver com crise energética, com geopolítica, tem a ver em garantir petróleo para não parar o país mais industrializado do mundo. Os EUA são o país que mais consomem petróleo no mundo e também o maior importador de petróleo da Venezuela. Dependendo da cotação do preço do barril, a despesa com importação de petróleo da Venezuela pode ultrapassar a US$ 30 bilhões de dólares por ano. Embora o barril tenha cotação internacional, o custo de comprar da Venezuela é bem mais baixo do que importar do Oriente Médio. O custo do frete bem mais caro, acaba deixando a despesa com importação de petróleo do Oriente muito maior. Seu interesse é comercial e geopolítico; envolve acima de tudo a questão dos recursos naturais. Não tem nada de humanitário.

Se a questão fosse realmente humanitária, o governo americano e a ONU já deveriam ter feito alguma coisa para evitar que milhões de africanos morram de fome todos os anos na África subsaariana. O que realmente interessa aos países desenvolvidos, que são os maiores produtores de mercadorias, é garantir mercado consumidor. Isto a África não pode dar para eles. Por isso o seu desprezo com a vida de milhões de crianças africanas que não têm o que comer todos os dias.

“Mais de 40% da população da África Subsaariana vive na extrema pobreza”. (https://news.un.org/pt/story/2015/07/1517301-mais-de-40-da-populacao-da-africa-subsaariana-vive-na-extrema-pobreza

O mesmo acontece com sua política exterior em relação a Cuba. Se a preocupação fosse mesmo com o povo cubano, o governo americano não manteria um bloqueio econômico e comercial contra a ilha caribenha durante mais de cinquenta anos. Isso é imoral e desumano. Não tem nada de humanitário! Antes da revolução, Cuba não passava de entreposto comercial e rota disputada, devido sua localização estratégica na entrada do Golfo do México e suas costas voltadas para o Oceano Atlântico. À noite, o país se transformava em cassino flutuante para prazer e diversão da elite americana. 95% de sua população vivia na pobreza, prestando trabalho em condições análogas ao trabalho escravo nas plantações de fumo e cana-de-açúcar. Foi preciso uma revolução popular para mudar o destino de sua população. Cuba, hoje, é referência mundial em saúde, educação, pesquisa e esporte. O país caribenho possui a expectativa de vida mais alta do continente americano, com uma média de 75 anos.

Se realmente os EUA se preocupassem com “ditaduras” que ele insiste em construir, por que não intervém na Arábia Saudita, uma ditadura monárquica absolutista e uma de suas maiores parceiras comercial, econômica e geopolítica no Oriente médio.

“A Arábia Saudita talvez seja a nação com o regime mais extremista religioso do planeta, onde mulheres e minorias religiosas são tratada como segunda classe e os gays são considerados criminosos”. “Ainda assim, o regime misógino, homofóbico e islamofascista dominado por um braço da família Saud segue como o maior aliado dos EUA no mundo árabe e no mundo islâmico. Isso se deve tanto ao petróleo como interesses geopolíticos comuns, como conter o Irã.”

(https://internacional.estadao.com.br/blogs/gustavo-chacra/por-que-os-eua-sao-aliados-da-arabia-saudita/)

Os EUA deveriam exercer de fato a democracia em seu país antes de criticar a democracia em outros países. Na última eleição presidencial, Trump assumiu a presidência sem obter a maioria dos votos, ferindo de morte o princípio básico de regimes democráticos para definir o vencedor da eleição: “Para cada cidadão um voto”. Este princípio tem o papel de garantir que o vencedor seja o candidato que obtenha a maior soma de votos recebidos de cada eleitor. O candidato que receber mais votos, ganha a eleição! Simples e correto! Nos EUA, o país que se autoproclamou como o guardião da democracia no mundo, este princípio maior não prevalece. Na última eleição presidencial, Trump levou a faixa sem conquistar a maioria dos votos de seus cidadãos! A candidata do Partido Democrata, Hillary Clinton, obteve 65. 853.516 votos (48,2%), enquanto o candidato do Partido Republicano, Donald Trump, obteve 62.984.825 votos (46,1%), ou seja, Hillary Clinton obteve 2.868.691 votos a mais. Recebeu quase 3 milhões de votos a mais que Trump e não levou a eleição! Resumindo: o país que se julga tão democrático, deu uma aula de como se deve fazer uma eleição não democrática. Nos EUA, o sistema eleitoral, da maior economia do mundo, não é capaz de garantir a democracia, não é capaz de fazer com que o voto de cada cidadão represente de fato sua escolha, que represente de fato a vontade da maioria que votou.

Não sou contra a intervenção somente por motivos ideológicos. Não acho que outros países, e muito menos ainda, um país imperialista, possa ter o direito de desrespeitar a soberania de outros povos. Tenho convicção que a intervenção de caráter político para garantir interesses energéticos e com remédios econômicos neoliberais só trarão mais prejuízos, desgraça e miséria para o povo venezuelano; além de comprometer e reduzir a riqueza gerada com o petróleo em melhorias na saúde, educação e outros benefícios sociais; transferindo essa riqueza para as mãos de grandes grupos econômicos que atuam na produção de óleo e gás.

“A defesa da Venezuela contra o cerco imperialista é hoje o centro da luta de classes internacional. Aqueles na esquerda que não compreendem este desafio perderam a bússola antimperialista. A luta pelo poder em Caracas não é entre democracia e ditadura, mas entre independência ou colônia.” (Valério Arcary. Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP).

A colonização hoje, não passa mais pela conquista do território. A colonização hoje se dá pelo capital. E se dá principalmente pelo capital financeiro internacional. Existe uma disputa há algumas décadas entre o capital financeiro e o capital industrial. Parte significativa dos grandes grupos econômicos industriais são controlados por holdings dos maiores grupos financeiros do mundo. Paralelo à luta de classes entre capital e trabalho, a luta intraclasse, através da concorrência entre os próprios capitalistas é cada vez mais intensa. Nesta briga, o capital financeiro avança sem o menor escrúpulo sobre o capital produtor de mercadorias. O capital financeiro é hoje a maior fonte de acumulação de capitais no mundo; e é também a maior ameaça à democracia. Em diversos países, inclusive desenvolvidos, grandes grupos transnacionais têm mais poder que o próprio Estado. O Estado-nação está desaparecendo da face da terra. Sua origem se deu por volta do 3º quartil do século XVIII com o franco desenvolvimento da revolução industrial; e hoje, quase três séculos mais tarde, está em processo de extinção também pelas mãos do capital; porém, não mais pelas mãos do capital industrial, mas pelo capital financeiro transnacional. A colonização hoje; é em função da reprodução e acumulação de capitais principalmente nos mercados financeiros. Para isto é condição essencial a conquista de novos mercados consumidores. A colonização pelo capital não requer a conquista física e a demarcação do território com suas fronteiras definidas. Com o avanço da globalização, baseada na expansão industrial, alavancada pelo capital financeiro, o que importa é a conquista de novos mercados consumidores. A grande ameaça hoje, ao projeto de poder político dos grandes grupos econômicos é a instabilidade econômica gerada por graves crises financeiras, como a de 2008 provocada pelas emissões descontroladas de hipotecas subprime, com influência na estabilidade social extremamente dependente da criação de novas vagas de emprego e na manutenção de postos de trabalho já existentes.

A posição contrária da Rússia e da China em uma eventual intervenção na Venezuela, não é por simpatia ou camaradagem a Nicolás Maduro. O interesse é também político, econômico e principalmente comercial. Não é nada interessante para a China perder mercado consumidor para seus produtos. Afinal, a China é uma potência econômica, principalmente comercial, lastreada em grandes volumes de exportação para dezenas de países. Não é bom para a economia chinesa e consequente estabilidade política do governo chinês, a China, com uma população de 1 bilhão e 375 milhões de chineses e com uma PEA - População Economicamente Ativa de mais de 1 bilhão de pessoas, começar a perder importantes mercados consumidores para seus produtos.

Porém, para quem defende a hipótese socialista como opção ao capitalismo e a grande desigualdade no mundo, não pode esperar muita coisa vindo do atual governo venezuelano. O máximo que a boliburguesia - a burguesia bolivariana formada por oficiais militares, políticos que apoiam o governo, funcionários públicos do alto escalão e empresários ligados ao governo -, pode entregar é um capitalismo de Estado; algo bem semelhante ao estado de bem-estar social preconizado pelos novos keynesianos através da maior presença do Estado na economia como forma de neutralizar parcialmente os estragos produzidos pelo livre mercado e sua total desregulamentação.

“O governo de Maduro é um governo burguês, apoiado em uma fração burguesa minoritária em formação, a “boliburguesia”. Não me parece muito polêmico, a não ser para alguém que tenha excessivas ilusões na retórica sobre o “socialismo do século XXI” que, depois de quase vinte anos no poder, os herdeiros do chavismo no poder já demonstraram que não têm qualquer pretensão de ir além do capitalismo, ainda que com forte regulação estatal. Mas a Venezuela tem um governo independente e é por isso, e não porque seja uma ditadura, que está sendo atacada.” (Valério Arcary).

Esta intervenção, caso aconteça, é puro oportunismo comercial para atender interesses do grande capital. Mesmo se fosse realmente preocupação com a população mais pobre da Venezuela, ainda assim não justificaria a intervenção de outras nações. Por que o governo americano não faz o dever de casa em vez de se preocupar com o governo de outros países. A miséria nos EUA atinge atualmente 15% de sua população; isso representa mais de 40 milhões de americanos vivendo na linha de pobreza.

“Quem são os 41 milhões de pobres dos Estados Unidos, o país mais rico do mundo? Em 2016, quase 41 milhões de pessoas, ou 13% da população, viviam na pobreza - em comparação com os 15% verificados no auge da recessão, em 2010.”. (https://www.bbc.com/portuguese/internacional-42323066).

 “Quase 41 milhões de pessoas, ou 12,7% da população, vivem em situação de pobreza, enquanto 18,5 milhões estão em situação de extrema pobreza, sendo que crianças representam um em cada três membros dessas populações vulneráveis, segundo o especialista da ONU. Os Estados Unidos têm a maior taxa de pobreza entre jovens entre todos os países industrializados, acrescentou.”. Por Reuters, 02/06/2018. (https://g1.globo.com/mundo/noticia/pobreza-se-aprofunda-nos-eua-sob-governo-trump-diz-especialista-da-onu.ghtml).

“Mais de 140 milhões de pessoas são pobres ou vivem com renda insuficiente para pagar suas contas nos Estados Unidos, o que representa 43% da população do total do país, considerado um dos mais ricos do mundo. Os dados foram revelados nesta quarta-feira (01/10/18) pela organização Poor People’s Campaign em uma audiência realizada no Congresso do país.” (https://exame.abril.com.br/mundo/mais-de-140-milhoes-de-pessoas-sao-pobres-nos-estados-unidos-denuncia-ong/).

“Nos Estados Unidos há 553.000 pessoas sem moradia segundo o último censo do Departamento de Habitação publicado no início de dezembro.” (https://brasil.elpais.com/brasil2017/12/30/internacional/-1514632186_267085.html).

Se o problema da Venezuela é mesmo humanitário, qual país irá liderar a invasão aos EUA para acabar com a miséria e a pobreza do país mais rico do mundo? O problema dos Estados Unidos é que o país é rico, porém, devido a enorme concentração de renda, desemprego e trabalho precarizado, uma grande parcela de sua população é pobre! O capitalismo já demonstrou, através de diversas crises econômicas, sua total incapacidade de resolver os maiores problemas sociais e desigualdades no mundo!

A única intervenção que a Venezuela precisa neste momento é de caráter humanitário. Quem tem que invadir a Venezuela são as organizações internacionais humanitárias, como a Cruz Vermelha, Caritas Internacional, MSF – Médicos sem Fronteiras, ONU/UNICEF, BRAC e outras.