Na retórica literária

     Dados os fascinantes elementos que a compõem, a Cabala tornou-se apta a fornecerrecursos de essência e de estrutura à arte da retrórica literária moderna. Nos escritos do mencionado Abuláfia, os vocábulos cujas letras devem ser postas e transpostas dos mais variados modos durante aexercitação nas incursões daqueles domínios metafísicos para alcançar o estado de êxtase aparecem anarquicamente dispostos em círculos, linhas oblíquas e em traçados geométricos irregulares de direções inesperadas; a representarem talvez os processos de soltura e o se  da alma de seus laços físicos, a que acima se referiu.

     Ora, tal rebelião contra o convencionalismo estático dos textos comuns de leitura constitui-se em teoria e regra na moderníssima poesia. Esta corrente na literatura contemporânea oferece ao leitor um meio de expressão desatado das normas clássicas de escrever em linhas invariavelmente horizontais, utilizando-se de versos cujas palavras estão dispostas em formas geometricamente quebradas e imperfeitas.

     Além da forma, também os conceitos da Cabala aparecem utilizados na estrutura de obras literárias da atualidade. Umberto Eco, escritor italiano, considerado fenômeno de massas, abre eu livro O Pêndulo de Foucault com a Árvore representativa do sistema de dez sefiroth, a que a cima já se fez menção, e com um excerto no original hebraico da Cabala de Isaac Luria acerca da criação circular e esférica do Universo. O próprio texto é estruturado em dez partes cujos títulos são paralelos às denominações hebraicas das ditas dez emanações divinas (sefiroth) que constituem parte essencial na doutrina cabalística, representativas das dez emanações ou atributos de Deus, incognoscível de outra forma aos homens.

    O autor estabelece igualmente um paralelismo entre o conteúdo das dez partes do seu romance erudito e o significado atribuído a cada uma das dez emanações na interpretação da Cabala

     De forma semelhante, o mito partidos dos vasos da expostamesma Cabalaluriânica, já exposta antes, serviu de título e de conceito para a obra em seis volumes do escritor israelense David Schachar, “O Tempo dos Vasos Partidos”. Sugere-se com isso que os recipientes de nosso mundo real e limitado fraturaram-se por incapacidade de conter a espiritualidade, ilimitada por natureza.

Outrossim, nos estudos acerca do mistério que envolve a personalidade de Bernardim Ribeiro e o significado simbólico de sua obra ”Menina e Moça” na literatura portuguesa quinhentista, houve quem fosse buscar a solução na temática e nos métodos anagramáticos da Cabala, cuja influência nesse tempo era notória.

     Os paralelos supostamente existentes entre alguns passos do “Livro do Esplendor” e outros do enigmático texto português ofereceriam a soluçãodo problema. Vínculos invisíveis estariam ligando os conceitosexpressos por Bernardim Ribeiro aos que tinham sido tomados como expressão ideológica da Cabala expostas naquela antiga obra.

     Ainda que se trate, no caso, de hipótese interpretativa de significados, sujeita a provas complexas para que se torne válida, tal opção de soluções da Cabala, por si, erige-se como um fato a figurar na história da moderna retórica literária.

     Cumpre notar que, já antes, D. Carolina Michelis de Vasconcelos lembrou ocostume de considerar Bernardim Ribeiro como primeiro autor português que lançou mão do sistema anagramático cabalista para mascarar pessoas e idéias mediante a transposição das letras de sua nomenclatura comum. Dava-se assim novidade conceitual, sentido profundo e profético e nova sonoridade a formas linguísticas vulgarizadas.

     Um lugar central, finalmente, na presente tentativa de alinhar, ao acaso, algumas manifestações da modernidade, adaptação da Cabala, cabe às recentes suposições que vinculam essa doutrina antiga a Luís de Camões esse poeta eternamente “desconhecido”em cuja obra os curiosos, com bons ou maus argumentos, jamais deixarão de revelar novas e extravagantes facetas.

     Autores modernos, com efeito, apontam a existência de uma relação entre a estrutura dos dez Lusíadas e a árvore ou sequência das dez sefiroth da Cabala. Tal correspondência proporcionaria uma leitura nova de “Os Lusíadas“ e, quiçá, uma nova origem ética ética ao seu autor que passaria a ser considerado cristão-novo ou judeu.

     O primeiro impulso para essa perspectivação do poema teria sido dado por Jorge de Sena, sendo seguido com entusiasmo intelectual por uma ensaísta contemporânea que se confessa fascinada, pelas histórias da História.

     Tudo isso é o que poderia chamar de vestígios úteis da velha Cabala em nosso tempo.