Na Casa dos "Alemão"

 

O velho Alemão acaba de chegar da vila.

Vê, satisfeito, os caminhões preparados para a viagem, do dia seguinte.

Como verdadeiro patriarca é cercado pelos filhos e genros com quem está abrindo uma fazenda perto de Cacoal, no interior de Rondônia.

O clima é de euforia. São vários caminhões de mudança e mais alguns, feito jaulas, onde irão alguns animais, alguns peões: pequenos proprietários que, já sem terra e sem rumo, aceitaram a proposta de trabalhar para o patriarca em troca da viagem, da comida e das diárias.

Todos os peões sabem que a viagem será extremamente dura.

Já ouviram muitas notícias de outras viagens. Todos conheceram alguém que já foi para Rondônia ou que de lá voltou trazendo notícias: muitas possibilidades de riqueza; muita facilidade para morrer. Naqueles infinitos sertões do sul da Amazônia é muito fácil de morrer de diversas mortes: malária, mordida de cobra, bala tocaiada no meio da noite, perdendo-se mato, rios violentos com sumidouros entre pedras, flechas de vários tamanhos e diversos venenos. Todos sabem de mais de uma história de morte e de pouca fortuna.

Mas o infortúnio comum, convida! A má sorte nas lavouras, convida! As dívidas e a vontade de saldá-las, convida! Até os tropeços amorosos são motivos para embrenhar-se na aventura de Rondônia. Principalmente porque o governo e as empresas colonizadoras vendem muito bem a ideia: Rondônia é o paraíso.

É verdade que algumas histórias de algumas mortes criava um certo “sei lá! Será que vale a pena?

Semelhante ao “diz-que-me-disse”, quando se soube da morte do Neco. Na realidade foi um só alvoroço na vila o dia que chegou a notícia da sua morte.

O Neco era um rapazote que engravidara a filha de um mineirinho, ali mesmo perto de Campo Mourão, e fugira para Rondônia.

Bom violeiro estava o Neco tomando umas pingas e tocando viola num barraco feito bar, naqueles fins de mundo de Rondônia. Num projeto novo, na extensão Rolim de Moura, do Pic-Gy-Paraná.

Conta-se que ao voltar para sua cabana, diante da porta, foi surpreendido por um tiro de espingarda... quem ouviu o barulho disse que era uma doze! Muita gente disse que ouviu o tiro, mas tiros na noite eram comuns e só no dia seguinte ele foi encontrado com as tripas esparramadas numa poça de sangue.

Todos da vila sabem da história do que aconteceu com o seu Tião Caçador. Dizem que saiu, de manhãzinha para caçar, lá por perto de Cacoal. Deu a noite e dona Lurdes, já preocupada, não via o esposo chegar. Chamou o caçula e pegou uma lamparina. Saiu na direção que Tião sempre saia. Ela sabia de uma espera, perto do rio que passa ali pertinho.

Chegou lá e viu o Tião desmaiado numa poça de sangue. O pedaço da perna que sobrou estava amarrado para estancar o sangue.

Noite todinha pra retirá-lo e levar para a vila e esperar o dia seguinte para o helicóptero do INCRA levar pro hospital.

Foi lá que ele contou: Estava tomando água, agachado na beira do rio. Escorregou e uma perna foi para dentro d’água, entre uns galhos. O jacaré só deu uma mordida e uma retorcida.

Ele ainda teve força para disparar a espingarda e se arrastar para a margem.

Desmaiou e foi encontrado pela esposa.

As notícias de escaramuças com índios ou escravidão branca eram mais veladas. Todos sabiam de algum caso. Mas ninguém comentava abertamente. Havia como que um pacto de silêncio...ou de medo.

E ali, no grande terreiro da fazenda que fora dos Alemão estavam alguns caminhões: de mudança e de grades para o transporte dos peões e animais. Era uma viagem em busca do desconhecido.

Ao encontro do mito. Em busca do sonho.

Em busca de trabalho, pois dos ouros de Rondônia, lá pelas terras do sul quase não se falava. No sul do país a palavra era derrubar o mato, trabalhar a terra, fazê-la produzir!

Ali no terreiro da fazenda o velho Alemão conversava com seu clã. Dava as últimas instruções. Transmitia as últimas informações. Acabara de chegar da vila com a documentação pronta para a viagem. Uma viagem definitiva. Foram vários meses em que ele e os filhos e genros viajaram sozinhos para abrir a fazenda. Agora estava tudo preparado e pronto para levarem as esposas e filhas. A partida seria no dia seguinte.

No dia seguinte os novos donos da antiga fazenda dos Alemão tomariam posse. Novos tempos já estavam espalhados pelo grande terreiro, na forma de algumas máquinas: tratores, arados, grades...

O café seria arrancado para dar lugar à soja... as casas dos antigos meeiros já haviam sido demolidas para aumentar a área de plantio.

Os peões, arregimentados à custa de muita conversa, estavam se despedindo das famílias. Essa fora uma exigência do velho alemão: ninguém podia levar família.

- As dificuldades são muitas. Depois que abrirmos a estrada, vocês voltam pra buscar a família, dizia o velho Alemão!

Na verdade a exigência era para que se contratasse apenas peões sem família. Para o caso de algum imprevisto não ter a dificuldade de comunicar aos parentes. Naqueles fins de mundo de Rondônia já se acumulam os túmulos de desconhecidos que morreram. Adubo de migrante para enriquecer o chão do território.

A viagem marcada, os caminhões preparados, peonada passando a última noite com a parentagem do Paraná, para uma viagem ao incerto desconhecido. Incerto, mas com uma só esperança: a riqueza estava esperando em Rondônia.

 

Neri de Paula Carneiro

Rolim de Moura - RO