Por: Emanuel Isaque Cordeiro da Silva

Toda utopia se apoia em um "nós". E todo nós precisa de narrativas para dizer quem somos e de ideais para dizer como nos tornamos o que somos. Nós também, portanto. Mas o problema é saber o que ele é, porque esses nós dispersos não formam mais uma comunidade, talvez nem mesmo uma coletividade. Nossos ideais contemporâneos deixam transparecer 
dúvidas. Não podemos mais nos definir por nossas comunidades de pertencimento: elas são imprecisas; nem por uma identidade de raças: elas não existem; nem por identidades de culturas: elas são porosas; nem por identidades sociais: elas se tornaram insuficientes, as solidariedades de classe ruíram na era das reivindicações fragmentadas. Então quem somos nós coletivamente, nós titulares de direitos individuais? Seres humanos, já que existem direitos humanos? Mas por que seríamos os únicos a nos beneficiar de direitos? Por que não todas as mentes que pensam, logo os robôs também, ou todos os organismos que sentem, logo os animais sensíveis também?

Quem somos nós? Nós os homens, nós os viventes, nós os espíritos. A natureza humana não é uma velha quimera metafísica? Ou um preconceito religioso herdado do monoteísmo? Nós compartilhamos uma mesma essência: a da humanidade?

Isso desagrada ao que nos resta de progressismo. Dizer "a humanidade" é recusar-se a dizer os homens ou as mulheres, os ricos ou os pobres, os aproveitadores ou os abandonados. Dizer "o homem" é sufocar com o véu da ignorância a voz dos dominados ou dos explorados: as mulheres, as culturas minoritárias, os animais etc.

O que a Modernidade produziu de relativismo, apesar de herdado do velho humanismo, vai no mesmo sentido. Todo pretenso universal atribuído à humanidade em geral seria, no fundo, apenas a projeção dos valores particulares da cultura dominante. Os direitos humanos, por exemplo, seriam inseparáveis da cultura europeia do século XVIII, época em que surgiram (luta contra o absolutismo, filosofia do liberalismo, sonho de uma igualdade formal). Pior: todo pretenso universal seria apenas a tradução dos interesses particulares dos poderosos. Em resumo, a "humanidade" se batizou "civilização" para esconder a barbárie.

Essa desconfiança contra a humanidade tem um equivalente em todas as correntes filosóficas, culturais e artísticas marcadas pela "desconstrução" da metafísica. Seria conveniente nos livrarmos dessas categorias herdadas, violentas demais para serem honestas, e forçosamente totalitárias: "o Ser", "o Sujeito", "a Essência", "a Razão", "o Uno", "o Sentido", "a Arte" etc., que se entrecruzam na ideia de "Homem", a qual é sua resultante ou talvez sua última fonte. A diferença: é isso que importa.

Esse antiessencialismo parece poder ser justificado pela nova ciência rainha: a biologia. A biologia molecular contribuiu para a popularização da ideia de continuidade de todas as formas do vivente (especialmente de todos os animais, sejam humanos ou não) e a da continuidade do vivente e do inerte (especialmente do natural e do artificial, do orgânico e do informático).

Queremos reduzir a humanidade a uma espécie biológica? A biologia da evolução nos ensinou que nenhuma realidade viva é constante ou claramente determinada. A unicidade da espécie humana o "gênero humano", como se dizia — estava ligada, na tradição religiosa, filosófica ou científica, a um pressuposto fixista: cada espécie viva era definida de uma vez por todas e hierarquizada no topo, o homem. Hoje, querer confinar a espécie humana em uma definição é não admitir a indeterminação dinâmica das espécies e a precariedade das fronteiras  que as separam: seria retornar a uma biologia pré-darwiniana. Deus não criou por toda a eternidade a essência do Cão ou do Macaco. O mesmo vale para o Homem. Como todas as outras espécies, ele não tem limites claramente definidos.

Mas o homem não desapareceu apenas da paisagem biológica: ele desapareceu até mesmo das ciências humanas, por influência do postulado naturalista das neurociências e do paradigma cognitivista. Porque a cognição não tem nada de especialmente humano: a percepção pode ser atribuída tanto aos robôs como aos guepardos, existe memória tanto nos elefantes quanto nos computadores, a inteligência é natural nos macacos e artificial no Google DeepMind, existe linguagem nas abelhas, no DNA e nos programas de computador etc. Segundo o postulado naturalista, não existe essência do homem porque a realidade humana está além do homem: no "espírito" em geral (the mind, e não der Geist), seja ele encarnado em seres vivos (animais) ou em seres artificiais (máquinas).

A "filosofia do espírito" que acompanha essa mudança de paradigma, portanto, não se concentra no humano, pois o espírito pode residir em qualquer suporte, seja orgânico (o cérebro de um ser vivo) ou informático (o processador de um computador). As fronteiras clássicas do humano, quer sejam as barreiras metafisicas (o Espírito oposto à Matéria, a alma oposta ao corpo), quer sejam as antigas linhas de demarcação antropológicas (a cultura oposta à natureza), ruíram. O humano é vago, entre o natural e o artificial. O homem é impreciso, entre o animal e a máquina. É a partir desse anti-humanismo que hoje se constroem os dois principais caminhos da utopia: o infra-humanista ou o supra-humanista. Como dois caminhos opostos. Porque desconhecendo quem somos, hesitamos sobre o que aspiramos a ser. 

Esse é uma cópia do livro: FRANCIS WOLFF. Três Utopias Contemporâneas. São Paulo: Unesp, 2018.