PRIMEIRO ATO:

Corria o ano de 1978 (segundo semestre,  em pleno crepúsculo do inverno), quando a Faculdade de Direito já havia migrado do tradicional prédio da Esteves Júnior (Centro de Florianópolis) para o Campus da Universidade Federal de Santa Catarina. Numa certa manhã,  durante o intervalo de aula, fui procurado por “Cao” (Luiz Carlos Cancellier de Olivo), colega de curso em algumas cadeiras, para uma conversa informal. 

Nesse nosso primeiro contato “Cao”  quis saber minha opinião sobre uma reportagem publicada no jornal “O Estado” (na época principal mídia impressa em todo o território catarinense) a respeito do curso de Direito  (talvez em razão da nova fase no “Campus Universitário”).  Quem havia capitaneado a matéria foi outro colega (Zeca da Câmpora, já falecido, figura bastante emblemática no nosso meio estudantil).  “Zeca da Câmpora" havia me procurado dias antes na mesma lanchonete do “Centro Acadêmico”, querendo me sondar se participaria daquela reportagem  (no meu caso desconhecia que “Cao” tivesse ligações com o mencionado veículo de imprensa e que teria partido de ambos a iniciativa de promover a matéria).

Dias antes desse encontro havia sido publicada a reportagem e meu nome foi citado como um dos alunos formadores de opinião, cujo conteúdo não despertou muito a minha atenção. Porém, o que realmente encapsulou meu destaque foi a figura do “Cao” dando a nítida visão de colher o "feedback" por meio de minhas impressões sobre a abordagem e repercussão da matéria.  Ao largo dessa noção principal, meu interlocutor chamava a atenção ao seu estilo quase que “hippie”, mas não era, muito pelo contrário (magro, pela branca, cabelos compridos e rebeldes, vestes casuais, tênis surrado, calça jeans justa e desbotadas), e também a sua estratégia de se aproximar e puxar assunto como se fôssemos velhos conhecidos, cuja conversa denotava uma habilidade sublimar, muito além de nós que mais parecíamos calouros.  Outro fato que me chamou a atenção foi que “Cao” falava com o olhar e “entoava” um brilho cativante obtemperado por sua voz macia e seus trejeitos corporais como se quisesse fazer um bailado silencioso e dirigido.   

Sem dar muita importância ao prato principal e até surpreso por ter sido procurado naquelas circunstâncias (até então estava à frente de uma figura estranha) para tratar daquele assunto, fixei-me mais na pessoa, despertado por uma profusão de impressões que transitavam entre o místico e o metafísico.

Depois desse nosso primeiro contato e, talvez, frustrando o interesse quanto a se ouvir algum comentário positivo a respeito daquela reportagem, não registro alguma outra conversa nos anos que se seguiram. E pensei: “Com esse estilo despojado e ‘vestal’ não boto muita fé no destino desse colega”.

SEGUNDO ATO:

Passado os anos, numa outra manhã de verão do ano de 1996, quando ocupava o cargo de Diretor da Penitenciária de Florianópolis, fui surpreendido com um comunicado vindo da guarita avisando que um colega de faculdade estava no local para uma visita. Seu nome: “Luiz Carlos Cancellier de Olivo”.  Desci às pressas as escadas e me dirigi até o pátio externo, quando avistei “Cao” em pessoa, só que agora parecendo bem diferente daquele personagem que havia conhecido na época da faculdade.  Tinha conhecimento que ele havia trabalhado em Brasília como Chefe de Gabinete do Senador Nelson Wedekin e agora aparentava um estilo hábil e empírico no trato, totalmente moldado dentro de uma perspectiva política.

Logo no início, depois dos cumprimentos informais, “Cao” relatou ainda com um certo misto de suavidade e habilidade, que estava assessorando o ex-Senador Nelson Wedekin agora na Presidente do “BRDE” (Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul), com sede na Capital.  Como desconhecia essa informação, mas não impactado, tratei de parabenizá-lo. Em seguida “Cao” me perguntou como estavam as “oficinas” na Penitenciária e prestei alguns esclarecimentos. Meu interlocutor me surpreendeu com a proposta de montarmos uma fábrica de caixão de defuntos para indigentes, utilizando a marcenaria da penitenciária e a mão de obra barata dos presos. Para tanto, propôs a liberação de um empréstimo que sugeriu que fosse de um milhão junto ao referido "Banco", sendo que conseguiria liberar uns oitocentos mil reais. “Cao” argumentou que para tanto eu deveria apresentar um imóvel como garantia do empréstimo. 

Após me refazer da proposta e até levando na “brincadeira”, argumentei que não tinha interesse em empréstimo algum e muito menos numa sociedade para fabricar “caixões de defuntos”. “Cao” tentou me persuadir dizendo que seria um negócio altamente rentável, pois os “caixões de defuntos” seriam para “indigentes”, que faria os contatos com as prefeituras no interior do Estado (possuía amizade com vários prefeitos) para assegurar a aquisição do produto. Como percebi que era uma proposta séria argumentei que na condição de Diretor da Penitenciária não teria condições de criar uma empresa com essa finalidade. “Cao” argumentou que eu arranjasse algum familiar ou amigo para figurar como proprietário e que não poderia perder a oportunidade de empréstimo de um milhão de reais, cujos juros eram mínimos e com prazos de carência (apesar de ser liberado cerca de oitocentos mil, já que o restante seriam custos, taxas...).  Procurando por um fim nessa proposta que beirava o absurdo reiterei que não tinha interesse no empréstimo e muito menos na fábrica de “caixões de defuntos” para indigentes. E nesse clima novamente frustrante nos despedimos. Nunca mais mantivemos contato para tratar desse ou de outro assunto.

TERCEIRO ATO:

No ano de 2014, durante o período outonal,  tive que ir até a secretaria do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina a fim de apanhar o relatório do meu histórico escolar. Como já tinha conhecimento que “Cao” era professor do curso de Direito e Diretor do Centro Acadêmico cheguei a pensar em lhe fazer uma visita.  No instante que cheguei na secretaria, isso no período da manhã, durante o atendimento no balcão, percebi que “Cao”  havia adentrado no recinto, agora trajando terno completo, bem apessoado e logo pensei: "Olha quem está aí, Doutor Luiz Carlos Cancellier de Olivo". Logo que percebi sua presença, estranhando de início que o mesmo estivesse me ignorando (dava a impressão que quisesse me evitar, ignorar ou mesmo que realmente não tivesse me visto...), lancei uma frase (quase numa brincadeira, justamente para quem intuia ser um mestre em "segredar") com voz alta e provocativa: “E daí ‘Cao’, como é que vai o projeto da nossa fábrica de ‘caixões de defunto?’”.  Esperava que ele viesse me cumprimentar  e que interagisse mediante a minha indagação solerte. Mas ao contrário, “Cao” continuou me ignorando, mais ainda, deu a impressão que demonstrava um certo desconforto com minha jocosidade aparente, mais parecendo naquele instante querer abreviar sua estadia no recinto, em cujo local minutos antes havia adentrado pela porta interior localizada no fundo  que ligava seu gabinete.  No momento que tinha tentado iniciar aquela conversação pude observar que as duas funcionárias da secretaria se entreolharam, deixando escapar um “sorriso” tenso, como se algo cômico tivessem ouvido e que se contrapunha a figura encetada do “chefe”. Depois que me foi fornecido o histórico escolar deixei o local e, enquanto caminhava,  relembrei  esses três primeiros momentos de nossas vidas me indagando se haveria uma próxima estação.

QUARTO ATO:

Dia 02 de outubro de 2017, ainda sob o limiar primaveril, por volta das dez horas e trinta cheguei no Shopping Beira Mar Norte (Florianópolis) e logo de início verifiquei uma certa movimentação na frente do estabelecimento. Havia um carro do Corpo de Bombeiros estacionado na área destinada aos taxis, policiais militares e seguranças em atitude quase que suspeita. Quando acessei o interior do Shopping estranhei uma tenda verde armada no piso térreo onde está localizado o “poço”. A escada rolante que dá acesso ao primeiro andar se encontrava inacessível. Havia seguranças discretamente espalhados monitorando o ambiente interno.  Em seguida recebi uma mensagem no celular (via “WhatsApp”) de minha filha que estava no velho mundo me avisando que havia recebido uma mensagem (“https:G1 Globo”)  com o seguinte conteúdo: “Reitor afastado da UFSC é encontrado morto em Shopping em Florianópolis”.

Não quis acreditar no que parecia irreal, mas segundo foi informado constava que “Cao” teria se dirigido no seu carro até o estacionamento do Shopping, isso por volta das dez horas, depois acessou  o último piso (sexto andar) e de lá se projetou  ao “finito” trágico para beijar o piso térreo, justamente no horário das dez horas e quinze minutos, isto é, minutos antes da minha chegada.

Na tentativa de me refazer da notícia fui conversar com “Lucas” (Queiroz) que possui um “quiosque” em frente a “Livraria Saraiva” e  meu conhecia há anos. “Lucas” relatou que no momento da trajédia estava de frente para o “poço” e testemunhou o lance de visu, flagrando o corpo atingir primeiramente o corrimão do andar térreo da escada rolante, vindo em seguida se projetar no chão.

Lamentei o ocorrido e ao mesmo tempo me cobrei por não ter chegado no Shopping minutos antes do ocorrido, acreditando numa suposta chance de abortar aquela decisão fatídica, em cuja ocasião poderia tê-lo convidado para um cafezinho, batermos um papo informal sobre arte, contracultura, Woodstock, falarmos da nossa época de faculdade, até da fábrica de “caixões de defuntos” e de tantas coisas do passado, presente e futuro, da nossa juventude descolada, dos tempos da política estudantil, da sua carreira gloriosa como professor e reitor da UFSC.

De resto, o destino me reservou a missão de tecer relatos e rememorar fatos verdadeiros a respeito do meu ex-colega, especialmente, para meus familiares e amigos, externando minhas convicções sobre uma prisao ignóbil ou uma possível inocência no caso das denúncias de corrupção da UFSC (desvio de verbas) e o que motivou procurar um destino errático (considerando o "escrito" no bilhete encontrado no bolso de sua calça logo após a sua morte). É o que realmente pode se esperar para o resgate da sua biografia e assim se recuperar o brilho perante seus amigos (e jornalistas da terra com a reputação e quilate de Moacir Pereira, Cacau Menezes, dentre tantos outros, com destaque às manifestações efusivas do Deputado Federal Esperidião Amin - SC na Câmara Federal a respeito do protagonista da trágica ocorrência), mesmo os que  foram somente metafisicamente.