VIANA, Henrique Guilherme Guimarães Viana. Mestrando (1), KAUSS, Vera Lucia Teixeira. Orientadora (2). MARTINS, Angela Maria Roberti. Coorientadora (3). Este artigo é parte integrante do Capítulo III da minha Dissertação de Mestrado (2015): Cansada(s) de viver: do mito romântico das heroinas nativas à iconografia brasileira oitocentista, defendida na Universidade do Grande Rio Prof. José de Souza Herdy (UNIGRANRIO) e nunca publicada em periódicos ou sites/blogs/facebook/web. As duas heroinas embora estejam no mesmo capítulo, são analisadas, histórica, artística, literária e iconograficamente de formas distintas.No próximo artigo, será analisada a personagem indígena Lindóia literária, artística e iconográfica.

“Ah! Diogo cruel’ disse com mágoa.

E sem mais vista ser sorveu-se n’água”.

(DURÃO: 2006, p.147)

                 Provavelmente, o leitor sinta um estranhamento ao se deparar com o título do subitem deste capítulo, Moema(s), e não Moema, ou seja, o acréscimo da consoante (s) ao substantivo próprio. Moema é uma personagem literária, com breve passagem no texto Caramuru, Poema Épico do Descobrimento da Bahia, de Santa Rita Durão, publicado em 1781. Durão foi um religioso agostiniano brasileiro do período colonial, além de orador e poeta. É também considerado um dos precursores do indianismo no Brasil. Seu poema épico Caramuru é a primeira obra narrativa escrita a ter, como tema, o habitante nativo do Brasil.

O poema de Santa Rita Durão conta os fatos vivenciados por Diogo Álvares, que viria a ser chamado de Caramuru pelos indígenas que encontrou no litoral baiano, após ter quase morrido quando o navio em que viajava naufragou no mar do que ainda não era o Brasil. Ele e alguns companheiros de aventuras conseguiram salvar-se de morrer afogados, mas, em terra firme, encontraram-se com os habitantes daquela terra ainda desconhecida: indígenas de um povo antropófago. Além de sobreviver ao ritual indígena, ele se torna uma espécie de “deus” do trovão ou do fogo por causa da espingarda que havia conseguido salvar em meio aos destroços do navio que afundara e com que, num tiro certeiro, havia matado um pássaro voando em uma caçada. Como não conheciam a pólvora, os indígenas pensaram que Diogo, chamado a partir de então de Caramuru, tinha ligações com o mundo espiritual que tanto temiam.

Vivendo na aldeia, várias moças foram oferecidas a Caramuru – costume comum entre os povos indígenas, que valorizavam os laços de parentesco que essas uniões significavam – para se tornarem suas esposas. No entanto, uma em especial chamou a atenção do explorador português: Paraguaçu, filha do cacique Taparica, do povo Tupinambá.

Tempos depois, o explorador lusitano, de nome Diogo Álvares, deixa a América partindo para o Velho Mundo. Em sua companhia ele leva a nativa Paraguaçu, pronta para se converter ao cristianismo e ser desposada pelo mesmo. Nesse instante o laço entre os dois se estreita. Quando o navio parte, algumas amantes de Caramuru seguem pelo mar nadando. Todas desistem pela fatiga do percurso, menos Moema que segura no leme do navio, pragueja o casal e submerge-se nas águas. Mesmo com uma participação secundária no poema, ela protagoniza uma das mais importantes cenas da literatura e das artes plásticas no século XIX.

 Observando o Canto VI, entre as oitavas 36 e 43, iremos entender mais pormenorizadamente o episódio da morte de Moema, uma mulher profundamente apaixonada por Caramuru. Ambientação comum para a literatura do século XIX, Moema vivia entre a barbárie e o mito sentimental, ou seja, a barbárie por ela ser bárbara e não europeia e o mito sentimental por ela ter, ao mesmo tempo, a alma e os sentimentos nobres sob uma perspectiva eurocêntrica.

              Sob outro aspecto, podemos afirmar que o romantismo brasileiro não glorificou os castelos da Idade Média europeia, tão pouco as novelas de cavalaria, a coragem e a aflição das mulheres que esperavam seus amores regressarem de guerras infindáveis. “Mas a transposição dessa mitologia para as artes nacionais foi engenhosa e entusiástica, melhor diríamos, patriótica, ufanista e nacionalista” (MIYOSHI: 2008, p.1)

Moema permaneceu em destaque no imaginário brasileiro oitocentista, de modo que ela passa a ser pontual na obra de Durão, comparando-se com Paraguaçu.

A sua idealização na obra literária não é simétrica com a representação visual, quer seja na representação do quadro de Meirelles, em 1866, que hoje se encontra no MASP-SP; quer na escultura de Rodolfo Bernardelli, que se encontra no acervo do MNBA. Este capítulo da dissertação busca analisar o contexto comum entre essas duas representações pictóricas e a literária da personagem de Durão. Esse subitem busca, então, relacionar a narrativa literária e a pictórica de Durão e Meirelles, primeiramente, e, depois, de Durão e Bernardelli, a partir dessa personagem que ganhou destaque pela intensidade de seu amor pelo português Diogo Álvares.

Nesse processo, podemos dizer que o poema Caramuru permite uma imensidade de maneiras ou caminhos que podemos seguir para analisá-lo com relação a sua temática, como, por exemplo: pelo erotismo, pelo exotismo, pelo sentido da perda, do sofrimento, do amor, da morte, do prazer em sofrer, e, também como a representação alegórica do Brasil (enquanto outra forma de falar da beleza do Brasil através da beleza de Moema).

Frei José de Santa Rita Durão (1722-1784) foi um clérigo agostiniano que viveu no Brasil colonial, era orador e poeta. É um dos pioneiros na temática indianista no Brasil escrita por brasileiros. A obra do frei é ímpar, pois agrega informações precisas sobre a fauna e a flora nativas do Brasil na época e sobre as sociedades indígenas, a partir de cinco partes que compõe a epopeia no formato clássico. O poema épico possui dez cantos que, com singularidade, agrega a influência camoniana, como observamos nas oitavas rimadas.

A obra Caramuru, poema épico do Descobrimento da Bahia é uma homenagem do religioso ao Brasil. No entanto, a crítica contemporânea proferiu duras palavras sobre o poema e, por causa desses comentários, Santa Rita Durão destruiu o resto de sua obra. A temática central é a história da Bahia e o desenvolvimento da colonização portuguesa no Brasil daquela época. Os principais personagens são Diogo Álvares Correia (Caramuru), Gupeva (chefe nativo), Jararaca, Sergipe, Moema (uma das amantes de Diogo) e Paraguaçu (filha do cacique Taparica). A construção do poema tem o objetivo de informar, forma-se por um real registro histórico, pela precisão da descrição dos costumes da época. Conforme nos diz Santos:

O homem vê e adapta a natureza a seus próprios interesses, ele a humaniza ou a destrói, tornando-a algo para si ou para o seu controle ou ainda a quer para uma interpretação aprazível ou pitoresca. A noção da natureza, ou a que dela formamos, é uma ideia cultural. A ideia de natureza ou qualquer outro sentido que a ela se atribui, dependendo do período e do meio de expressão, tem no binômio arte-natureza um jogo de espelhos múltiplos com perguntas como: a arte espelha a natureza, ou a natureza é o espelho da alma? (SANTOS: 1993, vii).

Deste modo, quer seja na descrição literária quer seja na iconográfica do século XIX, trilhando não só a hipótese de um diadema comum entre natureza, paisagem e arte, bem como também afirmando, novamente, que desde o Brasil Colônia até o século XIX, a paisagem esteve presente para Albert Echaut, Franz Post, Lebreton, Debret, artistas que registraram a paisagem exuberante daquela nova terra.

Assim, a narrativa é agregada de referências a eventos históricos desde a época do descobrimento até a contemporaneidade do autor. Caramuru, o poema épico do descobrimento da Bahia é a primeira obra a centralizar seu tema em torno do habitante nativo do Brasil, do choque cultural luso-índio e a ter uma estruturação de ordem histórica. Moema é brevemente mencionada na obra, enquanto Diogo e Paraguaçu são mais citados, no entanto, ela se destacou como nenhuma outra. Diversas obras de outras linguagens artísticas, além da literatura, posteriores dedicariam muito espaço ao trecho “morte de Moema”, segundo o estudo de Miyoshi, foi, para os críticos, a melhor parte da obra de Durão. (MIYOSHI: 2008, p.770)

XXXVI.

He fama então que a multidão formosa

Das Damas, que Diogo pertendião,

Vendo avançar-se a náo na via undosa,

E que a esperança de o alcançar perdião:

Entre as ondas com ansia furiosa

Nadando o Esposo pelo mar seguião,

E nem tanta agoa que fluctua vaga

O ardor que o peito tem, banhando apaga

 

XXXVII.

Copiosa multidão da náoFranceza

Corre a ver o espectaculo assombrada;

E ignorando a occasião da estranha empreza,

Pasma da turba feminil, que nada:

Huma, que ás mais precede em gentileza,

Não vinha menos bella, do que irada:

Era Moema, que de inveja geme,

E já vizinha á náo se apéga ao leme.

 

XXXVIII.

Barbaro (a bella diz) tigre, e não homem...

Porém o tigre por cruel que brame,

Acha forças amor, que em fim o domem;

Só a ti não domou, por mais que eu te ame:

Furias, raios, coriscos, que o ar consomem,

Como não consumis aquelle infame?

Mas pagar tanto amor com tedio, e asco...

Ah que o corisco és tu... raio... penhasco.

 

XXXIX.

Bem puderas, cruel, ter sido esquivo,

Quando eu a fé rendia ao teo engano;

Nem me offendêras a escutar-me altivo,

Que he favor, dado a tempo, hum desengano:

Porém deixando o coração cativo

Com fazer-te a meus rogos sempre humano,

Fugistes-me, traidor, e desta sorte

Paga meo fino amor tão crua morte?

 

XL.

Tão dura ingratidão menos sentira,

E esse fado cruel doce me fora,

Se a meo despeito triunfar não vira

Essa indigna, essa infame, essa traidora:

Por serva, por escrava te seguíra;

Se não temêra de chamar Senhora

A vil Paraguaçu, que sem que o creia,

Sobre ser-me infrior, henescia, e feia.

 

XLI.

Em fim, tens coração de ver-me afflita,

Flutuar moribunda entre estas ondas,

Nem o passado amor teu peito incita

A um ai somente, com que aos meus respondas

Barbaro, se esta fé teu peito irrita,

(Disse, vendo-o fugir) ah não te escondas;

Dispara sobre mim teu cruel raio...

E indo a dizer o mais, cahe n’um desmaio.

 

XLII.

Perde o lume dos olhos, pasma, e treme,

Pállida a côr, o aspecto moribundo,

Com mão já sem vigor, soltando o leme,

Entre as salsas escumas desce ao fundo:

Mas na onda do mar, que irado freme,

Tornando a apparecer desde o profundo;

Ah Diogo cruel! disse com mágoa,

E sem mais vista ser, sorveo-se n’agoa.

 

XLIII.

Chorárão da Bahia as Nynfas bellas,

Que nadando a Moema acompanhavão;

E vendo que sem dor navegão dellas,

Á branca praia com furor tornavão:

Nem pode o claro Heróe sem pena vellas,

Com tantas provas, que de amor lhe davão;

Nem mais lhe lembra o nome de Moema,

Sem que ou amante a chore, ou grato gema.

                                                                                 

(DURÃO: 2006, p.145-147 GRIFO NOSSO)

 

              De acordo com Miyoshi (2008, p.771) Moema parece ter sido uma invenção de Santa Rita Durão que, provavelmente, a criou para inserir algum drama no episódio das amantes afogadas. O episódio dá luz à fábula épica, cerne do poema, destacando a atuação de Diogo no enredo. Portando, em Moema, a revolta dos gentios. Durão deu ênfase ao poder de conquista e resistência de Caramuru, bem como também as qualidades nobres de Paraguaçu.

               A função deste trecho da história seria, então, fortalecer o laço entre Paraguaçu e o herói, demonstrando, dessa forma, o poder do cristianismo sobre a selvagem convertida.  Em meados de 1960, Antonio Candido apontaria que o afogamento ímpar de Moema igualmente ilustrava o afogamento das demais amantes nativas de Caramuru 9.

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9. CANDIDO, Antonio. “Estrutura literária e função histórica”. In Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 5ª edição revista. São Paulo: Editora Nacional, 1976 (Obs.: O texto de Candido foi publicado com o título “Estrutura e função do Caramuru”. In Revista de Letras, nº 2, Assis, SP, 1961.

 

Na representação de Meirelles, em 1866, Moema não é uma representação do poema Caramuru, mas sim o que, na imaginação e liberdade artística de Victor Meirelles, aconteceu com a indígena após ela “sorver-se n’água”. Observando-se as circunstâncias dessa cena, vemos uma possível representação do ideal de morte para o amor no romantismo brasileiro.

Esta é uma das obras mais marcantes do currículo de Victor Meirelles. Essa representação imagética refresca o comportamento clássico no que se refere aos nus horizontais e, simultaneamente, fornece à personagem de Durão uma perspectiva original, talvez até mórbida.

Se o artista obteve êxito na transmutação da personagem para uma luz de originalidade e protagonismo inéditos, o mesmo não ocorreu com o “criador” de Moema, José de Santa Rita Durão, que apenas nos fornece uma descrição da aura encantadora que envolve a personagem e, pelas ações da mesma, nos leva a construir sua índole. Do ponto de vista de Moema, Santa Rita Durão faz um paralelo entre um tigre e Diogo, proporcionando ao leitor imagens de medo e elação.

Aqui, vemos referência à primeira adversidade de Caramuru: o “real” problema que o fez naufragar no Novo Mundo. A maldição jogada por Moema é “imaginária”, rápida e inconstante, talvez por isso ainda mais fulminante, temível e recompensadora para o lusitano.

Quaisquer que sejam os modos, Moema e Paraguaçu representam o combate da selvagem América, seja pela natureza desconhecida ou pela possibilidade de amores, todas elas vencidas por Caramuru.

Embora Moema seja uma das personagens mais recordadas da literatura e que começava a ganhar o aspecto de brasilidade, ela não ultrapassava as fronteiras de uma ideia, de uma construção imagética-mental não visual. Nas versões ilustradas da obra de Santa Rita Durão, não há representações da mesma, sendo desenhados apenas os protagonistas da obra: Caramuru e Paraguaçu. Moema representa a transgressão aos valores indígenas, quando, por exemplo, a índia não cobre sua genitália até mesmo antes de encontrar Diogo, no entanto ela apaixona-se por aquele guerreiro europeu, mas acaba não sendo a escolhida. O seu desaparecimento, ou morte, foi a solução encontrada por Durão para a falta de destino para a personagem, já que Paraguaçu fora a escolhida.

Entretanto, podemos observar que Meirelles não pintou a cena da obra de Durão com exatidão, ele escolheu o momento após ela “sorver-se n’água”: seu corpo aparece na baía, imóvel, afogado em uma natureza exuberante, virado para cima, com a mão sobre a cintura, o braço estendido e as pernas bem próximas. Sua pose inspira delicadeza, ainda que plástica, e isso é reforçado pelo arranjo de penas que cobre sua genitália, pelas longas madeixas escuras ramificadas e ainda com vida. Victor Meirelles integra sua obra à tradição imagética de nus com paisagens naturais de cenário, sonolentos ou sem vida, inconscientes de sua exposição e, desta forma, moralmente aceitos. Além do que, por ser índia, a nudez de Moema inspirava naturalidade, o que evitou críticas.

Moema representa um período de mudanças no cenário das artes visuais internacionalmente. A partir de 1860, são feitos variados nus que ilustram a diversidade de gênero. O ano de 1863 é o ápice desse momento, quando, em Paris, acontece “uma verdadeira batalha de nus” segundo Zerner10. Édouard Manet expôs o Almoço na relva no Salão dos Recusados, e, nessa tela, uma mulher está completamente nua em meio a um grupo de pessoas. Por outro lado, Alexandre Cabanel – que lançou a tendência das ninfas e ondinas nuas e voluptuosas – expôs, no Salão Oficial, um quadro bem apreciado pela crítica e pelos admiradores, comprado por Napoleão III, O Nascimento de Vênus.

Cabanel representa a deusa do amor acordando sonolenta, nua, com os olhos demonstrando ciência de estar sendo observada. A obra chama de igual forma a divindade pagã e a modelo viva e tinha o objetivo de excitar inquietações no público masculino tanto quanto este, vendo-se refletidos nos homens do Almoço na relva, deviam sentir-se constrangidos. 

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10. Referência a obra “O olhar do artista”. In CORBIN, Alain (org.). História do Corpo: da revolução à Grande Guerra.Vol. 2. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 128.

Em uma litografia datada de 1864, Daumier, sarcasticamente, diz que “Este ano, mais Vênus... Sempre Vênus! ... Como se existissem mulheres assim”. (MIYOSHI apud DAUMIER: 2008, p.774) Deusas gregas, ninfas e ondinas nuas e com as formas generosas à moda de Cabanel se popularizavam cada vez mais. Não somente musas nuas eram retratadas, também personagem do teatro e da literatura, vestidas e não nuas, porém agonizantes por causa de determinadas situações amorosas ou outras razões nobres.

A mais famosa dessas personagens é Ofélia de Hamlet, de Shakespeare, representada por inúmeros rafaelitas e vitorianos, Elaine de Astolat do ciclo arturiano e Virgínia de Paul et Virginie são outros exemplos.

Em um universo com Vênus e Ofélia, Moema é um meio-termo, personagem lida de forma diferente por Meirelles, perpassou o gênero pictórico da mulher imersa nas águas do oceano e a procura do assunto pátrio, ambos muito correntes no século XIX.

Toda a composição da obra, até mesmo o navio desaparecendo no horizonte e as índias acenando, são criações de Victor Meirelles que, a partir dos estudos feitos para a confecção de sua obra-prima, Primeira Missa no Brasil (1860), sentiu-se capacitado para usar de liberdade poética em relação ao texto original em sua criação artística.

A tela de Victor Meirelles abre o caminho para outras obras, como Marabá e O último tamoio de Amoedo, aquém da versão da mesma personagem em caráter estatutário de Bernardelli, pois carrega, em si, força, criatividade e suavidade, como observou Jorge Coli:

Moema é abstrata e sintética, purista e geométrica, mais romana que francesa, e embora compartilhe aspectos da arte de Courbet e da literatura de Baudelaire, ela nega a matéria, diferente dos quadros de indígenas mortos ou abandonados que a seguiram, todos mais “realistas” ou “naturalistas” que ela. (MIYOSHI: 2008, p.770).

 

Coli localizou, em Moema, a representação mais fiel das tendências exóticas e eróticas daqueles anos lânguidos. Ela é de igual forma delicada e a perfeita representação de uma mulher que, momentos antes, havia sofrido uma perda terrível.

Meirelles imprime, em seu personagem, a vitimização da índia devido ao choque cultural com os europeus, que só termina com o fim da sua própria vida.

Sob um cenário crepuscular, Pedro Américo de Figueiredo Mello representa a sua Moema quando a lua exibe um grande brilho e uma embarcação afasta-se do corpo sem vida da nativa, que é levado pelas ondas e aporta na praia. Não totalmente submersa, Moema tem um olhar sereno, mas toda a energia descrita por Durão está morta: ela comporta-se como um objeto qualquer com rumo incerto em meio às ondas.

        Deste modo, em relação à representação de Pedro Américo e à escultura de Bernardelli, há uma certa carência com relação ao texto literário; ao passo que a Moema de Meirelles (artista já do Romantismo) ultrapassa os limites do romantismo indianista, conforme nos explica Eugênia Gorini Esmeraldo:

 

Meirelles, com um olhar romântico, retrata o corpo da jovem, deitado à beira do mar, numa pose sensual, com a tanga presa apenas a um dos lados dos quadris, a perna esquerda apoiada numa rocha e os cabelos soltos espalhados na areia. O mar aparece difusamente por detrás e, ao longe, percebe-se a mata, onde sobressaem algumas árvores e palmeiras. A figura bem desenhada demonstra a maestria de Meirelles, que também pode ser vista no desenho preparatório conservado no Museu Nacional de Belas Artes. (ESMERALDO: 1998, p. 1).

 

Jorge Coli, ao traçar um paralelo entre a obra e o poema de Charles Baudelaire, “La chevelure”, analisa a obra da seguinte maneira:

 

Da mórbida necrofilia à úmida e negra medusa dos cabelos, perfumada por odores tropicais saturados de óleo de coco; da água acariciante à ambígua imobilidade do corpo soberbo, uma sensualidade perpassa pelo poema e pela imagem. Moema concentra fortes pulsões desabrochadas nas “Flores do Mal”. Estes anos de 1860 insistem no corpo feminino alongado, com as forças abandonadas, exposto, entregue. Corpos ofertos, tomados pela gravidade, inertes como as longas cabeleiras esparramadas. (...) Moema é mais baudelairiana de todas. Nela se encontram os perfumes capitosos das plagas longínquas, a cor acobreada capaz de acionar um erotismo baseado no estranhamento. Nela o pressuposto do navio que se vai. Nela, ainda, a dádiva do corpo magnífico que é quase um cadáver, o repouso e a morte entrecruzados. (...) Os volumes poderosamente sintéticos, geometrizados, do corpo de Moema, o sombreado definido com poucas transições, o contorno implacável, tornam espiritualizado – não há outra palavra – o insistente tema erótico. (...) A tela conjuga a grande obsessão sensual do tempo, que se repete incansavelmente nas artes internacionais, com o romantismo indianista que se carrega aqui de maresias longínquas. Porque Meireles opera a transfiguração estilística capaz de conduzir a imagem para a fronteira tênue entre a sedução sensível e a beleza da forma. (COLI: 1998, p. 2)

 

 

          A partir do paralelo de Coli, podemos observar como a Moema, obra de Victor Meirelles, permite análises e estudos em diversas áreas de atuação do conhecimento humano, como a própria literatura sob diversos prismas, as várias representações na narrativa visual, na poesia, no teatro, no cinema, enfim versões que mostram a importância de sua obra no contexto artístico e cultural brasileiro.         

 Portanto, Victor Meirelles é o artista que consegue captar a imagem da índia a partir de uma possibilidade: a devolução do corpo, intacto e belo, pelas ondas do mar. Ela está na praia, numa pose delicada, embora um tanto artificial: tem, cobrindo o sexo, a tanga de penas rompida, sem, no entanto, parecer molhada; o mesmo se dá com os cabelos: espalhados pela areia não têm o desalinho dos de uma afogada ¹¹, como tão pouco de uma afogada é a sua expressão facial. Se observarmos bem, parafraseando Maria Aparecida Ribeiro (VEREDAS: 2013, v.1, n.19 p.72-92) podemos dizer que Moema parece somente caída no sono, porque a sugestão de sensualidade e a firmeza das formas não abandonaram seu corpo. A tonalidade da luz, que pode ser do nascer como do pôr do sol, favorece essa interpretação; Moema caminha entre uma linha tênue que divide a beleza do sonho e a beleza que não foi corrompida pela morte.

          Em 1895, Bernardelli fez Moema, uma escultura em bronze, tamanho natural, cinco anos depois que assumiu a direção da Escola Nacional de Belas Artes. Obviamente, a obra se baseia no poema épico Caramuru de Santa Rita Durão. O momento representado é um dos trechos mais famosos do Caramuru: “Ah! Diogo cruel! ” Disse com mágoa. E sem mais vista ser sorveu-se n’água”. Nessa obra, é possível notar que Bernardelli preferiu recorrer ao momento em que o corpo da índia afogada ainda não chegou completamente à praia, dando, dessa forma, grande intensidade dramática à cena. Percebe-se, então, um caráter inédito nas execuções de Rodolfo Bernardelli (1852-1931) em se tratando do relevo, sendo esse um gênero artístico que o acompanha por diversos momentos em suas obras.

Seu legado cristaliza o diálogo com a contemporaneidade da arte europeia naquela época, com o seu saber sobre a sociedade brasileira e a cena artística nacional. Nessa obra, procuramos explanar um olhar panorâmico sobre os relevos mais notáveis do escultor, destacando a temática e a forma.

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¹¹. Aliás, o crítico Gonzaga Duque, contemporâneo de Victor Meirelles foi de opinião que: para uma afogada cuspida à praia, as formas da índia estão demasiado macias e a cor ainda é muito quente.

Para Alfredo Bosi, a partir dos anos 1870, o conservadorismo das oligarquias imperiais viu-se desafiado por uma corrente progressista, defensora da indústria e do trabalho livre e desejosa de equiparar o Brasil aos grandes centros capitalistas e para o qual “o mito do bom selvagem não tinha muito o que dizer. Era um símbolo de outros tempos, forjado pela cultura da Independência, e que só poderia sobreviver como assunto de retórica escolar” 12.

Para analisarmos a escultura Moema de Bernadelli, devemos compreender e ressalvar o fato de que, em História da Arte, pintura e escultura demandam análises diferentes, além do fato de que suas características físicas são divergentes, a análise diferenciada também se justifica pela peculiaridade entre a cronologia e estilística entre a pintura e a escultura principalmente no período que se compreende como romantismo brasileiro.

  A escultura baseia-se em diversos pontos, alguns dos quais podemos elencar como: ponto (referência do olhar), forma (contorno e dimensão da obra), textura (apreciação pelo tato), cor (a forma como o material usado recebe a luz e os olhos captam, é passível de associação com as emoções), movimento (se a obra dá essa impressão ou não) entre outros aspectos.

Especialmente na estatutária do romantismo, podemos perceber que ela vai como a estatutária clássica, como nos afirma Théophile Gautier:

[...]. De todas as artes, aquela       que se prestou menos à expressão da ideia romântica é certamente a escultura. Ela parece ter recebido da Antiguidade sua forma definitiva. Que pode pretender a estatuária sem deuses e heróis da mitologia que lhe fornecem, com pretextos plausíveis, o nu e o drapeado dos quais ela tem necessidade? Todo escultor é forçosamente clássico. (PEREIRA apud GAUTIER: 1988, p. 37)

 

Assim, vemos na estatuária romântica, conforme nos apontou Gautier, a suplantação de elementos da estatuária clássica (nus, drapeados) conforme as temáticas românticas, as quais incluíam a própria evocação do passado, mesmo que esteticamente idealizado.

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¹². [...] Nesse sentido, esses primeiros trabalhos de Bernardelli estariam em sintonia com o novo cenário. Neles, o artista alterou a imagem convencional do indígena, que não é mais representado heroicamente, como um símbolo do Brasil. Por outro lado, essas modificações são sutis. Seu carácter renovador não chegou a ser discutido se quer pela crítica especializada, que se mostrou mais interessada em comentar a qualidade técnica das obras.

Desta forma, para entender os contextos que levaram à produção de Moema, é necessário perpassarmos, rapidamente, pela obra de Bernadelli, de forma a entendermos a técnica e a emoção do artista, para que, compreendendo a diferença da escultura e pintura, possamos analisar ambas de uma melhor forma. Após estar dentro da AIBA, acredita-se que, em 1870, Bernardelli viria a ganhar, apenas anos mais tarde, o PVE pela glória da escultura Príamo implorando o corpo de Heitor a Aquiles. Tal temática havia sido escolhida pela própria instituição. A execução da obra durou, aproximadamente, um mês dada a falta de concorrência para a disputa do PVE. Os protótipos da obra, junto com a mesma, foram expostos ao público em geral por três dias. Devemos, aqui, analisar a recepção dos mestres da Academia em relação à obra, tais comentários foram encontrados no livro Fala do Concurso, documento oficial da AIBA de 16 de setembro de 1876, de autoria de João Maiximiliano Mafra, Ernesto Gomes Maia e Antônio de Pádua e Castro.

O candidato Rodolpho Bernardelli satisfez plenamente as condições do programa e na execução de seu trabalho foi muito além do que era razoável esperar de um aluno de uma escola que ainda principia e se acha tão afastada do centro artístico. Príamo de joelhos implora choroso e cheio de majestade, a clemência de seu cruel inimigo; este herói se deixa comover e na atitude de compaixão revela pela expressão fisionômica que as lágrimas daquele desgraçado ancião lhe têm tocado a alma; a seu lado, um dos seus amigos está visivelmente comovido e mostra o maior empenho na resolução que vê o seu amigo prestes a tomar, em plano mais afastado e dentro da tenda, o outro companheiro de Achilles e uma escrava atendem com todo o interesse a cena que se passa na porta dela, no último plano vê-se o acampamento grego e o arauto do herói de Homero; jaz exangue no primeiro plano o cadáver do grande Heitor. Todo o assunto está completamente desenvolvido. (Museu D. João VI: 1876, Notação 5081).

 

O trecho do documento revela a percepção adotada pelos mestres julgadores da obra e os motivos que trilharam seu caminho até a aceitação. Através do parecer acima citado, o corpo de professores da AIBA entende que o trabalho do escultor Bernardelli está satisfatório em sua execução, musculatura, movimentação e proporção das figuras, salvo pequenos defeitos que desapareceriam com mais alguns dias de trabalho.

Rodolfo Bernardelli era, assim, um artista renovador, com um olhar na transição do final do segundo império para a República, desde os seus relevos iniciais, ainda em gesso, o pensionato na Europa com o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro (PVE) em que executou, inclusive, obras baseadas em romances da literatura como Moema (1895) personagem de Caramuru, de Santa Rita Durão, uma escultura em tamanho natural idealizada e realizada pelo artista naqueles mesmos anos que, por seu tema, remete à tela muito conhecida de Victor Meirelles (1832-1903), Moema (1866). Em 1859, Pedro Américo (1843-1905), como já mencionamos em outro momento, havia feito também um esboço sobre o tema, em que o corpo da índia morta chega à praia, mas encontra-se ainda parcialmente mergulhado na água.

Segundo Migliaccio, o traço característico de Rodolfo Bernardelli se torna diferente dos demais porque, em sua execução formal, a representação de Moema, em tamanho natural, está esteirada no sentido horizontal no seu suporte, tal qual um relevo 13. Notado isso, fica evidente uma nova perspectiva que o escultor dá à obra: deixando-a distante da ideia de uma frisa, ele propõe, ao espectador, diferentes olhares, tornando-se, isso, comum em outras obras do artista – além de Moema, também podemos dar como exemplo Cristo e a mulher adúltera. Nota-se, também, em Moema, a oposição entre o realismo da execução de determinadas regiões do corpo da nativa que se encontram afogadas no mar e a forma não definida de outras, que se confundem com as águas14. Tal feitio de escultura recorda-nos o contato do escultor com a arte italiana contemporânea, principalmente com as obras de Vicenzo Gemito. (1852-1929).

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13.Luciano Migliaccio – Rodolfo Bernardelli. Palestra proferida na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 22 de mai. 2003.

 

14..Poema integrante da série Primeira Parte. In: GUIMARÂES JUNIOR, Luiz. Sonetos e rimas: lírica. Pref. Fialho D’Almeida. E.ed. Lisboa: Liv. Clássica  Ed. De A. M. Teixeira, 1914. Disponível em www.itaucultural.org.br.Acesso em 25.03.2004.

 

Ao abordarmos a temática da obra, podemos ver a confluência de inspirações que guiaram Bernardelli na execução final de Moema: obviamente, ele inspirou-se no poema de Santa Rita Durão, mas também buscou inspiração, muito provavelmente, na poesia de um escritor com quem teve contato em sua estadia na Itália, Luís Guimarães.15

Em Luís Guimarães e Vicenzo Gemito, vemos o retrato de batalhas da época da Guerra do Paraguai. A utilização do não finito em uma porção de figuras somente esboçadas, nos leva a um pensamento de comparação com as execuções de Michelangelo (1475 – 1564). Todavia, devemos nos recordar também da face lúgubre no autorretrato de Pedro Américo, no quadro que retrata a Batalha do Avaí:

o pintor (...) pinta-se no centro do redemoinho, como participante da infantaria. É o único cuja baioneta, retorcida, vem tingida de sangue. (...) Os olhos se dilatam, num esgar demente. Desse rosto irradia-se a loucura dos homens, dele expande-se a violência.16 (COLI: 2005, p.99)

 

O caos e a ruína nascidos da guerra geram, como Coli nos afirma em seu trabalho, as reproduções de Bernardelli em alguns dos seus relevos. Os corpos distorcidos, as expressões de medo e horror nos levam a crer em um possível tributo do artista ao seu amigo e mestre da AIBA, Pedro Américo. Em oposição às estátuas de monumentos públicos, os relevos de Rodolfo Bernardelli erguem-se como uma alternativa de eloquência para uma nova arte, gerada da confluência de técnicas francesas e italianas de escultura do final daquele século.

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15. A ideia de imersão parcial do corpo de Moema na água pode ter sido inspirada na pintura de Pedro Américo. Na escultura de Bernardelli, a maneira como o artista modelou o corpo da mulher e as ondas do mar, enfatizando as modulações da luz, nos leva a estabelecer uma certa relação com a cena noturna construída por Américo. Remete ainda a imagem evocada do poema de Guimarães, que provavelmente conhecia o quadro de Pedro Américo, já que escrevera uma biografia do pintor em 1872.

16 COLI, Jorge. Outra batalha: Avaí, de Pedro Américo. In: Como estudar a arte brasileira do século XIX. São Paulo: Senac, 2005. (Série Livre Pensar, 17), p.99.

BIBLIOGRAFIA

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BARBOSA, Karen. Moema: restauração. São Paulo: MASP/ Bank of America Merril Lynch, 2013, il.

BARDI, P. M. História da Arte Brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 1975.

COLI, Jorge. Como estudar arte brasileira do século XIX?). São Paulo: Editora Senac, 2005.

MARQUES, Luiz. Introdução. In: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Catálogo de Exposição 30 mestres da Pintura no Brasil, 2001.

MIGLIACCIO, Luciano. Rodolfo Amoedo. O mestre deveríamos acrescentar. In: MARQUES, Luiz. (Org.). 30 mestres da pintura no Brasil. São Paulo: Masp, 2000.

PEREIRA, Sônia Gomes. A História da Academia: um problema a ser repensado na História da Arte Brasileira. In: 180 Anos de Escola de Belas Artes. Anais do Seminário EBA. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.

PRADO, Maria Ligia Coelho. América latina no século XIX: Tramas, Telas e Textos. São Paulo: Edusp, 2009.

PROENÇA, Graça. História da Arte. São Paulo: Ed. Ática, 1999.