MINISTÉRIO PÚBLICO OU POLÍCIA JUDICIÁRIA? O limite estabelecido pelo constituinte para a atuação do Ministério Público no processo.*

  Idbas Ribeiro de Araujo **

RESUMO

Este trabalho consiste em uma análise acerca da ação investigativa do Ministério público na instrução processual. Faremos uma abordagem sobre o tratamento dado à Constituição de 1988 acerca do processo, a adoção do sistema acusatório, bem como destacaremos a função dada pelo legislador constituinte ao órgão permanente do Ministério Público. Por fim, faremos uma análise crítica acerca da atuação do Ministério público na fase pré-processual, a saber, o inquérito policial.

PALAVRAS-CHAVE

Inquérito Policial. Ministério Público. Constituição Brasileira

"Não há outro meio de atalhar o arbítrio, senão dar contornos definidos e inequívocos à condição que o limita”.

 (RUI BARBOSA)

INTRODUÇÃO 

As discussões acerca da atuação do Ministério Público na fase pré-processual tem ganhado contornos que merecem um pouco de nossa atenção. Parece-nos oportuno fazer uma reflexão acerca da real função estabelecida pelo constituinte originário ao Ministério Público, a saber, “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”[1]

Buscaremos no decorrer deste trabalho compreender a forma como essas funções tem se alargado no Brasil, pondo em cheque a designação dada ao Ministério público pelo poder constituinte originário. Doutra forma, tentaremos esclarecer que a atuação equivocada deste “órgão permanente” vicia o processo e não coaduna com a proteção constitucional da ampla defesa e do contraditório, bem como outros princípios processuais garantidores da dignidade da pessoa humana.

Apontaremos ainda algumas características do sistema acusatório adotado pela Carta Maior, responsável por significativas mudanças no âmbito processual e que são incompatíveis com uma atuação do Ministério público da forma como tem se apresentado.

            

    

1. O PROCESSO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO CIDADÃ DE 1988

Com o advento da Constituição de 1988, diversas mudanças significativas foram introduzidas nas diretrizes do processo, sobretudo o processo penal. Estas mudanças são oriundas dos princípios provenientes da ordem democrática, de cunho garantista, cuja Constituição tratou de consagrar ao dedicar extensos capítulos[2] à tutela de direitos fundamentais, individuais e coletivos, pautados na dignidade da pessoa humana.

O artigo 1° da referida Carta Maior garante que o Estado brasileiro é Democrático de Direito, importando assim em “transformação revolucionária do status quo”. A esse respeito, as palavras do professor José Afonso da Silva são suficientes para traduzir a importante redação do artigo supracitado:

    

O Estado Democrático de Direito reúne os princípios do Estado Democrático e do Estado de Direito, não como simples reunião formal dos respectivos elementos, porque, em verdade, revela um conceito novo que os supera, na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo.[3] 

Percebemos diante do brilhante esclarecimento do autor que o Estado Democrático de Direito adotado pelo constituinte é “conceito-chave” para a interpretação dos princípios norteadores do ordenamento jurídico vigente, uma vez que, devem ser estendidos de forma a não comprometer a dignidade da pessoa humana, ainda que de forma mínima.

Este Estado Democrático a que faz menção o constituinte originário, preocupado com o direito-dever de punir do Estado, submete-o a um controle jurisdicional responsável por evitar arbítrios de qualquer natureza. Neste sentido, o tratamento dado pela Constituição Federal de 1988 ao processo, incumbe-lhe de duas funções precípuas, a saber, viabilizar a aplicação da pena e servir como garantia dos direitos e das liberdades fundamentais dos cidadãos, de forma a evitar lesão ou ameaça a direitos. Desta forma não há que se conceber o processo como apenas um instrumento a ser utilizado pelo poder punitivo do Estado, desconsiderando assim, a essência constitucional da dignidade humana.

Não pode, à luz dos princípios constitucionais, alguém sofrer a sanção penal sem que seja submetido ao devido processo legal. Exige-se do Estado que possibilite ao cidadão a instrução contraditória, pautada na ampla defesa, bem como a busca da verdade real, ainda que outra seja a verdade formal. Percebemos que há uma limitação do poder de agir, legitimada pelo respeito às garantias dadas pelo próprio constituinte.

Desta forma, o constituinte de 88 concebe o cidadão como “sujeito da relação processual”, [4] e não mais como objeto, uma vez que, possui um enorme número de garantias processuais responsáveis por resguardá-lo de quaisquer procedimentos arbitrários que atentem contra sua dignidade.     

   

2. O SISTEMA ACUSATÓRIO E SUAS CARACTERÍSTICAS

 

            O constituinte de 1988 adotou o sistema acusatório quando distribuiu as etapas de constituição do processo entre órgão distintos, expressando verdadeira atitude democrática. Desta forma, definiu que a iniciativa do processo não há que se dá por parte do órgão julgador, bem como, fez a separação das funções de acusar, defender e julgar pautada no princípio da separação harmônica entre os poderes do Estado.

Esse sistema, adotado pela Carta Maior exige que haja provocação do Estado-juiz, preservando assim sua imparcialidade, sua neutralidade, ficando este impedido de atuar no inquérito policial. Doutra forma, sendo o Ministério Público o titular da ação penal, cabe à Polícia Judiciária fornecer os elementos formadores de opinião acerca de determinado delito.

Cabe ressaltar que, sendo o cidadão sujeito da relação processual, como dissemos outrora, há que se preservar os seus direitos também na fase anterior ao processo, ainda que não se façam presentes nesta fase inquisitorial todas as garantias processuais preconizadas pelo legislador constituinte, como é o caso da ampla defesa e do contraditório (garantias estas que sofrem mitigações). Este “filtro processual” [5] chamado de inquérito policial, que tem a missão de frear o poder punitivo é responsável por evitar que sejam cometidos abusos oriundos de acusações infundadas, que prejudiquem os sujeitos da relação processual, de forma a estigmatizá-los social e juridicamente.

Diante de tantas garantias estabelecidas pelo legislador, estamos diante de um sistema acusatório que através do sistema de freios e contrapesos proporciona um equilíbrio capaz de justificar a existência de um Estado Democrático de Direito que efetivamente preserve os direitos essenciais. A esse respeito, o professor Afrânio Jardim[6] assim se pronuncia:

Temos asseverado, em outras oportunidades, que o verdadeiro Estado de Direito não pode prescindir de mecanismos de controle de seus órgãos públicos. Este controle deve ser efetivado seja pelas instituições da sociedade civil, de forma difusa, seja pelos próprios órgãos estatais.

  

            Enfim, o constituinte nos apresenta um sistema acusatório onde a atuação do Ministério Público em relação ao inquérito policial afasta do Estado-Juiz a possibilidade de atuação deste na fase pré-processual, de forma a não contaminá-lo com as situações provenientes da ação investigatória.

 

3.  A VERDADEIRA FUNÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA FASE PRÉ-PROCESSUAL

              O artigo 127 da Constituição de 1988, ao atribuir ao Ministério Público a “defesa da ordem jurídica, do regime democrático, bem como dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, dota-o de uma responsabilidade que deve ser levada a termo, não sendo possível desvirtuá-la do sentido dado pelo constituinte.

            Em se tratando do controle da atividade policial (art. 129, inciso VII), tema objeto de nossa análise, o Ministério Público, na figura do seu promotor de justiça é “órgão” acusador, na medida em que deverá requisitar diligências de investigação. Doutra forma, atua como defensor quando vela pela inviolabilidade das garantias constitucionais dadas ao indivíduo pelo constituinte originário, primando pelo princípio da legalidade. Como destinatário do inquérito policial, nada mais lógico do que exercer o controle da atividade policial com o objetivo de preservar a eficiência e a legalidade da investigação     

 

CONCLUSÃO CRÍTICA

 

Pelos argumentos até aqui utilizados parece-nos evidente que não devemos alargar a intenção do constituinte no que tange à função do Ministério Público na fase pré-processual, uma vez que ele é parte no processo, atuando de forma parcial, diferentemente da atuação do Estado-juiz.

O controle externo da atividade policial a que se refere o artigo 129, inciso VII outrora mencionado, não deve se estender ao âmbito interno da atuação policial, uma vez que a avocação do inquérito pelo Ministério Público acarretaria em prejuízos incomensuráveis à dignidade humana. O cerceamento de algumas garantias ao indivíduo na fase pé-processual carecem de controle do poder estatal que não coadunam com os interesses de quem investiga. Eis um dos motivos pelos quais o Ministério Público deve abster-se da investigação, devendo apenas controlá-la como designa o constituinte.

Doutra forma, quem seria o destinatário do dever de controlar a ação investigativa se esta for realizada pelo Ministério Público? Onde ficaria o sistema de freios e contrapesos diante dessa atuação desvirtuada? Percebemos desde logo que o Estado Brasileiro adotaria o juízo de instrução,[7] uma vez que sendo função do Ministério Público controlar o inquérito policial, restaria apenas ao judiciário a missão de controlar tal atividade, quebrando assim com o princípio da imparcialidade do Estado-juiz.

Ao tratar deste tema de importante relevância para um Estado de Direito, o professor Luis Roberto Barroso[8] assim se pronuncia:

Não é desimportante lembrar que a Polícia sujeita-se ao controle do Ministério Público. Mas se o Ministério Público desempenhar, de maneira ampla e difusa, o papel da Polícia, quem irá fiscalizá-lo?      

                  

            Com o latente desejo de combater o crime, estaríamos diante de um mega poder “permanente” (diga-se de passagem) destinado a desvendar as condutas ilícitas sem o controle necessário, garantidor dos direitos fundamentais indisponíveis. Voltaríamos à condição de o indivíduo tornar-se mero objeto da ação estatal, suprimindo todo um contexto de lutas históricas responsáveis pela conquista de direitos aos cidadãos.

            Portanto, não há que se falar em alargamento da função ministerial de forma a abarcar o inquérito policial, uma vez que é função precípua deste órgão o controle externo da atividade policial. Se de outra forma procedermos, estaríamos diante de um controle interno, permissivo de arbítrios que atentam contra a dignidade humana e todos os direitos dela decorrentes.

REFERÊNCIAS 

JARDIM, Afrânio Silva. O Ministério Público e o controle da atividade policial. Rio de Janeiro. ed. Forense, 1999.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2007.

CHOUKR, Fauzi Hassam. Garantias constitucionais na investigação criminal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm> Consulta em 10 abr. 2010.

BARROSO, Luís Roberto. Investigação pelo Ministério Público. Argumentos contrários e a favor. Disponível em: http://www.mp.rs.gov.br/hmpage/homepage2.nsf/pages/spi_investigadireta2. Acesso em 27 de Mar 2010.



* Artigo científico apresentado à disciplina de Teoria Geral do Processo do 3º período vespertino do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco ministrada pelo professor Elton Fogaça para obtenção de nota.

** Aluno do 3º período vespertino do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.

[1] Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 127 Caput. (EC n° 19/98 e EC n° 45/2004)

[2] Trata-se dos capítulos I e II do Título II (Dos direitos e garantias fundamentais) da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que versa sobre os direitos e deveres individuais e coletivos bem como os sociais.

[3] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2007. p 112.

[4] CHOUKR, Fauzi Hassam. Garantias constitucionais na investigação criminal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001, pp 215-216

[5] Ibidem. pp 216 – 217.

[6] JARDIM, Afrânio Silva. O Ministério Público e o controle da atividade policial. Rio de Janeiro. ed. Forense, 1999, p.337.

[7] Diz-se do Estado que permite a atuação do Magistrado na fase inquisitória, podendo este participar dos procedimentos de investigação responsáveis por consolidar o entendimento sobre uma prática delituosa.

[8] BARROSO, Luís Roberto. Investigação pelo Ministério Público. Argumentos contrários e a favor. Disponível em: http://www.mp.rs.gov.br/hmpage/homepage2.nsf/pages/spi_investigadireta2. Acesso em 27 de Mar 2010.