Migalhas

 

Hoje o dia será todo meu, só para mim... Não vou dividi-lo com ninguém. Só farei o que tiver vontade de fazer e pronto. E ponto final! Está decidido. Um dia para mim. Só um.

Foi o que pensei, até o telefone tocar, eu atender e ouvir a sua voz. Triste, embargada pela emoção, convidando-me para almoçar.

Esqueci de mim e aceitei. Fomos a um restaurante de beira de estrada. Estranhei um pouco, mas fui assim mesmo. Você sempre foi dada a certas excentricidades. Coisas de Marina, diria Teddy, nosso querido amigo queniano, que se diz mineirinho. Gracinha.

Quando cheguei você já estava. Vi seu carro estacionado de qualquer jeito. Vidros abertos, pneus meio que na calçada... Estranho... De onde eu estava dava para vê-la. Mais magra, cabelos despenteados, o que não era de seu feitio. Vestida de modo meio desleixado, cotovelos apoiados na mesa e um olhar tão triste, tão triste, que me condoí de você, sem sequer saber o que estava acontecendo, o que você ia me dizer... Intuição feminina?Empatia? Não sei.

Cumprimentamos-nos e você sequer sorriu ao me ver. Convidou-me a sentar em uma mesa mais afastada, onde ninguém nos visse. Sentamo-nos e você pediu o almoço, pois estava com fome. Muita fome. Mas você não comeu nada, apenas mexeu na comida com o garfo. Mais nada. Eu também, dada as circunstâncias, perdi a vontade de comer.

Lágrimas em profusão começaram a escorrer de seus olhos, sem que você se importasse que vissem... Seu orgulho tinha ido embora. Sua dor era maior que tudo. Marina.

Demorou começar a falar. Mas aos poucos foi se acalmando, as lágrimas diminuindo e aí então, falou baixinho, quase num sussurro, mais para você mesma do que para mim.

“Cansei de viver de restos, de viver de migalhas, de precisar me esconder de tudo e de todos. De precisar esconder esse amor que sinto e não posso dizer para ninguém. Não é essa a vida que sonhei para mim... Viver nos bastidores, sem direito de assumir coisa alguma. Sempre... Sempre esperando minha vez de entrar em cena e essa vez nunca chegar. Nunca. As cortinas se abrem e eu nunca apareço. Não posso, não devo.

Fins de semana vazios de você... A ver os casais enamorados, passeando de mãos dadas e eu, eu sem ter as minhas entre as suas, entrelaçadas. Noites insones, só a pensar em nós dois, querendo você a meu lado e só tendo a fantasia de tê-lo. Mas nunca, nunca chegando a minha vez. E eu sempre a esperar, sempre. Pela vez que nunca será a minha. A imaginar que talvez um dia você venha, para me colocar em primeiro lugar. No topo de sua vida. Mas você se diz covarde, não consegue dar um basta em sua situação que diz não mais querer e assumir a nossa... Por quê? Por que coisas “erradas” acontecem às pessoas certas?

O que é que eu fiz comigo, o que é que fiz de mim? Que amor é esse que me faz tudo esquecer, de tanto querer você? Eu, que vivo mais de sua lembrança do que de você a meu lado... Eu gostaria tanto de poder caminhar de mãos dadas com você, ver o pôr do sol, tomar um sorvete, ir ao cinema... Coisas tão banais para qualquer casal e tão importantes para mim que não posso sequer sonhar com elas. Mas eu sonho, e desejo e quero. Mas não tenho. Só tenho as migalhas que sobram...

Você me diz, “espera, quem sabe um dia eu tenha coragem”... E eu acredito, eu preciso acreditar para continuar a viver. Pobre de mim... Qualquer palavra sua me basta. E assim eu vou vivendo esse amor escondido, sofrido, que ao sentir que escapa de minhas mãos, corro a buscá-lo, não o deixo ir. É nosso... Nós o queremos mesmo migalhas... Ou será que só eu o quero e vivo pensando nós dois o queremos. Já nem sei mais, se somos nós ou sou eu.

Mas. Será que eu um dia... Será que nós... Será?

Quando falo para você tudo que penso, você me dá razão, concorda comigo e chora. Choramos. Aí então me fortaleço, cobro sua presença, eu o quero para mim. Mas você não vem. Não pode. Não pode?

Pede perdão. Mas perdão por quê? Você se sente culpado? Do que? Do antes, do durante ou será do depois? De que adianta pedir perdão? São seis letras apenas, tão somente seis, que juntas têm um significado tão grande... É o aceitar que machucou, mas não prova que há arrependimento. Prova apenas que quem o pede não quer carregar consigo a culpa da infelicidade do outro. Perdão e pronto. Estou livre de qualquer responsabilidade. Ufa!

É como se essa simples palavra tudo apagasse. Tirasse a tristeza, a desilusão, o desencanto, a vergonha e fizesse com que tudo voltasse ao normal. Mas não é bem assim. Não é mesmo.

E você me pede perdão e diz que não consegue dizer adeus... E eu choro por mim, por você... Que me fez e me faz muito, muito feliz. Que fez e faz com que eu alcance as estrelas, passeie pelo céu, me sentisse e me sinta mulher, me sentisse e me sinta desejada, diferenciada das demais... Mas depois... Depois mostra que nada pode ser, pelo menos como nós queremos. Ou como eu quero... Já nem sei mais se somos nós ou se sou eu.

Foi aí então que tomei a decisão de tudo acabar. De jogar fora esse amor que nos machuca e nos alimenta. Que dói e que conforta. Que é vida e é morte. E que será eterno. Eterno e terno.

Mas não consegui, não aguentei, não sou nada sem você. Doeu e dói demais. As horas, os minutos, não são os mesmos sem você. “Eu me sinto excluída do tempo, que caminha sem me levar para você, com você ou de você.”

Como dizer adeus a alguém que amo e que me ama? Impossível, não é? O que você pensa disso? Estou certa ou não? Diz ela ao perceber minha presença, até agora ignorada por ela. Como disse George Bernard Shaw, “nenhuma pergunta é tão difícil de responder quanto aquela cuja resposta é óbvia”.

E eu, eu não consegui dar a resposta esperada... Pobre de mim. Coitada que sou.

Depois desse desabafo, você me olhou por longo tempo, com um olhar vazio de esperança, um olhar de alguém que se sabe amada, que ama e que percebe que esse amor mesmo correspondido é em vão. Perde-se no vazio. No vazio da covardia, do não o assumir.

E eu olhei para você, sem conseguir conter as lágrimas, que se apressavam em sair...

Olhamos-nos por um bom tempo... Olhos nos olhos, coração nas mãos...

E sem dizer até logo ou adeus, cada uma de nós foi embora... Direções opostas.

Você, tranquila por ter desabafado comigo e eu, triste por saber que tudo que havia sido dito era para mim... Para que eu deixasse livre o caminho para vocês.

Mas, egoísta que sou, vou continuar a fingir que não entendi, que nada sei... Como sempre.

Afinal, o que Deus uniu o homem não separa.

Ad eternum.

E lá foram elas... Caminhando rumo ao nada. Juntas na mesma estrada, mas em lados opostos, tendo a dor como companheira. A companheira que se impuseram... Sem o querer, mas impuseram...  E assim a vida segue. Como deve seguir.

 Heloisa