“Meu pé esquerdo” foi o título de um filme sobre o caso real de  Christy Brown, um humilde jovem  irlandês que nasceu com paralisia cerebral. Mesmo sendo tetraplégico, aos cinco anos, ele consegue controlar o pé esquerdo, usando giz para rabiscar palavras no chão. Ajudado pela mãe, torna-se pintor, poeta e autor.

O filme me fez lembrar de um aluno que tive num curso de graduação. O nome dele é José e não tem os dois braços, que foram perdidos numa tentativa de resgatar uma pipa numa rede elétrica aos dez anos de idade ou menos.

O choque foi tão violento que os dois braços do garoto ficaram necrosados, mesmo  depois de várias tentativas de recuperação. Enfim, não houve alternativa a não ser a amputação dos membros. Assim, José cresceu e continuou estudando de acordo com suas limitações, chegando ao curso de graduação em Administração. Ele colocava um caderno no chão e fazia suas anotações com o pé direito. Da mesma forma fazia as provas, recebendo duas cópias, sendo uma para ler e a outra para escrever com o pé.

Algum tempo depois ele me procurou pedindo ajuda porque estava se sentindo discriminado durante as provas, pois nem todos os professores que acompanhavam as provas o conheciam, gerando constrangimento. Diante disso, foi autorizado que ele fizesse as provas num anexo da sala dos professores, resolvendo provisoriamente o problema. O seu caso gerou uma mudança de postura da FEI, que criou uma sala para as provas de alunos com necessidades especiais, como autistas, TDA, deficientes visuais, cadeirantes etc.

O José também  se revelou um jogador aplicado de futebol de salão, conseguindo conquistar a medalha de artilheiro durante o campeonato interno realizado na faculdade. Sabe-se que os braços são importantes para se manter o equilíbrio durante uma corrida, mas para José, a ausência dos braços não era um problema, pois conseguia correr e jogar com a desenvoltura de uma pessoa sem a deficiência. Ele dizia que sentia os braços quando corria, mesmo sem tê-los.

Ele conseguiu um bom emprego numa indústria automobilística, trabalhando no setor de controle de produção, utilizando sistema informatizado. Com o teclado no chão, ele desenvolvia o seu trabalho com o pé sem maiores problemas. Como as empresas são obrigadas a manter em seus quadros um percentual de pessoas com deficiência, José ainda deve estar empregado, pois além de ter uma boa formação, suponho que continua sendo um funcionário eficiente.

O jovem deve ter lá as suas limitações para se alimentar e fazer as suas necessidades, mas sempre lidou bem com isso e não manifestava nenhum constrangimento quando abordado sobre o assunto.  Durante o curso, manteve um bom relacionamento com os colegas, sempre sorridente e de bom humor. Quanto a vida amorosa, José ainda estudante, já era noivo e usava sua aliança de compromisso presa a uma correntinha no pescoço.

O nosso herói é de origem humilde e negro, fatores que em geral se constituem em maiores barreiras para a mobilidade social em nossa sociedade. Isso o torna uma pessoa ainda mais admirável, pois com todas as restrições, conseguiu uma condição social que muitas pessoas em condições até melhores, não conseguem atingir.

José se tornou uma referência para os colegas pela sua capacidade de superar dificuldades geradas pela deficiência física, pois trabalhava e sobrevivia com todas as limitações que a amputação dos braços deixou em sua vida. Enfim, tal como o Christy do filme, José é mais um caso de superação humana. Há anos não o vejo e não sei se conseguiu ser poeta ou pintor, mas tudo indica que toca a sua vida com dignidade.