De repente, no meio da noite fui avisado que já não tinha mais pai. Ele se fora, tranqüilo e sereno. Descansou depois de muito sofrimento, quando à vontade de viver não foi suficiente, para que seu velho coração pudesse resgatar-lhe as forças.

Minha mãe, apesar da dor, recusou os serviços do agente e se dispôs, ela mesma, a preparar o corpo, lavando-o e trocando-o com o seu melhor terno. O nó da gravata não ficou de acordo com a vaidade dele e coube a mim a tarefa de acerta-lo, já no caixão, antes que alguém chegasse ao velório e pudesse vê-lo de forma pouco elegante.

Era um homem vaidoso, tinha uma coleção de gravatas largas e fora de moda, que guardara desde os tempos de solteiro. Gostava de tê-las no armário e escolhe-las vagarosamente nas oportunidades que tinha para usá-las. Nas suas fotografias de moço, sempre impecável em seu terno de linho branco, louros e ralos cabelos bem penteados. Isto tudo era motivo para longas brigas em casa. Para ajudar, animava os bailes do interior com a sua sanfona de oito baixos, que segundo depoimentos que ouvi, tocava muito bem e dominava o repertório da época. As namoradas não lhe faltavam. Louras, morenas, japonesas etc. Eram incontáveis os casos antes e depois do casamento. Dizia minha mãe que quando nasci ele se divertia num baile nas redondezas e só ficou sabendo do primeiro filho varão no dia seguinte, quando o sol já estava alto.

Além da lavoura e um belo pomar que cheguei a conhecer, ainda lhe sobrava tempo para trabalhar a madeira com maestria. Construía engenhos, carros e móveis.  Muitos foram enterrados em Lavínia com os caixões que construía principalmente os mais pobres, que lhe custavam noites de sono.

Gostava de música e tinha um bom ouvido. Nosso vizinho em São Caetano, um velho sapateiro italiano, tinha uma velha Stradelli, harmônica italiana de 80 baixos que era sua paixão. Sempre íamos à casa do seu Ciprioni levar sapatos para serem consertados e meu pai aproveitava a oportunidade para falar um pouco sobre o instrumento e boas músicas.  Seu Ciprioni não resistia e fazia seu som, invariavelmente uma valsa italiana e a popularíssima Saudades de Matão. À noite, quando chegava do trabalho, fumava seu Mistura Fina, apenas um, e ligava o velho rádio para ouvir seus programas de música caipira. Tonico e Tinoco e em seguida Torres, Florêncio e Rialinho. Era apaixonado pelo Mario Zan e Mario Genari Filho, sanfoneiros da velha guarda e seu sonho era que algum filho tocasse o instrumento. Decepção! Minha irmã mais velha foi estudar com um italiano, próximo de nossa casa. Foram três anos de estudo e muita música em casa, até que o velho professor morreu de câncer e minha irmã que não via futuro na música e tampouco no instrumento, abandonou os estudos para desgosto do velho. Durante algum tempo relutou em vender o instrumento, comprado com grande sacrifício. Era uma Todeschini, madrepérola, fabricada no Rio Grande do Sul. Ficava horas e horas tentando tirar algum som da Harmônica, mas os cento e vinte baixos era demais para seus conhecimentos musicais.

Um dia, apareceu em casa com um cavaquinho e entregou nas mãos dos três filhos, dizendo: “Vamos ver se alguém toca isso!”. Mais uma decepção. O que eu e meus irmãos conseguimos foi destruir o cavaquinho sem tirar pelo menos uma nota musical. Nossa casa era sempre visitada por músicos caipiras e sanfoneiros que vinham, a convite do velho, mostrar suas habilidades ou paquerar suas filhas.

Depois do velório comecei a descobrir o quanto ficamos distantes um do outro e a morte nos aproximou de uma forma estranha. Fui sentindo na carne que perdia uma das minhas referências. Não iria mais encontrá-lo cuidando do seu jardim ou sentado na varanda conversando com seus amigos. Minha mãe ficou só e apesar das discussões freqüentes que havia entre eles, seria difícil para ela suportar a ausência de alguém com quem compartilhou a casa e o leito por mais de cinqüenta anos.

Passados alguns dias, coube a mim a primazia de escolher algo dele como lembrança. Preferi o chapéu Ramenzoni, aba estreita, que ele usava em ocasiões especiais. Saí pela rua, carregando o peso de uma triste ausência e escondendo sob o chapéu colocado a cabeça, as lágrimas que ainda escorriam pelo rosto.