Meninos de Cachoeira. 

-- Vamo se banhar no teso? – O convite é feito por alguém. Imediatamente o bando de moleques se forma. Garotos e garotas surgidas na sei de onde. Um chuvisco intermitente ensopa o chão argiloso. A argila impermeabiliza o solo. A água mesmo pouca não consegue se esconder na terra. Empoça na sua pele.

-- Vamo pegá tucumã? – Fala outro.

-- Vamo catá maracujá-do-mato? – Diz mais um. A gandaia é grande. O destino é o teso que fica próximo do cemitério da cidade. É uma reta só. Nos lados da estrada o banhado. O campo inundado pelo inverno marajoara. Juncos e ninfeáceas formam um imenso tapete ondulante. Ondeiam ao sabor do vento. Na beira da estrada, vez por outra, aparece um pé de tucumã. A molecada caminha numa desenvoltura de fazer inveja. Como se o solo não estivesse liso e escorregadio com a tabatinga molhada. Quem sabe seria a “neve” equatorial e sobre ela poder-se-ia deslizar de esquis... Aqui, ali, catam no chão os frutos maduros do tucumã, por entre as folhas caídas e dos terríveis espinhos do tucumanzeiro. Logo as bocas e os lábios estarão alaranjados e melentos. Mais adiante, o tapete verde dá lugar à água, quase transparente. A molecada, que vinha quase sem liderança, rapidamente se joga n’água. Flecham como zagaias de seus ancestrais marajoaras. Alguém inventa a brincadeira de pira-maromba. E lá vão eles se esconder entre os juncos. Mergulham aqui, boiam mais adiante. E assim levam a brincadeira. De novo a desenvoltura deles na água mostram a harmonia com o ambiente. Prece que tudo é conhecido e tudo é bom.

                -- Vamo pegá maracujá-do-mato! – Repete mais um. Chegou a hora de deixar a água e embrenhar-se no mato. A ordem é logo obedecida e minutos depois o palco das brincadeiras é o terreno seco do teso. Agacham-se por entre um verdadeiro manto de trepadeiras. No meio delas está o maracujá silvestre. Começam a catar os frutos encontrados no chão. É a certeza de que estão maduros. Giram. Rodopiam. Vão e voltam. Novamente a estreita afinidade com o ambiente é mostrada. Desconhecem os cipós espinhentos e a tiririca cortante abundante no caminho. Logo estarão empanturrados de tanto comer maracujá-do-mato. Alguns, porém, recolhem o fruto, mas não o comem. Vão levá-los para casa. Têm aqueles que se especializam em colher frutos de tucumã, que também está na safra. Dizem que é para preparar a canha-pira – comida feita com o caldo extraído da massa dos frutos do tucumã, misturada com pedaços de peixe, carne seca ou de porco, fervida por vários dias na lenha. Quanta ciência mostram ter esses meninos e meninas de Cachoeira do Arari! Quem da cidade grande vê esses fatos, se impressiona. Comparo com os meninos nas praças, nas ruas, nas calçadas, ou até nos agora escassos terrenos baldios de Belém. Aqui os perigos são outros. Lá as piranhas abundantes parecem não incomodar os meninos. Parecem até não considerar o temível peixe como inimigo. Serelepemente, as crianças de Cachoeira do Arari nos informam que o seu mundo existe. Único e próprio como a ilha do Marajó que como eles, está esquecida no tempo. Fantasmagoricamente esquecida...

Criado em 14 de agosto de 1993.