Resumo: Nunca mais fui o mesmo depois daquele dia em que ela, na exuberância  de seus 19 anos, descobriu verdor   nas paredes veteranas da minha imagem.   

 

 

Menino, presta atenção! 

Conta Rubem Braga, em uma de suas festejadas crônicas, que ignorava ser “moreno”, até que uma senhora desconhecida o saudasse como tal, durante uma caminhada pelo calçadão de Ipanema:

 Alô, moreno.

Alô.   

 E nunca mais se viram. 

Por isso que considero de bom aviso estarmos todos atentos aos sinais que denunciam disposições do corpo, ou idiossincrasias despercebidas aos olhos da auto percepção.  Nesse cuidado convém  nos despojarmos de preconceitos. Sinais aproveitáveis tanto podem vir de gente simples quanto de gente menos simples. 

Tudo isso fica dito para informar que acabo de passar por uma avaliação duplamente involuntária. Involuntária da parte de quem me avaliou, uma jovem alegre, impulsiva e extrovertida que, no frescor de seus dezenove anos, ajuda nos serviços domésticos. Involuntária da minha parte, que não pretendia ser  avaliado. 

Recapitulemos alguns momentos dessa contingência. 

Tomava o café da manhã. A moça lustrava os móveis a pouca distância. De repente: 

­ O senhor conhece o Pereirinha?

­ Não.  Quem é?

­ O Pereirinha, menino, filho da Firmina.

­ Não, não conheço nem o Pereirinha nem a Firmina.

­ Não conhece a Firmina!? Menino, presta atenção!  

­ Não, não conheço. Mas o que houve?

­ O Pereirinha  morreu.

­Morreu? Como?

­ De tanto beber cachaça, ora... 

De outra feita, sendo tempo de merendar,  candidatei-me a meia coxa de peru. Ela respondeu: 

­ Calma aí. Primeiro vou dar de comer às galinhas. 

O que temos aqui? Temos pinceladas espontâneas, aplicadas à tela da minha imagem, que eu supunha não comportar mais tantos retoques. Obra de gosto  impressionista, que expõe à luz a cor esmaecida na penumbra. 

Da primeira cena recolho o vocativo menino. Na minha idade, aquela palavrinha ecoou como um toque de alvorada. Senti-me enturmado, travesso, cúmplice do imprevisível e vassalo da espontaneidade. 

Dela recolho ainda a surpresa da moça:

­ Não conhece a Firmina!?

Era notório que eu decepcionava. Há tanto tempo no bairro, como não conhecer a Firmina?

Impossível negar. Há mais de ano que não sento na calçada, nem  atravesso a rua para comprar pão. Se não vivesse tão recolhido, certamente conheceria a Firmina.

Nessa mesma linha, destaco o arremate da frase que informa a causa mortis de Pereirinha:

­ De tanto beber cachaça, ora...

A sentença tem conteúdo rico. Além de satisfazer a minha curiosidade com o dado objetivo, empina elegantemente sobre mim o toque dedutivo, expresso com muita arte na interjeição “ora...” As sutis reticências confirmam a impertinência da minha indagação.

O que mais poderia ser?  Do que mais poderia morrer o Pereirinha? 

Agora, a segunda cena: 

­ Calma aí. Primeiro vou dar de comer às galinhas.

Eu podia imaginar tudo, menos que já não mantivesse a calma à hora da merenda.

Não me vexa jurar que pedi a meia coxa de peru antes em tom de rogo que de comando, pelo que as palavras me saíram plácidas e atenuadas.

 Quanto à concorrência das galinhas, eu me queixaria a Mamãe, se ela não estivesse no Céu. Como está, limitei-me a  propor outro horário para a merenda no galinheiro. Sem prejuízo da produção de ovos, é claro.