Memórias póstumas

 

Aí daquele que ousar vestir a minha túnica!

Aí daquele que ousar calçar as minhas botas!

Aí daquele que ousar empunhar a minha espada!

Ai daquele que ousar vestir a minha armadura!

Pois sentirá o imenso esforço que faço para sustentar a minha armadura, verá o quão pesado é empunhar a minha espada, sentirá o quanto é inflexível e apertada as minhas botas, descobrirá que embaixo de uma túnica suntuosa jaz um corpo cansado e que já não descansa a milênios, embora o leito pareça macio àqueles que tem sono, porém desprovidos de um leito macio para o seu descanso.

Ai daquele que ousar assumir o meu lugar, pois presenciara como uma experiência única o quanto é necessário coragem para se erguer do leito e fazer o que só eu tenho de fazer, verá que a existência se fundamenta em muito mais no que se deve fazer do que propriamente no resultado que se espera alcançar. Saberá que a breve alegria que sinto é um instante inexorável de distração quando a cabeça esquece momentaneamente o que a condição moral insiste em te lembrar.

Mas aquele que ousar calçar as minhas botas, vestir a minha armadura, empunhar a minha espada e deitar sobre a minha túnica, recomendo que ouse viver o instante não vivido, que tenha coragem no momento que se tornar eu, abrir mão de ser quem eu fui e viver um amor avassalador junto a concubina amada, beber e festejar junto a gente de verdade que vive à margem do palácio e nú celebram a saúde mental de não inalar a estranha moral que exalam dos nobres de dentro de suas suntuosas moradias cheias luz, mentira, abnegação, resignação e mortífera coragem de ser subjugado, reparem que há um leve sorriso em suas faces taciturnas e lhes asseguro, não é charme, santidade  ou prazer e sim pura tristeza.

Ao tomar o meu lugar, ouse abandonar o trono cuja prisão lhe faz parecer livre, cuja as ordens e pensamentos parecem brotar de sua mente, aí daquele que nasce príncipe, pois ao provar da vida a margem do palácio, nunca mais será o mesmo e governar não se tornará um ofício e sim uma obrigação.

Ao tomar o meu lugar, ouse ser feliz! Esteja sempre pronto a abandonar, a ir e deixar ir, a dizer não, não e não!

Ouse a viver desregrado em nome de suas regras, toda ela pautada no que te faz feliz. Não ouse menos que isso, pois caso contrário, todo o esforço de ter vivido um dia na minha vida, não lhe valerá a pena.

Agora, caso não ouse vestir o que a mim foi destinado, não me julgue e deixe viver o meu fardo supostamente em paz. Mas saiba o quanto é difícil viver a minha vida, ou qualquer vida que não seja a sua. A roupa que não lhe cabe não foi costurada por você, e a roupa que lhe aperta, às vezes é muito difícil de se desfazer, pois muitas vezes o que nos sufoca, disfarçadamente nos faz acreditar que dependemos do seu ar no qual ele é o único provedor. Afrouxar a corrente nos dá uma falsa sensação de liberdade. Não devemos assumir a rédea de uma carruagem que está descontrolada, o impensável deve ser a saída e pular é a solução. Viver a vida muito mais que estatísticas e certezas mirabolantes, é antes de tudo um ato de fé, porém fazer a vida valer a pena é um ato de coragem e fé sem coragem é submissão e coragem sem fé é prostração.

Viva o seu caminho e deixe que os urubus sobrevivam dos restos do destino de um rei que ousou viver o seu destino cuja a morte sempre esperada o libertou para viver suas verdadeiras aspirações em paz, a verdadeira e prazerosa paz desejada desde sempre.

Vida longa ao rei…