Memórias de um toco

Peço licença a você que está lendo, para reproduzir aqui um texto que escrevi a muitos anos. Quando ainda, lá no Paraná, não havia tanta ênfase na discussão sobre a necessidade de preservação ambiental. Naquela época se via, vindo de todo lado, o desmatamento crescente. Nos idos anos 70, a década do tri, o que mais se via por aquele rico Paraná eram derrubadas, fumaça de queimadas e tratores entrando pelo meio das terras ocupando o espaço e o lugar que era do trabalhador. E a terra, fértil, desvirginada a força, paria toneladas de grãos... que não alimentavam a quantos estavam sendo obrigados a se divorciar da terra...

Foi nessa época que uma professora, naquele tempo, do ginásio, nos mandou fazer uma redação com tema livre. E essa redação, é claro que corrigida, hoje estou mostrando e compartilhando.

E faço isso porque me parece que nós moradores de Rondônia precisamos fazer uma profunda e urgente revisão de posturas em relação ao meio ambiente e à depredação das florestas. Minha antiga – e acredito, também atual - redação diz o seguinte:

Antigamente, mas bem antigamente mesmo, eu era uma grande árvore. Vivia em meio a uma imensa floresta. Para dizer a verdade, eu era uma das mais belas e uma das maiores!

Meus galhos, grossos e fortes, abriam-se para acolher, abraçar e abrigar as aves que quisessem fazer pousada em minhas ramagens.

Abriguei muitos ninhos: vi nascer e crescer e procriar muitas avezinhas, em minhas ramagens. Meus galhos e ramos, ventre verde, foram o útero que as formou e deu vida... Minha sombra abrigou aqueles que, cansados do caminhar, agradeciam por eu existir à beira do seu caminho.

Minha respiração deu vida a muitas vidas. Juntamente com minhas irmãs árvores e outras plantas, mantínhamos a estabilidade do clima. Atraiamos a chuva nos tempos certos, favorecendo a produção... e nossas raízes fixavam a água no solo.

Ah! Que saudade daqueles tempos... da primavera! Quando eu soltava de dentro de mim, do meu ventre de madeira, cachos de botões que se tornavam flores, que se tornavam frutos, que se tornavam alimento, que davam novas sementes que mantinham viva a natureza... Fome? Com meus frutos não havia.

Minhas flores encantavam as abelhas, os pássaros e os homens; com meu pólen as abelhas produziam a doce e salutar maravilha do mel!

Mas um dia, por ser a mais alta, vi a tristeza, a desgraça! De longe, aproximando-se. E ele estava cada vez mais perto: o homem e o machado. Ele vinha cortando e derrubando e queimando o verde e minhas irmãs árvores. Umas mais novas e outras mais velhas; umas menores e outras da minha idade...

Gananciosos!

Ambiciosos!

Ou simplesmente ignorantes? Não sei.

Só sei que ele chegou e devastou.

E assim por ambição e por ganância e por... Deixavam umas e outras aqui e acolá – tentando dividir-nos, a nós que vivíamos sempre unidas. Deixavam um grupo aqui e outro mais adiante, quase insignificante: ordens do governo, diziam! Mas não percebiam que o equilíbrio estava desequilibrado.

E chegaram até onde eu estava plantada pela mão da mãe natureza.

Na primeira derrubada, eu e mais algumas outras fomos poupadas pelos machados e serras e motoserras – mas nos cortava a alma! Ficamos, formando um pequeno bosque – pequena ilha em meio aquele oceano de terra devastada. Ressecando, impotentes, víamos a maré da erosão avançar...

Passado algum tempo eles voltaram. Homens com mania de progresso e sede de lucro. E foram cortando e derrubando e serrando e transformando cada vez mais o verde em deserto... Até que ficamos tão poucas que já não tínhamos força para atrair a chuva, para nos socorrer. E se chovia, a enxurrada carregava a terra boa.

Até que a terra começou a fazer greve, produzindo menos. E a cada greve da terra, novo bombardeio de adubos químicos. E cada vez menos chuva e produção e árvores.

As aves, tristes, mudaram-se não sei para onde. Outras morreram. Não havia alimento. Outras foram mortas, pela caça esportiva, predatória. Outras deixaram de procriar, não havia onde fazer ninhos. Tudo era, e continua cada vez mais, um mar feito de deserto de vida...

Mas, com o passar do tempo, nem as poucas restantes foram poupadas: eles precisavam de madeira e de mais espaço para a plantação interesseira, mecanizada...

E hoje eu sou um toco! Fui uma bela e frondosa árvore, hoje sou um toco! Meio apodrecido e cheio de cupins...

Estou ouvindo o barulho de um trator fazendo destoca!...

Neri de Paula Carneiro – Mestre em Educação

Filósofo, Teólogo, Historiador

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