Charles John Huffam Dickens, apontado por muitos como um dos grandes romancistas da Era Vitoriana na Inglaterra, é conhecido pelo teor crítico presente em seus romances das condições sociais de sua época. No trabalho de sua vida, expôs os principais dilemas sociais do seu tempo, como a pobreza, a violência urbana, a criminalidade, as degradantes condições de trabalho nas indústrias e uma série de outros problemas coletivos. Dentre as suas mais reconhecidas obras destacam-se os romances Oliver Twist, Um Conto de Natal e David Copperfield. Desconheço a razão, mas não se dá o mesmo relevo e reconhecimento destes livros ao romance Um Conto de Duas Cidades, publicado no ano de 1859.

Na referida peça literária, Dickens apresenta um olhar novo, consistindo em uma apreciação histórica de um dos mais importantes eventos da história da humanidade, a Revolução Francesa. Destaca-se, entretanto, que o autor conservou, na obra, o seu estilo crítico de observar a realidade, agora, acrescido de uma contextualização histórica. Para a elaboração de Um Conto de Duas Cidades, o autor se inspirou no livro História da Revolução Francesa do historiador Thomas Carlyle, no qual se desvenda as condições que levaram ao início desse processo histórico e as características do movimento e do período revolucionário na França.

“Aquele foi o melhor dos tempos, o pior dos tempos, foi a era da sabedoria, da loucura, foi a época da crença, da incredulidade, a era da luz, das trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero, tínhamos tudo bem diante dos nossos olhos, não tínhamos nada diante dos nossos olhos, iríamos todos para o paraíso, todos na direção contrária...” (trecho do primeiro parágro do livro, DICKENS, Ed. Principis, 2019, P. 6)

Com essa frase inicial, o romancista vitoriano antecipa o tom contrastante que marca profundamente a obra, que se faz ser percebido na confrontação entre os retratos das sociedades inglesa e francesa, na contraposição entre o miserável da urbana Paris e o aristocrata do interior da França e na representação da tirania dos nobres do antigo regime e da opressão popular que caracteriza a época do Terror Jacobino.

A trama se passa entre os anos de 1775 e 1793, ou seja, retrata o período anterior e corrente da Revolução Francesa até a Era do Terror, em que se intensifica as perseguições, as prisões, os julgamentos e as execuções por supostas traições contra a insurreição revolucionária. Esse fato histórico do Terror será explorado em alto grau pelo autor, com ênfase na arbitrariedade que os processos condenatórios dessa época poderiam ter. Dickens parece pretender antecipar ao leitor, logo no princípio da narrativa, o caos que seguirá a ampla revolta popular. Para esse efeito precursor, o literato faz uso, a título de exemplo, da descrição de uma simples cena com características caóticas, na qual uma multidão se insurge em direção a um tonel de vinho espatifado pela colisão contra uma parede em Saint-Antoine, subúrbio de Paris, com o objetivo de se inebriar.

O vinho tinto manchara o chão da rua estreita do subúrbio de Saint-Antoine, em Paris, por onde se espalhara. Também manchou muitas mãos, muitos rostos, muitos pés descalços e muitos tamancos. [...] Os que avançaram nas aduelas do barril com mais gula, ficaram com os lábios marcados feito os de um tigre que acabou de capturar a presa; e um homem zombeteiro e grandalhão, manchado com o vinho de cima a baixo e cuja cabeça mal parecia caber dentro do barrete comprido e sujo que usava, com o dedo encharcado de vinho e lama, escreveu num muro: Sangue.” (DICKENS, Ed Principis, 2019, P. 30)

O ponto central da narrativa gira em torno da família Manette, composta somente por um pai, o Dr. Manette, e sua filha, Lucie, além de amigos próximos da família, como o Sr. Lorry, funcionário do banco Tellson, e Charles Darnay, um jovem francês que se muda para Londres. Como o próprio título da obra indica, uma marcante qualidade da história é a representação que o autor faz da vida em Londres como um contraponto à vida em Paris, visto que, em diferentes momentos da narrativa, a família vive nessas duas cidades.

O Dr. Manette ficara preso, na Bastilha, durante 18 anos de forma arbitrária e injustificada, os motivos que o levaram ao cárcere se mantêm obscuros até o fim da história, deixando, de certa forma, o público-leitor em uma expectativa incessante no decorrer da obra. Vale destacar que, quando originalmente lançado, muitos dos romances de Charles Dickens tinham os seus capítulos periodicamente publicados em jornais e revistas literárias. Portanto, era imprescindível, nesse contexto, prender a atenção e o interesse do leitor na história para que ele conservasse o seu consumo literário.

A descrição da prisão na bastilha, ocorrência que se repete mais de uma vez na obra, é de grande profundidade e detalhe, servindo como uma forma de denúncia à opressão e à desumanidade desse tipo de estabelecimento prisional, tenha ocorrido antes da Revolução Francesa ou no seu decorrer. Nesse detalhamento, é possível perceber o tom de crítica social e denúncia que marca o estilo de Charles Dickens, filho de John Dickens, um funcionário de um escritório encarregado de pagar a Marinha Inglesa no porto de Portsmouth e sujeito incapaz de se manter longe das dívidas, que se muda para Londres com o intuito de melhorar de vida. É na nova cidade que o pequeno Charles se depara com as injustiças da sociedade capitalista e da revolução industrial. Aos 12 anos, tem o seu pai preso por dívidas juntamente com o restante de sua família, Charles é o único que mantém a liberdade. Esse fato marcante da sua vida e de seu desenvolvimento pessoal pode ter servido como inspiração para retratar de modo minucioso e crítico o sistema prisional de sua época.

Repentinamente, após longos e árduos anos, o Dr. Manette é libertado, não sem graves sequelas da opressão que sofreu. No entanto, a despeito dessas dificuldades, o médico consegue se reintegrar a vida de sua filha, que ele nunca havia conhecido. A figura de Charles Darnay prossegue ganhando relevo na história, o mencionado personagem é acusado de traição contra a Inglaterra, adverte-se que a história se deu no período imediatamente posterior à independência dos Estados Unidos da América, nação constituída por antigas colônias inglesas, o que explica o momento de tensão vivenciado pelo país britânico. Após ser absolvido da acusação com a colaboração de um testemunho favorável de Lucie, o Sr. Darnay se aproxima dos Manette, até que se casa com a primogênita da família.

Dickens faz o retrato de uma recém família e de sua evolução afetiva, em que cresce o amor, a amizade e o carinho entre os seus membros ao mesmo tempo em que, na França, o conflito socioeconômico se escala e os miseráveis de Paris tomam o poder, instaurando um regime assentando nos valores da liberdade, da igualdade, da fraternidade e, em última instância, da morte.  

"Liberdade, Igualdade, Fraternidade ou Morte; a última muito mais fácil de conceder do que as outras, ó Guilhotine! [...] Vejo..., a vingança, o jurado, o juiz e longas fileiras de novos opressores que se ergueram à sombra dos antigos, mortos por este mesmo instrumento punitivo antes que ele caía em desuso." (Dickens, Ed Principis, 2019, P. 352)

O novo membro da família, de sangue nobre francês, mas que havia se afastado de seu destino aristocrático, em dado momento da narrativa, se vê na obrigação de ter que voltar para sua terra natal, pois um compatriota e fiel subordinado seu estava aprisionado pelas forças revolucionárias. No momento em que chega à fronteira francesa, Darnay é identificado e feito cativo pelas autoridades. A trama prossegue e Dr. Manette com a ajuda de seu influente amigo Sr. Lorry tenta libertar o seu genro. De volta no país que o fez prisioneiro por longos 18 anos, o médico é confrontado pelo seu misterioso passado e questionamentos, que haviam anteriormente sido introduzidos na história, são respondidos.

Em conclusão, o autor por meio de uma criativa descrição da vida dos personagens consegue reconstruir o passado histórico de um significativo evento, aproximando o discurso e a narrativa literária do discurso histórico. A obra possui, também, repercussões de ordem jurídica, destacando a importância da literatura para o Direito. Os tribunais políticos instaurados na Era do Terror servem de exemplo ao operador do Direito de que os julgamentos não devem ser pautados em questões políticas. Ademais, Dickens, ainda, demonstra, com a prisão arbitrária do Dr. Manette, como o aparato judicial pode ser utilizado como um instrumento de repressão. Por fim, o capítulo que trata sobre o primeiro julgamento de Charles Darnay evidencia a importância da figura do advogado para a efetivação concreta da justiça. Um Conto de Duas Cidades é uma obra que versa sobre amor, família, carinho e confiança, porém, na mesma medida em que retrata injustiça, exploração e opressão. Trata-se de leitura indispensável para quem deseja redescobrir, de forma íntima e sob perspectiva literária, a Revolução Francesa.

“Vejo uma cidade bonita e um povo brilhante irrompendo desse abismo, e, em sua luta pela legítima liberdade, entre triunfos e derrotas ao longo dos anos vindouros, vejo o mal desta época e de época anterior, do qual é um fruto natural, aos poucos se expiando e desvanecendo.” (DICKENS, Ed Principis, 2019, P. 352)

 

Referências:

CAPUTO PIRES, Caroline. Literatura, história e memória em Um conto de duas Cidades de Charles Dickens. UFJF, 2010.

DICKENS, Charles, 1812-1870. Um Conto de Duas Cidades. Jandira, SP: Principis, 2019.

DICKENS, Charles, 1812-1870. Um Conto de Natal. Porto Alegre: L&PM, 2009.