PARTE I

O autor rejeita de princípio que a diferença de grau, ou seja, que a inteligência e a capacidade de escolhas seria o que diferencia animal e homem. Sobretudo porque escolhas o animal também faz; e inteligência ele também tem, conforme os disseram os pensadores de linhagem de Darwin e Lamarck. Para Scheler a diferença estaria para bem além do que se chama inteligência. Onde então? Scheler escreve de modo engenhoso, que aqui reproduzo: 

O novo princípio encontra-se fora de tudo isto que podemos   denominar “vida” no sentido mais amplo possível. O que torna o homem homem não é um novo estágio da vida – com maior razão tampouco apenas um estágio de uma forma de manifestação desta vida, da Pysche. Ao contrário, ele é um princípio oposto a toda e cada vida em geral, também à homem no homem: um fato autenticamente novo que não pode ser absolutamente reduzido como tal à “evolução natural da vida”, mas, se é que pode ser reduzido a algo, apenas ao fundamento único e supremo das coisas mesmas. Deste fundamento a “vida” é uma grande manifestação. 

O que entender do que Scheler quer dizer? Primeiramente Scheler nos diz que os gregos empregavam o sentido da expressão razão de um modo diferente do que o empregamos hoje. Razão, se entendi, deve ser entendida mais não como raciocinar de modo operativo, mas de um modo em que o ser humano pode se situar “fora” daquilo que se chama vida. Em outras palavras, Scheler quer retomar o sentido de razão no sentido de “espírito”. Mas o que isso? Scheler reponde assim: “[...] é o seu desprendimento existencial do orgânico, sua liberdade, sua separabilidade [...], portanto, também de sua própria inteligência pulsional”.   

O espírito, nesse sentido, daria ao ser humano uma condição que o torna um ser singular, ou seja, o capacita a se situar fora de toda questão volitiva, pulsional da vida. Ou como se pode ler nessa passagem em que o autor afirma: “dito de maneira mais incisiva: o “portador” de espírito é aquele ser cujo trato com a realidade exterior assim como consigo mesmo se inverteu em um sentido dinamicamente oposto ao do animal com a inclusão de sua inteligência”. 

Como entender isso? Scheler está a nos dizer simplesmente que no animal nada ocorre fora das questões fisiológicas. Seu sistema nervoso o leva sempre a fazer tão somente o que os instintos (volição e pulsão) indicam como corretos. O animal assim age e assim se preserva. A preservação da vida está dado na questão instintiva. Mas o homem age do contrário. Pode até destruir a sua vida e a dos animais também. “Tudo o que os animais podem notar e pegar de seu mundo reside nas barreiras e nos limites seguros seu meio ambiente”, diz-nos o autor. 

Scheler sustentará nas páginas adiante dessa tese que o oposto acontece com quem tem “espírito”. O ser humano alça-se a objetos, põem-se metas que não se orientam por nenhuma pulsão ou instinto. O ser humano tem o que denominamos intuição, e isso faz toda diferença. A forma como nos dirigimos às coisas nada tem a ver com a natureza. Scheler escreve aqui que há três maneiras pelas quais o homem afasta-se da pulsão e mergulha em uma situação que Scheler chama “abertura do mundo”.  E assim escreve: “O homem é o X que pode se comportar “abertamente para o mundo” em uma medida ilimitada. A gênese do homem é a elevação até a abertura do mundo por força do espírito”. 

Essa perspectiva leva o autor a concluir nessa primeira parte que o animal não tem um “objeto” ao qual se voltar. O animal carrega uma estrutura biológica e pulsional consigo aonde quer que ele vá. Scheler chega a dizer nessa passagem que o animal carrega sua estrutura natural, pulsional, instintiva consigo da maneira que um caramujo leva a sua casa. O animal não se afasta do meio ambiente, enfim, “[...] ele não consegue transformar este meio ambiente em um objeto” informa-nos Max Scheler. Disso se segue que o animal pode até ter uma consciência diferente das plantas, observa nosso filósofo, mas não tem uma autoconsciência de si, não consegue se dominar, ou, como quer Scheler: “Ele não possui a si mesmo, não detém o poder sobre si mesmo – e por isto também não é consciente se si”. 

E Scheler fecha essa primeira parte em que faz essas diferenciações, afirmando: “Reunião, autoconsciência e capacidade objetiva de resistência pulsional originária formam uma única estrutura ilacerável que, como tal, só é própria ao homem”.  Conforme meu entender, desse ponto em diante, o filósofo começa um outro desdobramento dessas questões iniciais ou conceituais. Se possível, ainda retomarei essas análises, que aqui apresentei parcialmente. Em todos os casos, já traço algumas conclusões. Scheler, assim como Heidegger, Merleau-Ponty, Karl Jaspers, Marcel, Paul Tillich, Sartre, foram alunos do Método Fenomenológico fundado por Husserl, e foram todos seus alunos diretos. As expressões “essencialidade” e “objeto” que Scheler emprega têm a conotação da filosofia do “ato intencional” do velho Edmund Husserl. 

PARTE II

Na página 41 do texto que tenho em mãos, Scheler nos diz que só o homem tem a noção de "coisa"; só ele reconhece objetos - só ele diferencia coisa e substância. Sobre essa perspectiva de nosso autor, considero significativa a passagem que abaixo citada:   

[...] o homem tem desde o princípio um espaço próprio. O espaço que o cego de nascença aprende, por exemplo, ao ser operado, não é um ajuntamento de "espaços" originais cindidos, como o espaço do tato, o espaço visual, o espaço auditivo, mas apenas a identificação de seus dados sensoriais como símbolos e propriedades de uma coisa existente em outro lugar. 

Como entender? Por mim, explico assim: o homem tem uma dimensão ontológica de estar entre as coisas. Muito antes de localizar as coisas em particular, e categorizá-las, o homem tem uma dimensão total e integrativa com as coisas,  ao mesmo tempo que se sabe diferenciado delas. E assim diz Scheler: "Elas só são possíveis para um ser espiritual cuja insatisfação pulsional excede constantemente sua satisfação".  Eis a parte mais inteligente de Scheler. 

Em Scheler o Espírito é o centro da questão. Mas tem algo que em Scheler difere da filosofia tradicional, e essa diferença é o ele denomina espaço e a relação deste com o que ele denomina espírito.  É o caso do cachorro no jardim.  Scheler diz que um cachorro pode viver anos em um jardim, mas um cachorro "não tem um jardim". Tradicionalmente, identificamos espaço com geometria, como se espaço fosse algo a ser preenchido por um objeto. Me parece que o termo espaço em Scheler é bem outra coisa. Ele é atualidade, não uma coisa separada do homem. Ele é uma ontologia, que Scheler descreve assim: “[...] o espírito é o único ser que é por si mesmo incapaz de ser objetivado – ele é pura atualidade, só tem seu ser na livre realização de seus atos. [...] A pessoa só e em seus atos e através deles”. 

[...]