Maria...

 

“Na sala, sentado diante do computador, procurava aliviar a falta que ela lhe faz. Como havia tempos que não a via, escrevera sobre o céu, a noite, a lua, as nuvens. Escondia nas palavras escritas, as numerosas sensações desconfortáveis que entorpeciam o coração, deixando-o confuso e desnorteado. Procurava nas palavras formas de satisfazer o desejo de encontrá-la em algum lugar, em algum momento. Saia pelas ruas da cidade, olhando os carros que se assemelhavam aos dela, e fixando um feixe, uma reta óptica dentro dos veículos, contornando os formatos, delimitando os ângulos, criava milimetricamente feições deturpadas da realidade. Nenhuma de suas torpes tentativas ocasionara no seu surgimento. Sua incompetência hominídea fez da vida um desjejum de causar gorgulhos e dos sucos gástricos sulfúricos ácidos que perfuravam o estômago e corroíam a vontade de viver. As clavículas compridas, ossos em alto-relevos, a esclerótica amarelada, as mãos finas e o pescoço curvilíneo, uma barba agressiva e os cabelos desgrenhados, os olhos fundos e uma expressão de dor renitente e recorrente na face do maldito homem apreensivo, definiam suas características atuais. Parece extremamente doente. Uma enfermidade incurável, com sintomas aparentemente conhecidos. São poucos os que sabem o significado de sofrer por amor...”

No trabalho as horas passavam lentas. Um colega mastiga vorazmente um doce, emitindo gemidos de prazer e satisfação. Assemelha-se a um animal devorando uma presa fácil. Mal engoliu e levanta-se rapidamente para coletar a água do frigobar que acabara há pouco tempo. Olhando as estruturas daquele minúsculo lugar, pensa mentalmente, essa sala deve ter uns 50m². Tal pensamento inútil o faz imaginar o porquê de todo essa construção. Tijolo, cimento, areia, barro, seixo. Salas de aula. Uma escola...

- João! Chama o colega repentinamente após entrar na sala com duas garrafas de água, cortando todos os seus retilíneos pensamentos.

- O que foi? Disse tentando disfarçar a chateação.

- Será que tu podes me ajudar?! Perguntava num tom brincalhão sabendo que seu colega estava alheio a realidade.

Hernanes trazia consigo duas garrafas de água que o impedia de abrir a porta da sala.

-Ah, sim! Claro Hernanes.

Pegou-lhe uma das garrafas e colocou-a rapidamente na geladeira em miniatura e volto a sentar-se diante do computador.

- O que tu tanto escreves ai?

- São coisas... coisas que me ajudam a relaxar e aliviar os pensamentos!

- Sério?! E que tipo de coisas?

- Sei lá! Coisas que eu sinto que precisam ser colocadas para fora. É como topar com o dedo mindinho do pé na quina do armário. Se a gente não dá aquele grito, e diz aquela penca de palavrões, é como se a dor do dedo batido ficasse trinta vezes maior se tu não tivesses gritado.

- Acho que entendo! Então tu estás escrevendo porque tu queres gritar por algum “dedo mindinho” batido? Diz Hernanes ironicamente.

- É! “Bati o dedo” há alguns meses atrás e agora, preciso aliviar esse sentimento latente.

- Sei como é cara! Essa coisa de amor e sentimentos mal resolvidos é um saco. A última vez que amei alguém faz mais de seis anos. Foi uma menina que não era de Manaus. Morava aqui com os avós, mas voltou para Curitiba depois que concluiu o ensino médio. Parece que os pais decidiram dar-lhe um futuro mais promissor. Além de ter concluído o ensino regular no Amazonas, não ia querer que a filha também fizesse faculdade por aqui! Disse Hernanes ferozmente, desdenhando do berço onde nascera.

- E como tu fizeste para esquecê-la?

- Não lembro!

- Não lembra?

- Não!

- Mas como não? Então tu não a amavas!

- Não sei!

- E isso tem algum sentido? Como tu se diz apaixonado por alguém e nem ao menos lembra quando tu deixaste de sofrer por ela?

- Mas essa é a questão! Quando você não lembra que deixou de amar alguém, não significa que aquela pessoa não...

Escutava tudo o que o colega dizia sem muito interesse. Não entendia, e nem conseguia compreender como alguém que se dizia amar e mergulhar num verdadeiro amor, deixa de amar sua amada! E ainda esquecer o momento em que ela deixou de ser sua musa.

Olhava as outras partes daquele recinto claustrofóbico e decidiu sair e fumar um cigarro. Abriu a porta da frente rapidamente. Olhou para a rua deserta e sentiu aquele sol forte do meio-dia. Nem cachorro se aventurava naquele Saara amazonense. O asfalto fervilhava naquele calor escaldante. Uma brisa quente queimava seu o rosto, sem saber dizer o que era mais forte, o calor daquele vento fervido que parecia ter vindo direto do inferno, ou o fogo de seu presenteado zippo recém preenchido com o dispendioso fluído comprado à duras penas.

Sugava aquela fumaça furtiva. Perdia-se nos pensamentos envolto aquele clima quente que aparentemente nada tinha de úmido. A cabeça latejava. Havia bebido no dia anterior após lançar vários números e códigos de barra no laser do caixa eletrônico, e agora, pagava com o próprio desconforto a solitária comemoração fora de hora.

Nem terminara, e logo sentiu que precisava abrigar-se daquele terror diurno. Sentia como se Deus com ele competisse, fumando entre as estrelas, sendo o sol a brasa do cigarro em chamas flamejantes. Assim como saiu, entrou rapidamente de volta pelo portão gradeado do prédio recém inaugurado, e brincando com um dos poucos objetos do qual não se desfizera. Um dos vários presentes dado pela sua amada, o zippo. Questionava-se porque mantinha tantos presentes, tantos objetos, cartas, poesias, desenhos, fotos. Não entendia. Apenas sabia que devia obedecer essa insistente vontade de manter tudo que a ela recordasse.

Hernanes já havia parado de tagarelar porque percebera que João não lhe dava ouvidos. O dia passava rastejante. Não havia mais tantos atendimentos como no início do mês. Alguns funcionários entram na sala, falam alto. Outros retornam das férias, e gritam as felicidades e infelicidades das vidas alheias. Maldizem o nordeste. A cativante e linda cultura nordestina. Tantos escritores. Graciliano Ramos havia relatado e angustiado o crime de Luis da Silva, contra o repugnante Trajano Tavares.

João ouvia toda aquela ladainha com nojo da colega que se vangloriava e crescia sobre a pobreza alheia, e sem parar, verbegerava insistentemente, uma vez que percebia o consentimento dos outros comparsas desse infame desdém. Após sentir seus tímpanos estuprados por aquela voz estridente, decidira sair e tomar um café na cozinha a fim de não cometer o mesmo crime de Luis da Silva. Andando pelos corredores cinzentos do cimento fresco e mal arrematado, pensava e expressava um ar taciturno. Acendeu mais um cigarro e olhou na parede, um velho relógio marcando 13h00min e, com os olhos vidrados e vagos penetrando aquele copo de café, imaginava o que sua amada fazia naquelas fatídicas e enfadonhas horas daquele longo dia...

 

*     *     *

 

 Ainda na tarde ardida e esturricante, de asfaltos quase derretidos e ruas desertificadas, Maria acabara de sair da sala onde trabalhava em busca do que comer. Havia acordado atrasada naquela manhã de terça-feira, e mal havia comido em casa durante o café da manhã. Chegara em cima da hora, e com os trabalhos amontoando e caindo pelas beiradas de sua mesa, passara a manhã absorta, afogando-se em documentos e processos inacabados.

Pegara a bolsa e as chaves do carro, e decidira enfrentar a brilhante estrela diurna. Já socorrida pelo ar refrigerado do veículo automotivo, manobrava entre os outros lerdos motoristas no trânsito enlouquecido da cidade, objetivando chegar em casa, ingerir ligeiramente o alimento bem cozido de dona Nazaré, devotada mãe e esposa, e em seguida jogar-se por alguns minutos na cama desarrumada, mas um tanto aconchegante, que dava-lhe uma espécie de abraço fraternal do qual ela apenas encontrava nos seus lençóis velhos e amarrotados.

- Mãe, cheguei!

- Já, filha!? Poxa que surpresa. Pensei que tu ias almoçar com o pessoal do trabalho. Está tudo bem?

- Está sim! Preciso descansar um pouco antes de retomar os pontos atrasados. Tenho muito que fazer! Afirmava Maria olhando para o chão reformado da sala de estar, tentando não demonstrar que o real motivo de sua ida para casa, era uma forte angústia que lhe acometia fazia alguns dias.

- Ah, sim, claro! Disse dona Nazaré sem se dar conta do verdadeiro estado de espírito de Maria.

Na mesa, olhara no prato os pedaços suculentos de bife acebolado, acompanhado de uma generosa porção de feijão, macarrão, farofa e salada de maionese. Tudo muito bem preparado e posto à mesa. Comeu felizmente todo aquele alimento feito após longos anos de experiência de dona Nazaré. Satisfeita, lavou a louça que sujara e rapidamente escovou os dentes e foi deitar-se nos braços de seus lençóis.

Afrouxou o cinto. Tirou a blusinha bege de rendas floridas que comprara num brechó duas semanas atrás. Desabotoou o jeans, liberando um pouco do minúsculo ziper e prostrou-se na cama. Deitada, pensava na delicia de sentir aquele tecido de algodão, ainda frescos da noite anterior sob os ventos frios do refrigerador e, finalmente, sentiu-se mais aliviada daquela angústia que lhe apertava o peito, e muito fortemente, forçava-lhe a segurar um choro soluçante.

Sorria após reconfortar-se naquela nuvem de pano terrena situada no meio de todos os livros, máquinas fotográficas (de vários modelos) novas e antigas; guitarra, violão, vinis, roupas, maquiagens, apostilas, sapatos, bolsas, DVDs e outras bugigangas das quais acumulava com muito prazer e sacrifício, mas que adornavam seu adorado e maculado refúgio que mais parecia um estoque de algum antiquário que mesmo um quarto. Sentia-se melhor dentro daquele universo particular. Sentia-se segura e confortável porque conhecia todos os cantos, todos os detalhes e todas as coisas que por mais loucamente desorganizadas, na grande maioria das vezes, sabia exatamente onde encontrar um minúsculo alfinete. Ainda deitada, fechava os olhos lembrando os bons momentos que vivera ao lado de João. Sentia falta da companhia da qual ele a costumara. A saudade era forte, e sufocante. Lembrava com uma profunda tristeza os inúmeros eventos que se sucederam e agora, a levara até ali. Era difícil acreditar que o homem a quem havia se entregado de corpo e alma, não estava mais em sua companhia. Por várias noites sonhou estar em seus braços; passeando de mãos dadas por uma praça qualquer, e deitada ao seu lado numa cama, olhando-o nos olhos e sentindo o amor que ele há muito não emanava. Começou a sentir-se consternada. Metamorfoseando aquele lindo sorriso em uma lágrima nascida da saudade, ela começava nele pensar com extremo amor, e a imaginar o que ele estaria fazendo naquele exato momento...

E nesse instante. Nessa perfeita fração de segundo na qual dois corpos, dois seres se união em pensamentos, os deuses ouviram um estrondo, antecipado por uma luz singular que aquele poderoso sentimento emanara da terra, e que cortara os céus, atravessando as estrelas e ricocheteando nos confins do universo. Todos se voltaram para o ínfimo ponto luminoso que emergia como um grão de areia em cem milhões de oceanos, mas com a beleza e esplendor de todas as estrelas. Entreolharam-se com ar de espanto e não acreditando no que acabara de acontecer um deles diz:

- Que ser seria esse capaz de retirar-nos de nossos sonhos dourados e emitir tamanho som e tão encantadora luz?!

Nenhum fora capaz de entender nem explicar o questionamento feito e decidiram juntos investigar o ocorrido. Descendo de suas moradas, cada um viajava mais rápido que a luz. Cortando constelações, buracos negros, galáxias e todo um emaranhado de vida desconhecida que se perdia nos arredores indeterminados do universo, chegaram a terra. Vislumbraram aquela energia imperceptível a olho nu pelos seres humanos, pois certa vez um sábio disse: que o homem evoluiu na carne, mas se enfraqueceu no espírito, já não sente mais a presença dos seres celestiais nem a leveza do bater das asas de uma borboleta. Tudo porque escolhera o engenho, a inteligência, a vida intelectiva, ao invés do amor, a intuição e a experiência intra e extracorpórea. E na mesma velocidade com que cruzaram o firmamento, dirigiram-se até aquele lindo e luminoso feixe de luz.

Aproximando-se dali os deuses encontraram a origem de toda aquela energia que brotava de dois pontos diferentes, porém interligavam-se num ponto mais acima, criando aquele milagre que os cegava a retina e os embebedava de espanto. Perceberam de imediato que tudo aquilo significava a grandiosidade que era o amor daqueles meros mortais. Surpreendidos por tamanho sentimento, entreolharam-se novamente, e sem dizerem uma só palavra, compreenderam que aqueles platônicos sonhadores precisavam de um momento suspensos da realidade, separados de toda a fedida e emporcalhada podridão que era a vida na terra. Com seus poderes celestiais, sentaram-se em círculo ao redor do grandioso raio luminoso. Direcionaram bolas de energia em direção aquele poderoso sentimento, e, abriram uma nova dimensão, criando uma brecha entre o espaço e o tempo, permitindo que eles se reencontrassem mais uma vez.

João e Maria sentiram bem no âmago de seus ventres, uma experiência nunca antes vivida. Perceberam simultaneamente um alívio divino. Viram suas mentes transportadas como que levadas pelas forças magnéticas da terra, conduzindo-as até seus amores. Não viam propriamente o que acontecia, mas sentiam o latejar daquela inexplicável experiência.

Nessa dimensão por eles vivenciada, um sente a presença do outro como se ambos estivessem na vida real. Mas aquilo era a vida real, por mais inacreditável que fosse. Sem demora, eles se abraçaram como se suas vidas disso dependessem. Beijaram-se perdendo o fôlego e esfregando os narizes nos movimentos negativos de cabeça que os beijos produzem. Abriram os olhos e sorriram como se ouvissem o canto dos mais belos serafins, e perceberam que era a saudade cedendo lugar ao reencontro.

 

*     *     *

 

- Triiiiim! Toca o despertador do celular de João.

E como se tivesse acordado de um sonho João olha as horas, e o relógio afirma que são 13h00min01seg. Esfregava os olhos com força, num movimento repetitivo e semicircular, piscando repetidas vezes, e olhando várias vezes o tempo que aquele aparelho marcava. Confuso, não lembra e não sabe dizer se o que acontecera havia sido de fato verdade ou se ele finalmente estava enlouquecendo e por fim, tendo alucinações. O café ainda fumegava dentro do copo de azeitona reutilizado pela cozinheira, o cigarro aceso queimando e deitando cinzas pelo balcão... Não conseguia entender o que havia acontecido. Saíra da cozinha pensando no que aparentemente vivenciara e, subitamente, sente uma vibração na perna esquerda. O coração vem até a laringe e ele tem fortes lembranças daquela experiência. Lentamente ergue seu celular na altura dos olhos e encontra uma mensagem trazendo as seguintes palavras:

- “Oi...Sou eu, Maria!”

 

FIM