O velho Marcial, bom de bola, bom de versos, que se defendia bem nos sambas, partiu para uma viagem sem volta. Não gosto de dizer que deixou alguém, porque nessas viagens ninguém gosta de ir junto. Mas ficaram suas duas filhotas lindas e muito queridas pelo amoroso pai. Nascido em Santo André, Marcial travou conhecimento com a turminha da música, incluindo aí o velho Saulo de Tarso, que a covid tirou da gente e ainda não terminou a dor da perda pelos amigos e parentes. Nessa turma estava ainda o Sinésio Dozzi Tezza, Edélcio Thenório, Oscar de Vitto e outros tantos.

Conheci o Marcial em Barra do Uma, onde a nossa turma relaxava nos feriados prolongados acampando no quintal do Heitor Tolezano, um andreense que largou tudo para viver a vida de papo pro ar naquela maravilhosa praia às margens do Rio Uma. Depois de instalados eu e a Celinha fomos ao único boteco na época, o Bar do Xandoca, onde estava toda a turma. O Saulinho ao violão, acompanhava um garotão descolado que cantava uma das canções da geração Bossa Nova e salvo engano, do Tom Jobim. No final, rolou uma brincadeira entre ele e o Saulo sobre quem era melhor em campo. O Saulo dizia que naquela turma não tinha ninguém melhor do que ele e ia provar no dia na pelada que teria no dia seguinte contra um time improvisado da vila de pescadores. Depois do jogo o Saulinho vitorioso, pois marcara meia dúzia de gols, riu de modo a ouvir-se de longe gozando o Marcial, que não marcara nenhum.

O Marcial podia não ser o bambambã no samba, mas até jogava bem. Quando o nosso time, o Boca Seca enfrentava aos domingos o time poderoso da ETE Lauro Gomes,  ele segurava bem no meio de campo. Enquanto a bola rolava na frente, ele se aproximava e lá vinha um poema do Ruy Guerra da peça Calabar: “Meu coração tem um sereno jeito/E as minhas mãos o golpe duro e presto... “, com um bom sotaque lusitano. Como ele percebeu que eu era do ramo, logo depois veio com uma do espanhol Garcia Lorca “Verde que te quiero verde/ verde viento, verde rama/ El barco sobre la mar /e el caballo na montana...”. entre outras.

Com o tempo a turma foi se afastando e cada um foi procurar seu lugar no futuro. Marcial formou-se em Direito e foi lutar por um lugar ao sol na concorrida profissão. Anos depois encontramos o Canteras de terno e gravata no centro de São Bernardo. Feliz pelo encontro nos levou para conhecer seu escritório num prédio próximo. Lá tomamos um café e relembramos os velhos tempos e saudosos amigos. Às vezes o encontrava na padaria Royal, onde comprávamos o pão nosso de cada dia que fica próxima a casa dele e aproveitávamos para papear e ele sempre lembrando algum poema do Garcia Lorca, como: “Tengo sueño, tengo sueño/ tengo gana de dormir. Uno ojo tengo cerrado, /outro ojo a médio abrir”.

Num desses encontros, entrei na padaria com o dono de uma locadora de vídeo ao lado que era meu conhecido para tomar um café, quando encontrei o Marcial bebericando uma cerveja para encerrar o expediente, enquanto esperava uma pizza.  Apresentei o Marcial para o colega e foi com surpresa, que descobri que houve uma “peleja” entre os dois por algum problema mal resolvido. Precisei colocar panos quentes para que não se pegassem. Com sangue valenciano nas veias, Marcial não levava desaforo para casa. Felizmente acabaram fazendo as pazes.

Na última vez que o vi, foi na clínica onde a filha mais nova trabalha para fazer um exame médico funcional. Foi uma grata surpresa e logo me apresentou sua filha. Como eu estava indo para casa, ele aproveitou pedir uma carona. No carro dei-lhe um livro de crônicas que havia publicado recentemente e ele comentou que chegou a publicar crônicas em um jornal do interior.  Falou que também estava escrevendo alguns poemas e quem sabe publicaria também, mas ficou de me telefonar para mostrá-los e provavelmente esqueceu. Não falamos de dores do corpo ou da alma e achei que até estava bem. Provavelmente a doença já vinha corroendo as suas entranhas. E foi com triste surpresa que soubemos da sua partida, que foi agravada, provavelmente por um segundo contágio do Covid-19.

Perdi outro amigo no mesmo dia, uma pessoa bem mais jovem e tal como o Marcial, gostava de viver intensamente, com paixão e sem medo do presente ou do futuro. Como diria o Ribaldo, personagem de Grande Sertões Veredas: “viver é muito perigoso”. E assim, vamos lembrar do saudoso Marcial e seu amor pela poesia.

 

A las cinco de la tarde

La muerte puso huevos em la herida

...

Um ataúd com ruedas es la cama

A las cinco de la tarde

...

Eran las cinco em sombra de la tarde

 

(Garcia Lorca)