Manuela completava dezoito anos. Família reunida, casa cheia, amigos, gente jovem, todos festejando o aniversário. A certa altura, o pai perguntou pela filha:

─ Tio José, onde está Manuela?

─ Manuela foi pra balada com a turma.

O avô de Manuela, que viera de longe para participar da festa, não viu quem respondeu, mas notou a surpresa do pai diante da notícia inesperada, e sorriu levemente. O pai, por sua vez, notou o gesto do velho.

─ Pai, do que o senhor está rindo?

─ Perdão, não estou rindo. Não há do que rir. Isso que você viu relampejarno meu rosto foi o esboço de um leve sorriso.

─ Vá lá que seja, um leve sorriso, mas e daí? Qual é a graça?

─ A graça foi a cara que você fez, ao tomar conhecimento de que sua filha "foi pra balada". Se li corretamente a sua reação, a notícia não o deixou satisfeito. E creio que ainda agora você não conseguiu organizar as idéias. Se estiver interessado, podemos conversar um pouco a respeito dessas impressões, quero dizer, das suas e das minhas. Pode ser?

─ De fato, o senhor tem razão. A resposta me inquieta. E digo mais: além de me inquietar, a resposta me constrange moralmente, na medida em que me instiga a questionar a atitude de Manuela, como se ela não fosse inteiramente digna da minha confiança.

─ Estou entendendo. Prossiga.

─ Bem, o fato é que ainda não me acostumei com esse jogo de palavras que pretende indicar um deslocamento real na direção de um ponto indefinido. Se me dissessem que a menina saiu com amigos, para se divertir numa boate, num clube, num forró ou num pagode, pelo menos eu teria uma referência concreta, uma dimensão espacial, onde situar o termo do deslocamento. Mas "foi pra balada", apontando um destino inexistente, me nega esse ponto de apoio essencial à prática do conhecimento. O senhor tem razão. Não me sinto bem. Não consigo organizar as idéias.

─ Filho, se bem o conheço, e creio conhecê-lo muito bem, o seu constrangimento é ilusório. Digo melhor: o que você sente não se inscreve na ordem da experiência moral. Você confia em Manuela, você conhece o belo caráter da menina. O que você sente, acredito eu, poderia ser entendido como uma espécie de náusea intelectual.

─ Náusea intelectual? Pai, tem dó, o senhor precisa parar de ler o Foucault.

─ Não, não se trata disso. Essa experiência subjetiva da náusea intelectual, suscetível de visitar a intimidade de qualquer um, costuma acontecer quando a inteligência se vê compelida a aceitar noções obscuras, a conviver com elas, e fingir o domínio da situação. Esse tipo de brutalidade é muito comum, inclusive aqui no Brasil. Aliás, há quem relacione a náusea intelectual com o acentuado crescimento dos estados depressivos da população.

─ Epa! Espera um pouco. Admito a minha náusea, mas não sucumbo ao jugo do obscurantismo, nem tampouco finjo dominar a situação.

─ Que bom! Admitir a náusea e não fingir o domínio da situação já se pode considerar um grande avanço. Quanto a não sucumbir ao jugo do obscurantismo,impende notar que essa disposição situa-se entre aquelas que só se validam empiricamente. Em outras palavras, você terá de demonstrar que realmente não sucumbe ao obscurantismo. Terá de exigir a abertura conceitual de "foi pra balada", terá de verificar se quem deu a notícia dispõe de alguma pista da direção efetivamente tomada pela menina. E vá logo se preparando para não desanimar, caso não haja pista alguma, isto é, se preparando para enfrentar a possibilidade de "foi pra balada" ter sido usada em sentido figurado, o qual, diga-se de passagem, representa ser a sua vertente preferencial.

─ Tudo bem. Mas como é que eu vou saber se "foi pra balada" encerra um sentido concreto ou figurado?

─ Pelo estilo da pessoa que usa a expressão, ora essa.A propósito, quando você perguntou onde estava Manuela, quem respondeu?

─ Foi o tio José.

─ O quê? Está me dizendo que foi o Zé quem lhe deu a informação? Não!E você acreditou! Logo o Zé, aquele gozador inveterado. Vá ver que a menina está por aí, talvez no jardim, talvez na biblioteca. O Zé deve estar se divertindo com a sua ingenuidade.

─ Com a minha não, com a nossa, porque o senhor também estremeceu.

Nisso, Manuela, lindíssima, aparece no topo da escada, e desce lentamente ao encontro do pai e do avô. O pai, reconciliado, pergunta:

─ Filha, está gostando da festa?

─ Estou adorando, pai, mas a turma está querendo sair pra balada antes das onze. Eu queria saber o que o senhor acha.

O avô tinha razão. Era uma questão de estilo. A gentileza da consulta, a elegância da ponderação, a espontaneidade feminina, o apuro pessoal, a confiança, a simpatia, e todo o charme juvenil abriram os caminhos ao conhecimento, e o pai, por alguns instantes, como num passe de mágica, visitou com o coração a "balada" de Manuela, um lugar alegre, arejado, de fácil acesso, estacionamento amplo, segurança por todos os lados.

─ Pai, o senhor ouviu o que eu falei? A turma quer sair pra balada antes das onze. Podemos ir?

─ Claro, minha filha, vá à balada com os seus amigos e divirta-se. A propósito, você não precisa levar a chave. Vou dormir na varanda. Abrirei o portão quando você chegar.