Nada neste mundo acontece por acaso. Tudo tem algum interesse, um propósito, um fundamento, e nem sempre justos e humanos. 

Defender os interesses dos réus, neste processo, tem sido para esta advogada um verdadeiro calvário, um drama, pois presenciou a dor e o desespero de um cidadão de bem e de toda sua família. 

Cidadão este que viveu dignamente, através de seu trabalho. Daquele trabalho que ele sabia fazer ou que conseguia fazer, dentro de suas limitações intelectuais e, mormente, financeiras. 

O ‘Senhor dos Porcos’, como era conhecido há mais de 45 anos no bairro Estrela do Mar, na cidade de Cel. João Pio, criava seus porcos para o sustento de sua família, a qual cuidou e sustentou valorosamente. 

Mesmo sendo semianalfabeto, trabalhava catando lixo, mas jamais se desviou na conduta, nunca roubou. E, mesmo assim, o Estado não o incentivou, nunca lhe proporcionou ingresso em projetos municipais, estaduais ou federais, que pudessem lhe ensinar o manuseio com a criação de porcos. 

O ‘Senhor dos Porcos’ foi deixado à deriva. Era melhor multá-lo do que investir em seu fortalecimento como cidadão. Afinal, quem era o ‘Senhor dos Porcos’ para o Estado? 

Era um simples analfabeto que tinha uma pequena criação de porcos, catava lixo, e que em nada incomodava enquanto o Bairro Estrela do Mar era apenas agrícola, muito distante do centro da cidade. 

Entretanto, quando o Bairro Estrela do Mar começou a ter interesses imobiliários e grandes grupos começaram a querer investir no local, o ‘Senhor dos Porcos’, já no fim da vida, velho, cansado, sem perspectivas, começou a ser um estorvo para muitos interesses financeiros daquela promissora cidade. 

Isto é terrível! Isto é monstruoso! É desumano e injusto. 

Ninguém, mas ninguém mesmo, ponderou ou pensou na vida do ‘Senhor dos Porcos’, que tinha direito em terminar seus dias dignamente. Dignamente, sim! Pois foi homem honesto e guardião de sua família. 

Colono, que viveu sempre dentro de sua propriedade, mal conhecendo outros bairros da cidade. Talvez, nunca saindo fora dela. E a família do ‘Senhor dos Porcos’, como deve se sentir hoje? Desamparada, aflita, ansiosa, desesperada, com muita dor e revolta pela morte do esposo, pai e avô. 

A família está insegura, pois não compreende muito bem o que está e o que irá lhe acontecer, após a propositura de tal processo judicial, visando o fim da criação dos porcos. São pessoas pobres, simples e sem conhecimentos elaborados. 

Eles não têm conhecimento algum de que estão sendo vilipendiados, tripudiados, injustiçados, pelo próprio Estado que os deveria proteger. O ‘Senhor dos Porcos’ está morto! Ele morreu de tristeza! Ou melhor, o ‘Senhor dos Porcos’ veio morrendo, morrendo a conta-gotas, desde que toda essa aberração começou. 

Quando lhe arrancaram os porcos, expresso aqui minha percepção daquele momento, arrancaram-lhe a vida. Presenciei um homem morrer aos poucos, de tristeza, de desânimo, de desalento, de imensa humildade, pois nem conseguia compreender, com clareza, o que estava lhe acontecendo, por mais que se tentasse explicar, clarificar, esmiuçar. 

Por muitas vezes esta advogada achou por bem nem mais explicar, nem esmiuçar mais nada, eis que tal problema tinha chegado como uma lança no coração de seu cliente. Seu físico ainda estava vivo; entretanto, sua alma e sua emoção não mais estavam. 

Buscavam-se palavras, expressões, gestos, tudo para que o “Senhor dos Porcos’ pudesse compreender e reagir, mas nada teve o poder de lhe trazer novamente o sentido e a alegria pela vida. 

Que Estado é esse que castiga um filho com tamanha crueldade? Para este Estado vale qualquer meio para justificar os fins? 

Durante todos os mais de 45 anos em que o ‘Senhor dos Porcos’ criou porcos, o Estado jamais teve qualquer tipo de preocupação em lhe proporcionar capacitação profissional, fortalecimento e conhecimento, para que pudesse ir se adaptando aos novos tempos e às novas tecnologias. 

O ‘Senhor dos Porcos’, no final da vida, ficou sem seus porcos, os quais foram retirados de sua propriedade por Oficial de Justiça (!) e, consequentemente, sem trabalho. 

Os senhores conseguem imaginar o que significa processo judicial e oficial de justiça para uma pessoa nas condições social e intelectual do réu? Alguém, do Estado, se preocupou com esta parte - social - do processo? 

Um cidadão, de mais de 70 anos, ficou sem trabalho! Isto é problema do Estado! Nada foi feito pelo ‘Senhor dos Porcos’ ou por sua família. O Estado tão somente agiu contra esse senhor, como se um criminoso fosse. 

Em momento algum tentaram adequá-lo a qualquer tipo de programa do governo ou política pública. Nada foi feito a seu favor. Nada. E o ‘Senhor dos Porcos’ morreu. Morreu de tristeza por ter perdido seu único trabalho de uma vida inteira. 

Com esta experiência e vivência profissional não me conformo e jamais me conformarei, certamente estou tão doente quanto a família do ‘Senhor dos Porcos’, eis que acompanhei seu definhamento, através da angústia, do desespero, do grito calado da dor da alma. 

Lutamos juntos, com todas as armas, dignas e honestas, de que dispúnhamos, caminhamos e conhecemos uma seara do mundo e do ser humano que não imaginávamos que existisse e ou que fosse possível existir entre os ditos humanos. 

O ser humano pode ser surpreendentemente cruel e perverso, uma constatação por deveras triste e decepcionante, mas lamentavelmente real. 

Este foi o desabafo de uma advogada, que, em 27 anos de formada, jamais havia se deparado com uma situação que lhe causasse tamanha perplexidade, tristeza e decepção, desalento e desencanto pela Justiça e pelo Estado como um todo. 

Tomar consciência, aos 50 anos de vida e 27 de profissão, que o ser humano não vale nada, absolutamente nada, quando interesses financeiros estão em jogo, e que é mero fantoche perante o poderio financeiro, é fato para tirar toda e qualquer forma de esperança para continuar advogando e acreditando na humanidade. 

Entretanto, continuarei lutando por um mundo mais justo e possível para todos, tentando amenizar a dor brutal dos meus clientes. 

Advocacia, para mim, tem este sentido de prestação de serviço, de busca pelo equilíbrio e pela paz social. Ao meu cliente, ‘Senhor dos Porcos’, toda a minha admiração e o meu profundo respeito pela pessoa representou junto a sua família. 

Descanse em paz. Você merece muito, meu amigo. 

Aprendi demais com você. Obrigada. 

 

Carmen Pio 

23.08.2008 

[email protected]