Como todos sabem, vários foram os casos de racismo no futebol em que jogadores e torcedores afrodescendentes são chamados de “macacos”.

Há três modos básicos de lidar com a situação. A primeira, evidentemente, é a jurídica: processar penalmente e civilmente os agressores. Trata-se de solução que não analisaremos porque demandaria uma abordagem técnico-jurídica – e chata – que não cabe aqui. A segunda é receber o que era xingamento como um elogio e adotá-lo. E a terceira é curvar-se aos agressores – foi o que infelizmente já se fez na seleção brasileira, por obra de Epitácio Pessoa.

Como os jogadores brasileiros foram chamados de “macaquitos” pelos argentinos, Epitácio Pessoa, presidente da República e de honra da CBD (futura CBF) fez a seguinte exigência, por ocasião da convocação da seleção para a disputa do campeonato sul-americano, em 1921: “a não ida para o Rio da Prata de jogadores que não sejam rigorosamente brancos” (apud Leonardo Pereira). Na crônica “Bendito football”, de 01.10.1921, o mulato Lima Barreto, que odiava o futebol (ver nosso artigo “Contra o foot-ball”), fez o seguinte comentário mordaz a propósito dessa decisão: “Sua Excelência que está habituado a resolver questões mais difíceis como sejam a cor das calças com que os convidados devem comparecer às recepções de palácio; as regras de precedência, que convém sejam observadas nos cumprimentos a pessoas reais e principescas, não teve dúvida em solucionar a grave questão. Foi sua resolução de que gente tão ordinária e comprometedora não devia figurar nas exportáveis turmas de jogadores; lá fora, acrescentou, não se precisava saber que tínhamos no Brasil semelhante esterco humano.”

Outra forma, como dissemos, é transformar o xingamento em elogio. Segundo José Miguel Wisnik, “adotando o xingamento, revertem o caráter pretensamente negativo da expressão, imprimindo-lhe uma conotação orgulhosamente provocativa”. Foi o que fez a torcida da Associação Atlética Ponte Preta.

Segundo Aristides Almeida Rocha, em seu excelente livro sobre a simbologia animal no esporte, há três teorias que explicam por que a Ponte Preta é a Macaca. A teoria do torcedor José Renato Reis Maia é a de que, quando os torcedores pontepretanos chegavam numa cidade, andavam sempre em grupos, ao que os moradores diziam que “chegou o bando de macacos”. A teoria do engenheiro Ariovaldo Casimiro Nesso – que, segundo Aristides, teria maior crédito – é a de que, no ano da fundação do clube, os pontepretanos jogavam bola junto a uma ponte (Preta?) onde, inesperadamente, apareceu uma macaca. (Se for essa a verdadeira, então deve-se concluir que a Macaca é provavelmente o primeiro mascote do futebol brasileiro, como já dissemos no capítulo "Primeira mascote", em nosso livro Do fundo do baú.) Por fim, há a teoria “tradicional”, de que foi um xingamento da torcida bugrina. Aí os pontepretanos transformaram o limão numa limonada e a macaca é a mascote oficial da Ponte.

Bem, não foi difícil aos pontepretanos encontrar qualidades no “xingamento”. Como diria o grande Câmara Cascudo, o macaco “é a figura da agilidade, astúcia sem escrúpulos, infalivelmente vitorioso pela rapidez nas soluções imprevistas e felizes”. Em edição posterior de seu famoso Dicionário do folclore brasileiro, diz mais: que “no fabulário clássico o macaco aparece como símbolo de habilidade cínica, perspicácia e ligeireza. Mesmo ávido e matreiro, não perde a preferência do povo, especialmente entre os sertanejos brasileiros”.

Para finalizar, somos obrigados a transcrever a crônica “Macaquitos”, de Lima Barreto. Uma página imortal, publicada em 23.10.1920, leitura interessante tanto para os brasileiros em geral quanto para os pontepretanos em particular:

“Um jornal ou semanário de Buenos Aires, quando uma equipe brasileira de football, de volta do Chile, onde fora disputar um campeonato internacional, por lá passou, pintou-a como macacos.

A cousa passou desapercebida, devido ao atordoamento das festas do Rei Alberto [rei belga que estava em visita ao Brasil]; mas, se assim não fosse, estou certo de que haveria irritação em todos os ânimos.

Precisamos nos convencer de que não há nenhum insulto em chamar-nos de macacos. O macaco, segundo os zoologistas, é um dos mais adiantados exemplares da série animal; e há mesmo competências que o fazem, não pai, pelo menos primo do homem. Tão digno ‘totem’ não nos pode causar vergonha.

A França, isto é, os franceses são tratados de galos e eles não se zangam com isto; ao contrário: o galo gaulês, o chantecler, é motivo de orgulho para eles.

Entretanto, quão longe está o galo, na escala zoológica, do macaco! Nem mamífero é!

Quase todas as nações, segundo lendas e tradições, têm parentesco ou se emblemam com animais. Os russos nunca se zangaram por chamá-los de ursos brancos; e o urso não é um animal tão inteligente e ladino como o macaco.

Vários países, como a Prússia e a Áustria, põem nas suas bandeiras águias; entretanto, a águia, desprezando a acepção pejorativa que tomou entre nós, não é lá animal muito simpático.

A Inglaterra tem como insígnias animais o leopardo e o unicórnio. Digam-me agora os senhores: o leopardo é um animal muito digno?

A Bélgica tem leões ou leão nas suas armas; entretanto, o leão é um animal sem préstimo e carniceiro. O macaco – é verdade – não tem préstimo; mas é frugívoro, inteligente e parente próximo do homem.

Não vejo motivos para zanga, nessa história dos argentinos chamar-nos de macacos, tanto mais que, nas nossas histórias populares, nós demonstramos muita simpatia por esse endiabrado animal.”

 

Fontes:

BERTAZZOLI, José. Ponte Preta 100 anos: luta, obstinação e vitória. Campinas: ed. do autor, 2000. p. 149.

CÂMARA CASCUDO, Luís da. Dicionário do folclore brasileiro. 5ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984. v. 2, p. 449.

CÂMARA CASCUDO, Luís da. Dicionário do folclore brasileiro. 10ª ed. São Paulo: Global, 2001. p. 345.

LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Toda crônica. Rio de Janeiro: Agir, 2004. v. 2, p. 224 e 433.

LINARDI, Pedro Marcos. É o bicho: o mundo animal no reino do futebol. Belo Horizonte: Armazém de Idéias, 1998.

MACACA por quê? Revista Ponte Preta, nº 3, ago. 2001, p. 32.

MORATO, Márcio Pereira. A dinâmica da rivalidade entre pontepretanos e bugrinos. In: DAOLIO, Jocimar (org.). Futebol, cultura e sociedade. Campinas: Autores Associados, 2005. p. 97.

PÉCORA, André; CAMPINEIRO, Stephan. Ponte Preta: a torcida que tem um time. Campinas: Pontes, 2010. p. 62-3.

PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro, 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p. 176-7.

ROCHA, Aristides Almeida. A simbologia animal no esporte. São Paulo: Scortecci, 2000. p. 46-8.

SANTOS NETO, José Moraes dos; CARVALHO, Djota. Ponte Preta: 110 anos 110 fatos. Campinas: AAPP, 2010.

WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 47-8.