LOUCURA E DIVAGAÇÕES CONTEMPORÂNEAS

 

A leitura de parte da obra de Michel Foucault deixa bem clara a intenção do autor de fixar certos pontos teóricos, pontos que dão base a toda a investigação intelectual foucaultiana. Tais conceitos formam um tripé conceitual, constituído pelas teorias da linguagem, do discurso e dos jogos de poder-saber.

A mim interessará mais o jogo de poder saber, pelo menos na abordagem do tema que me propus a escrever. Porém, há de se entender que as três teorias fundamentais não se apresentam desconexas, pelo contrário, todas estão interligadas, o que torna demasiadamente difícil o destacamento de uma teoria para um estudo mais específico.

A apresentação de Michel Foucault a respeito da criação do saber com a finalidade de um poder, me intrigou de certa forma que senti a necessidade de abordar um tema que é comumente vilipendiado pela sociedade, não só em tempos modernos, mas desde sempre. O assunto que me interessará neste texto será a loucura.

Assim como vários conceitos foram criados para a satisfação da sede de poder de vários déspotas da antiguidade, não seria de se estranhar que a loucura fosse mais um desses rótulos criados para estigmatizar aqueles que não eram de todo bem quistos pelos detentores de poder.

Analisando o número de internos loucos da antiguidade percebe-se que por certo nem todos eram insanos. Algo se esconde atrás da exclusão social aplicada a várias pessoas que gozavam de plenas capacidades mentais. Uma simples investigação do modelo político pode nos fornecer grandes pistas sobre o porquê da castração da liberdade dessas pessoas.

Para que fique claro o meu objetivo neste texto, tomarei como exemplo o famoso pseudolouco Marquês de Sade. Donatien Alphonse François ou o Divino Marquês, resolve expor todo o seu interesse para com a liberdade de expressão, todo o seu desinteresse pelas regras do Estado e pelos pudores e construções morais de uma sociedade que nas palavras de Sade era mais podre do que porões de navios.

Se entendermos que a França, quando Sade surge com o seu discurso pungente contra a moral imposta pela igreja e contra o Estado, era governada por um dos mais antidemocráticos governantes de toda a história mundial, Luís XVI, fica evidente que o destino do marquês não seria o mais agradável.

Donatien Alphonse é julgado criminalmente, fato interessante, uma vez que a moral religiosa e estatal era garantida pela força do Estado. Condenado, ele é preso no Hospício Chartenton e lá cumpre a sua pena. É-lhe concedido o direito de escrever do cárcere para seus familiares e de dentro do presídio ele escreve um livro que vem para desafiar toda a sociedade do final do século XVIII.

Preocupados com a repercussão da obra do Marquês o governo francês, detentor do monopólio do exercício da força, ordena que seja castrado todo e qualquer privilégio para Sade. Apesar dos esforços dos funcionários do hospício, Donatien continua incessantemente produzindo suas peças e livros, totalmente comprometidos com uma crítica feroz a tudo que dizia respeito à sociedade francesa e ao governo imperial, através de uma amiga que escreva tudo o que Sade ditava.

Como medida drástica o governo ordena que Sade seja enclausurado em um poço onde não teria a menor possibilidade de comunicação com os outros internos e nem mesmo com a grande maioria dos funcionários. Porém, nem isso foi capaz de deter o Marquês, que escreve mensagens desafiadoras nas paredes de sua cela, usando as próprias fezes.

Sentindo-se desafiado por um qualquer, Luís XVI condena Sade à pena de prisão perpétua. Se não fosse a eclosão da Revolução Francesa, talvez Sade nunca mais estaria em liberdade novamente.

O caso de Donatien Alphonse François exemplifica muito bem do que é capaz um Estado com um discurso forte, principalmente quando se vale do medo da sociedade. O Marquês de Sade foi apresentado como um insano de extrema periculosidade para a manutenção da ordem social, uma vez que ele atentava contra a moral e os bons costumes. Para justificar o trancafiamento do Marquês, o governo declara que quem não concorda com os ideais religiosos e estatais e pretende promover uma mudança na forma do pensar, só pode estar louco, tendo em vista que o Estado era perfeito e não cabia julgamento ou discussão a respeito de qualquer uma de suas instituições.

Entendendo o caso dessa forma, fica bem clara a teoria de Foucault no processo de julgamento do Marquês de Sade. Primeiramente o poder estatal determina uma nova verdade: o Estado e suas instituições são perfeitas e quem as discute e pretende modifica-las só pode estar insano. Logo depois, usando dessa nova verdade, o Estado lança mão de um artifício que domina com destreza, o discurso. Através do discurso o governo expõe uma situação para a sociedade, de forma distorcida, com a finalidade de legitimar as suas ações intransigentes, segundo uma ótica de proteção do bom funcionamento social. É evidente que uma sociedade composta por uma maioria influenciável com facilidade, não titubeará em concordar com o Estado e condenar quem quer que esteja ameaçando a bonança social.

Porém, apesar do caso de Donatien Alphonse François ser muito interessante para uma análise mais profunda, tanto histórica quanto comparativa, é ainda mais intrigante perceber a que ponto o discurso das verdades pode ser convincente até mesmo nos dias de hoje.

Não muito raro encontramos casos de famílias que até meados dos anos 80 internavam seus parentes em hospícios para o tratamento de doenças que nada tinham a ver com desordem mental. Até os anos noventa os viciados em droga eram internados nessas instituições e submetidos a tratamentos horrendos com a finalidade de cura. Na verdade o que ocorria era um agravamento das condições psicológicas desses internos e que poderia levá-los realmente a um distúrbio psíquico.

Em um filme, de direção de Laís Bodanzky, Bicho de Sete Cabeças, o protagonista sofre as agruras do internamento em um hospício. Os motivos da sua internação são injustificáveis do ponto de vista médico. Porém, a sua relação com o pai é de tal forma insustentável que ele acaba internado. O pai, agora como o Estado foi no caso de Sade, faz uso do discurso e das verdades construídas para justificar seu ato e legitimá-lo socialmente.

Fato interessante é que em ambos os casos quem faz as articulações necessárias para fazer valer a sua vontade, sempre são os detentores do monopólio da força. Aliás, esta coincidência não é em nada imprevisível, muito pelo contrário. A aceitação social dos atos praticados pelo Estado é justificada, além do medo de uma mudança na ordem que venha a afetá-la, por um medo do exercício da força. O Estado impõe a sua forma de pensar primeiramente pelo discurso e posteriormente, caso o discurso não surta efeito, pelas sanções. Quer seja a força propriamente dita, com penas físicas, quer seja com a castração da liberdade.

Analisando os motivos que levam o Estado, ou até mesmo o pai do protagonista do filme citado a privar da liberdade um indivíduo que não oferece perigo para a sociedade, percebe-se que estas medidas não são tomadas em troco de nada, um objetivo maior é almejado. É esse objetivo que analisarei agora.

No caso do Estado francês contra Sade, quais seriam os motivos? Muitos. A começar pela ameaça direta à ideologia estatal. O Marquês estava disposto a desmascarar a podridão de uma sociedade corrompida pela desonestidade e por pudores infundados. Na medida em que o discurso de Sade passa a ser mais convincente do que o discurso do Estado, a preocupação aumenta e há de se frear o avanço dessas verdades contrárias à verdade construída pelo governo e que atende tão bem aos seus interesses patrimoniais e intelectuais de uma parcela muito reduzida da sociedade, os nobres.

Luís XVI poderia ter optado pela prisão de Sade em um presídio normal de criminosos, porém, o fato de considera-lo louco e prende-lo em um hospício é determinante para que a população acredite no discurso estatal que prega que o que o Marquês fala não merece crédito pelo simples fato de ele ser louco, insano, ou seja: o Estado criou a verdade de que Sade só falava coisas infundadas e sem propósito, por isso era louco.

Na verdade o Divino Marquês nada mais fazia do que denunciar através, principalmente, de suas peças teatrais o que lhe incomodava na França. Por motivo da época pré-revolucionária, várias pessoas se identificavam com as críticas feitas por ele. Isso era preocupante, o movimento revolucionário ganhava forças e precisava ser detido. A imagem da bonança e da estabilidade estatal precisava ser mantida, mesmo que isso custasse a vida e a liberdade de vários que vieram denunciar a realidade francesa da época.

Os reais motivos que levam à separação de determinados indivíduos da sociedade é a tentativa de demonstrar o quanto o Estado é onipresente e a tudo percebe. Ideologia está remontada sobre as teorias de Jeremy Bentham que propôs em uma de suas obras, o Panóptico, uma estrutura que determinava a vigilância permanente dos cidadãos. A partir desse momento cria-se a imagem do Estado que tudo sabe e tudo vê.

Dessa forma justifica-se a prisão dos que transgridem as formalidades estatais. Os que são levados presos servirão de exemplo para o resto da sociedade. Mais do que punir o cidadão particularmente, o Estado está usando-o como exemplo para a perpetuação de todo um paradigma.

Espera-se que a sociedade tema pelas sanções impostas a quem vai contra os interesses do Estado e dessa forma molda-se o comportamento do indivíduo de acordo com as verdades que convier. Esses são os reflexos de uma sociedade disciplinar, uma sociedade preocupada em todos os seus atos com a manutenção de uma ordem relativamente funcional, que atenda, pelo menos, aos interesses dos mais abastados.

Segundo o discurso do Estado, enquanto todos estiverem educados, domados pela batuta estatal, a ordem reinará. Porém, apesar de apreciarmos a relativa organização promovida pelo sistema de ortopedia estatal devemos notar que a absorção total desse sistema pode nos levar a uma total sobreposição de personalidade. O individuo deixa de ser o que era para passar a ser um mero fantoche dos interesses dominantes.

Não cabe a mim finalizar a discussão a cerca das saídas para o dilema de enfrentar um Estado cheio de sanções por descumprimentos de suas regras ou perder a personalidade em favor da ordem social. Porém, a de se alertar que existem saídas para esse problema e a saída pode ser percebida em várias atitudes passadas que servem de exemplo. Saídas eminentemente políticas e que de longe estão interessadas na dominação estatal, mas estão comprometidas com a realização de benfeitorias para as classes que representam.

Tentarei sucintamente exemplificar o que pretendi dizer valendo-me do exemplo de Gandhi, principal personalidade da independência da Índia. Seu nome verdadeiro é Mohandas Karamchand Gandhi, Mahatma significa grande alma. Forma-se em Direito em Londres e, em 1891, volta à Índia para praticar advocacia. Dois anos depois, vai para a África do Sul, também colônia britânica, onde inicia um movimento pacifista, lutando pelos direitos dos hindus. Volta à Índia em 1914 e difunde seu movimento, cujo método principal é a resistência passiva. Nega a colaboração com o domínio britânico e prega a não-violência como forma de luta. Em 1922 organiza uma greve contra o aumento de impostos, na qual uma multidão queima um posto policial. Detido, declara-se culpado e é condenado a seis anos, mas sai da prisão em 1924. Em 1930, lidera a marcha para o mar, quando milhares de pessoas andam mais de 320 quilômetros a pé para protestar contra os impostos britânicos sobre o sal. Em 1947, é proclamada a independência da Índia. Gandhi tenta evitar a luta entre hindus e muçulmanos, que estabelecem um Estado separado, o Paquistão. Aceita a divisão do país e atrai o ódio dos nacionalistas hindus. Um deles o mata a tiros no ano seguinte. Em janeiro de 1996, parte das cinzas de Mahatma Gandhi é lançada no Rio Ganges, na cidade de Allahabad, local sagrado para os hinduístas. A cerimônia acontece no 49º aniversário de morte do líder pacifista.

Apesar de todos os controles estatais e esforços de manutenção de uma ordem pacífica, o que se percebe é que não só estamos em uma sociedade violenta, mas também, por uma ótica diferenciada, em uma estrutura educacional violenta e excludente. Desta forma, faz-se urgente proporcionar nos centros educacionais a cultura da não violência, formando educandos com valores, atitudes e comportamentos que possibilitem uma Cultura da Paz.

Sem pretensão de promover revoltas contra a estrutura estatal, apenas proponho o seguinte questionamento diante do atual momento mundial: Por que ao invés de estudarmos os "heróis" que perpassam a conquista de seus objetivos pela violência, não incutimos na sociedade, pessoas que fizeram história através de seus testemunhos, como o grande Luter King, ou a coragem de Gandhi, o inovador Nélson Mandela, a bondosa Teresa de Calcutá, o carismático Betinho e a simplicidade de Francisco de Assis?

Os moldes estatais fornecem, indubitavelmente, uma estabilidade de conduta e, definitivamente, uma relativa calma nas relações interpessoais. Porém, como vemos atualmente, estamos às vésperas de uma guerra. Portanto, com a licença de me perder um pouco do objetivo central do meu texto, permito-me questionar o discurso de uma potência que usa de sua supremacia econômica e bélica para construir verdades sem embasamento, assim como sempre foi feito desde o período medieval, somente para que os seus interesses econômicos e políticos sejam mantidos intactos.

Faz-se mister uma discussão a respeito de uma reforma no pensar. Uma reforma que permita o desenvolvimento de uma personalidade individual, mesmo estando o indivíduo incluído dentro de um contexto social e sob o poder de um Estado. As verdades estatais, assim como toda e qualquer verdade, pode e deve ser questionada, não de forma intransigente e baderneira, porém, de forma concisa e que promova com cautela a reestruturação do que não convém e a manutenção do que é para o bem de todos.

O questionamento das verdades impostas é salutar, na medida em que feito de maneira ponderada e não tomado por preconceitos ou fanatismos ideológicos. Não aceitar calado o que é determinado, buscar pelos reais motivos de uma norma e questionar os princípios e fins das determinações estatais não é ir contra o sistema, aliás, é o contrário. Buscar os porquês nada mais é do que exercer plenamente o seu papel de cidadão consciente e ativo socialmente.

Para reivindicar é preciso, antes de tudo, conhecimento de causa.

Referências Bibliográficas

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2.      PRADO JR., B. A Filosofia das luzes e as metamorfoses do espírito libertino. São Paulo. Cia. das Letras. 1996.

3.      CHADHA, Yogesh. Gandhi: A life. John Wiley & Sons. 1999.

4.      CULTRERA, Francesco. Ética e política. São Paulo. Ed. Paulinas. 1999.

5.      TRASFERETTI, José Antônio. Ética da misericórdia: Na Luta pela Sobrevivência. Petrópolis. Ed. Vozes. 1999.

6.      FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo. Ed. Loyola. 2002.

7.      ________________. A verdade e as formas jurídicas.  Rio de Janeiro. Ed. Nau. 1996.

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