FOUCAULT, Michel. Doença Mental e psicologia. (Segunda Parte)

Loucura e Cultura

A sociedade contemporânea possui demasiada aversão à loucura. Os ocidentais possuem uma constituição psíquica imbuída de um demasiado temor, no que tange ao desconhecido e diferente. Todo aquele que manifesta ações não padronizadas, "estandartizadas" e "robotizadas" é visto como louco ou anormal e deve ser extirpado do convívio físico e psicológico. Esse indivíduo assemelha-se a um câncer, o qual não sendo retirado pode originar a metástase e comprometer todo o organismo social.

Mediante a análise de algumas obras teóricas, principalmente, o texto Doença Mental e Psicologia (segunda parte) no capítulo que abarca a Loucura e Cultura de Michel Foucault, pensar indagações atinentes ao cerne da loucura. O texto tem como escopo elucidar aspectos, mecanismos ou elementos particulares e individuais que permeiam o eixo gravitacional, complexo e subjetivo da loucura.

Sociedade, Cultura e Loucura.

Inicialmente, podemos tentar entender a loucura como produto de uma exclusão social, ou seja, uma síndrome da alteridade ocidental em relação ao diferente, uma confluência da discrepância dentre o mundo considerado primitivo e o mundo evoluído.

A loucura antes de ser considerada requisito de uma patologia, é por excelência, um fenômeno sociológico e cultural, pois, somente poder-se-á, considerar a loucura como elemento manifesto da doença mental, quando está estiver inserida em uma cultura que a reconheça como patologia. Assim, a loucura, é, sobretudo, um fenômeno cultural, como um subproduto do meio social onde está inserida, isto é, uma manifestação de uma dicotomia entre o sujeito que produz e aquele outro que em um modelo capitalista contemporâneo, não gera lucro, sendo assim imbuído de uma loucura asseverada pela mensuração do capital.

A humanidade tem encarado a loucura com misto de fascinação e temor.

Isaias Pessotti (A Loucura e suas Épocas, 1995) nos apresenta três visões acerca da loucura e a perda do controle sobre a mente:

1- a místico-religiosa que atribui a loucura à possessão de espíritos, ou a influência de deuses malévolos ou demônios que usam os seres humanos para suas práticas malfazejas;

2- a passional, a qual acredita que a gênese da loucura encontra-se nas emoções intensas e descontroladas. Nessa amálgama de sentimentos confusos, estaria à raiz da insanidade;

3- a naturalística que busca nos desequilíbrios do organismo a justificativa das psicoses. Toda a confusão mental estaria concatenada a fatores orgânicos de ordem genética ou de deficiência do próprio organismo biológico;

As três abordagens convivem sobre aparências diversas e predominam uma sobre a outra dependendo da época e do local. Na Grécia clássica, a primeira está representada nas peças de Ésquilo, onde a loucura é percebida como uma imposição divina. A segunda encontra-se nas obras de Eurípedes, Hipólito e Medeia, onde paixões avassaladoras dominam os personagens e determinam seus destinos. Finalmente, a terceira posição é adotada por Hipócrates, o pai da Medicina, que sugeria ser a loucura o desequilíbrio dos humores do corpo (o sangue, a fleuma, a bílis amarela e a bílis negra), cada uma das quais relacionada com um órgão particular do corpo: o coração, o cérebro, o fígado e o baço.

Émile Durkheim (Regras do Método Sociológico, 1973), entendia a loucura como um fenômeno social de segregação. Aqueles indivíduos que não se adequavam às regras de comportamento social da média da população eram estigmatizados e estereotipados, percebidos como elementos perniciosos à padronização da sociedade. Esses seres que destoavam de todo o conjunto supostamente harmonioso da sociedade burguesa capitalista (a qual não sabe lidar com as diferenças entre si e entre seus semelhantes) deveriam ser enclausurados, colocados à margem de seu convívio social e tratados como marginais.

A loucura oriunda dessa perspectiva estava atrelada à ociosidade, a qual por seu turno, encontrava-se concatenada aos indivíduos que não produziam economicamente. A exclusão dos homens incapazes de participar da produção, circulação e acúmulo de bens materiais repousa sobre a razão de este costume existir devido à carência de produção moderna e a necessidade de uma nova estruturação social.Os homens que não se adaptam aos padrões burgueses de produções capitalistas, oriundas da Revolução Industrial, Pós Mercantilismo e Pós Racionalismo do século XVII, eram considerados um fardo para o crescimento da civilização moderna, sendo relegados ao limbo.

Rute Benedict (Padrões de Cultura, 1983), alude uma visão antropológica acerca dos elementos constituintes da loucura. A representação simbólica que um grupo elege de suas imagens místicas, as quais compõem todos os seus ritos e rituais tribais definem seus padrões de cultura, ou seja, os membros do grupo alçam os elementos da sua subjetividade simbólica. Eles negligenciam ou reprimem os aspectos emocionais subjetivos que centralizam seus impulsos mentais ocultos ou externalizam determinados sentimentos mediante alguns atos tribais que corroboram a posição social do indivíduo. A loucura possui status de autoridade e respeito, inserida em um contexto social, sendo esses impulsos mentais uma manifestação de sua própria essência e existência.

Cannon (Apud Lévi-Strauss - Antropologia Estrutural, 1996), já havia apregoado que nenhum homem pode sobreviver mentalmente saudável, insular e privado do contato com seus semelhantes, ou seja, a personalidade física não sobrevive à dissolução da entidade social. O isolamento sempre foi pernicioso para o desenvolvimento psíquico do ser humano, tanto que, em determinadas culturas antigas o ostracismo era uma forma de flagelação brutal impostas aos indivíduos que cometiam crimes e, talvez em decorrência dessa prática ignóbil o banido, o isolado, o diferente, o louco, o esquecido, sempre foi vítima da coerção e punição, tanto religiosa quanto estatal.

Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, 2000), no capítulo referente ao homem cordial, elucida que o homem é incapaz de olhar para dentro de si e lidar de uma forma racional e salutar com sua animosidade, a qual é ontológica a essência humana. O homem necessita do convívio social, ou seja, ele é co-dependente do outro, a sua loucura quando reconhecida em seus semelhantes lhe proporciona um sentimento lenitivo.

A loucura em seu bojo, também constitui um fenômeno religioso, onde a própria autoridade eclesiástica perante a imposição de suas normas de crenças e fé excluía, delegando ao satanismo e a possessão de espíritos malévolos, os comportamentos considerados impróprios para a manutenção de sua atividade reguladora e repressiva. De uma forma paradoxal, esses comportamentos julgados fantasiosos, eram à base de uma espiritualidade, que justificava a existência da Igreja Católica e toda sua liturgia simbólica.

O conceito de loucura nos tempos modernos, onde a existência humana tornou-se efêmera e fugaz, sendo controlada pelo imediatismo, é disseminada no ritual religioso, quer seja nas manifestações histéricas ou histriônicas das religiões evangélicas ou no circo proporcionado pela renovação carismática da Igreja católica.

Michel Foucault (A História da Loucura, 2003) percorre um caminho inverso, buscando no passado e reportando-se à Idade Média e Renascença, como período fecundo e fonte originária das manifestações simbólicas da cultura ocidental contemporânea.

Na Idade Média e Renascença, a loucura estava atrelada a aspectos transcendentais de caráter imaginários, inerentes à magia e bruxaria que rondavam esses períodos históricos. Na Idade Clássica, é o Jus Status, o qual representa o poder para julgar e segregar todos aqueles que eram considerados loucos. Com o advento do manicômio, que em seu escopo teria a função social de zelar pelos moribundos, mas que na verdade não passava de um rincão de torturas, onde a loucura passa a ser tratada como uma doença diferente das demais que assolavam o velho continente. Existia o início de um olhar médico sobre a loucura e não mais uma representação simbólica de crenças religiosas ou uma forma coercitiva jurídica-estatal.

Na civilização ocidental, a loucura passou a ser encarada como problema médico apenas no início do século XIX, quando o francês Philippe Pinel iniciou o tratamento médico humanitário dos doentes mentais, livrando-os das cadeias e dos asilos, onde eram segregados da sociedade. O psiquiatra alemão Emil Kraepelin em 1896, distinguiu duas manifestações principais de insanidade, a demência precoce e a demência tardia.

A psicologia como ciência tem laços intrínsecos em sua gênese com a loucura na sua culpa e liberdade, assim como a moral da alma humana. A ciência possui fatores de repressão moral, por representar a cientificidade da classe dominante, enquanto inserida em um sistema social de valores na disseminação do saber. O louco nessa ótica representa um espelho de uma realidade subjetiva e inconsciente, que necessariamente, tem de ser evitada e punida. A loucura manifesta-se como culpa e erro de uma humanidade que não reconhece a razão e desrazão, a qual está fadada ao fracasso e extinção, por não saber confrontar-se com sua loucura, seu produto, seu meio e seu fim.

"Mas deveras estariam eles doidos, e foram curados por mim, ou o que pareceu cura não foi mais que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?".

Machado de Assis, O Alienista.

Referências Bibliográficas

BENEDICT, Ruth. Padrões de Cultura. São Paulo:Ed. Livros do Brasil, 1983.

DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Ed. Nacional, 1978.

FOUCAULT, Michel. Doença Mental e psicologia. Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro, 2000.

FOUCAULT, Michel. A História da Loucura. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2003.

HOLLANDA, Sérgio B. Raízes do Brasil. São Paulo: Ed. Schwarcz, 2000.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.

PESSOTTI, Isaías. A Loucura e as Épocas. São Paulo: Ed. 34, 1995.