Loot Boxes e a Regulação Jurídica das Microtransações em Jogos Eletrônicos Necessidade de Proteção ao Consumidor

Por Bruno Menezes Rodrigues Gomes de Castro | 06/06/2025 | Direito

FACULDADE UNA

 

 

 

 

 

Bruno Castro

Orientadora: Natalia Marra

 

 

 

Loot Boxes e a Regulação Jurídica das Microtransações em Jogos Eletrônicos: Necessidade de Proteção ao Consumidor

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Belo Horizonte

2025

 

SUMÁRIO

 

1.      RESUMO

2.      INTRODUÇÃO

3.      OS PROBLEMAS SOCIAIS DAS LOOT BOXES E MICROTRANSAÇÕES

4.      HIPER VULNERABILIDADE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E O CONSUMO DIGITAL

5.      REGULAMENTAÇÃO ATUAL NO BRASIL

6.      ANÁLISE COMPARATIVA INTERNACIONAL

CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS

 

 

 

 

 

 

 

                                                          

 

 

 

 

 

 

 

1.      RESUMO

O presente artigo analisa criticamente a prática das loot boxes — caixas de recompensas virtuais adquiridas mediante pagamento — em jogos eletrônicos, com foco na necessidade de proteção jurídica dos consumidores, especialmente crianças e adolescentes. Embora amplamente adotadas como estratégia de monetização, as loot boxes operam com base em recompensas aleatórias, aproximando-se da lógica dos jogos de azar. Essa estrutura, aliada a estímulos visuais e sonoros que incentivam o consumo repetitivo, pode comprometer o discernimento de usuários em fase de desenvolvimento e fomentar comportamentos compulsivos. O estudo evidencia a ausência de regulamentação específica no Brasil, mesmo após a promulgação da Lei nº 14.852/2024, que reconheceu a indústria dos games, mas ignorou as práticas de monetização aleatória. A análise se apoia em dispositivos do Código de Defesa do Consumidor, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Lei Geral de Proteção de Dados, além de examinar legislações internacionais mais avançadas. A pesquisa conclui que o modelo atual de loot boxes representa risco à formação psíquica infantil, à equidade nos jogos e à transparência contratual. Diante disso, propõe-se a criação de um marco regulatório específico, que contemple transparência nas probabilidades, restrição etária, controle parental e limites de gasto. A proteção da infância no ambiente digital não é incompatível com a liberdade econômica da indústria, sendo condição indispensável para um setor de jogos ético, responsável e juridicamente sustentável.

Palavras-chave: loot boxes; microtransações; direito do consumidor; infância; jogos eletrônicos; regulação jurídica.

ABSTRACT

This article critically analyzes the practice of loot boxes — virtual reward boxes acquired through payment — in electronic games, focusing on the need for legal protection of consumers, especially children and adolescents. Although widely adopted as a monetization strategy, loot boxes operate based on random rewards, approaching the logic of gambling. This structure, combined with visual and audio stimuli that encourage repetitive consumption, can compromise the discernment of users in the development phase and foster compulsive behaviors. The study highlights the lack of specific regulation in Brazil, even after the enactment of Law No. 14,852/2024, which recognized the gaming industry but ignored random monetization practices. The analysis is based on provisions of the Consumer Protection Code, the Child and Adolescent Statute and the General Data Protection Law, in addition to examining more advanced international legislation. The research concludes that the current loot box model poses a risk to children's psychological development, fairness in games and contractual transparency. In view of this, the proposal is to create a specific regulatory framework that includes transparency in probabilities, age restrictions, parental control and spending limits. Protecting children in the digital environment is not incompatible with the economic freedom of the industry, and is an essential condition for an ethical, responsible and legally sustainable gaming sector.

Keywords: loot boxes; microtransactions; consumer law; childhood; electronic games; legal regulation.

 

2.      INTRODUÇÃO

A indústria dos jogos eletrônicos tem experimentado um crescimento exponencial nas últimas décadas, consolidando-se como um dos setores mais lucrativos do entretenimento global. Em termos econômicos, esse mercado já supera as receitas do cinema e da música, tanto em faturamento quanto em alcance de público. Com sua consolidação, os jogos deixaram de ser simples passatempos para se tornarem plataformas complexas de interação social, competição, narrativa e, sobretudo, consumo.

Paralelamente ao seu avanço tecnológico e narrativo, surgiram novas formas de monetização capazes de ampliar as receitas das desenvolvedoras e manter a longevidade dos produtos no mercado. Entre essas práticas, destacam-se as chamadas microtransações, que consistem em compras realizadas dentro do próprio jogo para obtenção de vantagens, conteúdos extras ou elementos cosméticos. Dentre as microtransações, uma modalidade que tem gerado crescente polêmica é a das loot boxes, ou caixas de recompensa aleatória. Essas caixas contêm itens que variam em raridade e valor, e cujo conteúdo só é revelado após o pagamento, geralmente por meio de moeda virtual adquirida com dinheiro real, e sua subsequente abertura. Frequentemente, o usuário precisa adquirir chaves ou outros produtos para desbloqueá-las, sem qualquer garantia de receber um item de valor correspondente ao montante gasto.

Ainda que tais práticas sejam legítimas sob a perspectiva econômica, por promoverem a continuidade da experiência lúdica e gerarem recursos para as empresas, elas têm sido alvo de críticas em diversas partes do mundo. A principal controvérsia gira em torno da semelhança dessas dinâmicas com os jogos de azar, especialmente pela lógica de recompensa aleatória e pela ausência de transparência quanto às probabilidades de obtenção dos itens mais raros. Essa mecânica pode incentivar o consumo impulsivo, a repetição da compra em busca de recompensas mais vantajosas e, em casos extremos, configurar um comportamento de dependência semelhante ao observado em ambientes de apostas.

O problema se agrava quando tais práticas são direcionadas ou acessíveis a públicos vulneráveis, como crianças e adolescentes. Esses usuários, muitas vezes sem plena capacidade de discernimento, podem ser induzidos a gastar valores significativos sem compreensão clara dos riscos envolvidos. A inserção de elementos gamificados que estimulam a competição, o status social virtual e a escassez artificial de recompensas reforça ainda mais esse comportamento, tornando as loot boxes um desafio não apenas ético, mas também jurídico.

Nesse contexto, a promulgação da Lei nº 14.852/2024, que institui o marco legal da indústria de jogos eletrônicos no Brasil, representou um avanço ao reconhecer formalmente a relevância do setor e estabelecer parâmetros regulatórios para seu funcionamento. A norma trata de temas como a classificação indicativa dos jogos, políticas de incentivo à produção nacional e mecanismos de controle para transações financeiras envolvendo menores de idade.

No entanto, apesar de seu caráter inovador, a legislação não contempla, de forma específica e suficientemente detalhada, a questão das loot boxes. Tal omissão legislativa gera um vazio normativo que compromete a efetividade das medidas protetivas ao consumidor e impede a adoção de critérios mais claros e objetivos para a regulação dessas práticas.

Considerando que crianças e adolescentes representam uma parcela expressiva do público consumidor de jogos eletrônicos, a ausência de dispositivos legais voltados à limitação e à transparência das loot boxes torna-se ainda mais preocupante. A fragilidade do arcabouço jurídico nacional em lidar com essa modalidade de monetização escancara a necessidade urgente de se refletir sobre os limites éticos e jurídicos da gamificação do consumo e de se buscar instrumentos normativos mais adequados à realidade tecnológica contemporânea.

Diante disso, este artigo propõe uma análise crítica da regulamentação das microtransações em jogos eletrônicos, com ênfase nas loot boxes, sob a perspectiva do direito do consumidor e da proteção de públicos vulneráveis. Por meio de uma abordagem qualitativa e exploratória, serão investigadas as lacunas da legislação brasileira, os impactos dessas práticas no comportamento dos usuários e as experiências internacionais que podem servir de referência para um aprimoramento normativo mais eficaz e justo.

Ao longo do artigo, pretende-se contribuir para o debate jurídico e social sobre os limites da monetização nos jogos eletrônicos e as obrigações do Estado e das empresas no tocante à proteção de seus usuários.

 

3.      OS PROBLEMAS SOCIAIS DAS LOOT BOXES E MICROTRANSAÇÕES

A incorporação de mecanismos de monetização dentro dos jogos eletrônicos modificou radicalmente a maneira como os usuários interagem com esse tipo de produto. As microtransações, inicialmente voltadas a itens estéticos ou complementos, evoluíram para estruturas mais sofisticadas, entre as quais se destacam as loot boxes. A princípio tratadas como uma simples recompensa digital, essas caixas de conteúdo aleatório revelam uma faceta mais obscura quando observadas sob a perspectiva do consumo: a de uma prática que se aproxima perigosamente dos jogos de azar.

Não se trata apenas da compra de itens com dinheiro real. O que está em jogo, literalmente, é a expectativa da recompensa — o jogador paga, mas não sabe o que receberá. Essa incerteza é central na crítica que associa as loot boxes à lógica do azar, como demonstram os estudos de Zendle e Cairns citados por Fantini, Fantini e Garrocho (2019, p. 1255). A semelhança com caça-níqueis não é apenas simbólica: há elementos visuais, sonoros e operacionais idênticos, com a adição de uma estética lúdica que esconde o potencial lesivo da prática.

A problemática se agrava quando se observa o público atingido. Crianças e adolescentes, frequentemente os principais consumidores de jogos digitais, são expostos a essas dinâmicas sem qualquer filtro protetivo. Em sua fase de desenvolvimento, ainda não possuem estrutura psíquica consolidada para compreender as implicações desse tipo de monetização. Mais do que isso: são incentivados a consumir por meio de recompensas escassas, desafios diários e elementos de competição entre pares. A questão aqui é mais do que econômica — é ética.

Alguns jogos utilizam recursos visuais chamativos e sons de vitória ao abrir loot boxes. Essa ambientação foi pensada para causar estímulo imediato. O jogador sente prazer mesmo quando o prêmio é irrelevante, porque o ritual da abertura gera sensação de sucesso. Trata-se de um reforço psicológico que ativa áreas cerebrais relacionadas à dopamina, como relatado por Farias Filho (2019). O problema é que esse reforço não está sendo utilizado apenas para gerar engajamento, mas para vender, repetidamente, um produto incerto.

Muitos jogadores, principalmente os mais jovens, não percebem que estão entrando em um ciclo de consumo. Pagam uma vez, depois outra. Às vezes com moeda virtual, depois com cartão dos pais. E mesmo quando não gastam dinheiro real, são condicionados a investir tempo e esforço para obter uma caixa “gratuita”. Isso os insere na lógica da escassez artificial e da recompensa aleatória, tornando natural o desejo por algo que, muitas vezes, não tem valor funcional no jogo — mas que confere prestígio, status ou diferencial estético.

Esses aspectos revelam que as loot boxes operam em uma zona de sombra entre entretenimento e exploração. Não é difícil compreender por que alguns jovens acabam desenvolvendo comportamentos compulsivos. O cenário é ainda mais grave quando esses gastos escapam do controle dos pais e ocorrem sem mediação. A ausência de mecanismos obrigatórios de autenticação por idade, ou mesmo de alertas explícitos sobre a natureza aleatória das recompensas, evidencia uma lacuna na regulação (Barreto, 2022).

Há, também, uma questão de desigualdade social implicada nessa lógica. Jogadores que não têm como pagar por loot boxes frequentemente enfrentam desvantagens dentro do jogo — seja na progressão, seja na aparência dos seus personagens. É o chamado “pay-to-win” ou “pay-to-loot”: vence quem paga, não quem joga melhor. Essa prática mina a equidade dentro do ambiente virtual e reforça o consumo como pré-requisito de inclusão (Gonçalves; Gonçalves, 2018). Trata-se de um microcosmo de desigualdade, legitimado por uma estética gamificada.

Esse modelo de monetização, como já apontado por Neely (apud Fantini et al., 2019), distorce os próprios princípios do jogo enquanto espaço de aprendizado, superação e coletividade. Ele passa a ensinar que dinheiro compra reconhecimento, acelera resultados e garante vantagens. Essa lógica, internalizada desde a infância, pode afetar o modo como esses jovens passam a lidar com frustração, mérito e esforço — tanto no ambiente virtual quanto no real.

Em outra camada, menos visível, mas igualmente preocupante, está a coleta e uso de dados dos jogadores. As empresas rastreiam hábitos, horários de jogo, tempo médio de uso, preferências e padrões de consumo. Com esses dados, personalizam ofertas de loot boxes, usando algoritmos para apresentar recompensas no momento em que o jogador está mais propenso a gastar. Esse cruzamento entre gamificação e capitalismo de vigilância, como denuncia Zuboff (2021), cria um ciclo vicioso de engajamento e consumo que ultrapassa as barreiras do jogo e penetra na intimidade do jogador.

E, novamente, voltamos ao público vulnerável. Crianças não têm plena consciência do que significa aceitar termos de privacidade ou compartilhar seus dados. Ainda assim, são induzidas a clicar em “aceitar” para conseguir jogar. Como aponta Nishiyama (2015), a hiper vulnerabilidade infantil no ambiente digital exige proteção especial. No entanto, o que se observa é a normalização da exposição a práticas que, se fossem feitas em qualquer outro setor, seriam amplamente condenadas.

No Brasil, a falta de regulação específica sobre loot boxes permite que essas práticas ocorram livremente. A Lei nº 14.852/2024, embora reconheça o setor de games, silencia quanto à monetização aleatória. Isso cria um vácuo normativo que fragiliza qualquer tentativa de responsabilização, seja no campo do direito do consumidor, seja no campo da proteção de dados (Almeida, 2024). A responsabilização recai, assim, sobre os próprios usuários e suas famílias, o que é profundamente injusto diante da assimetria entre empresas e consumidores.

Em outros países, medidas mais rigorosas já foram tomadas. A Bélgica, por exemplo, classificou loot boxes como jogos de azar, proibindo sua comercialização em determinados formatos. A China exige transparência total sobre as chances de obtenção de itens raros. Já o Japão, que enfrentou uma crise semelhante com o jogo Gacha, optou por proibir a prática. Esses exemplos mostram que é possível regular de maneira responsável sem inviabilizar o mercado (Barreto, 2022; Koeder et al., 2018).

No Brasil, apesar de algumas ações civis públicas ajuizadas — como as que foram impulsionadas pela ANCED — ainda falta um posicionamento legislativo firme. As decisões judiciais são isoladas, e muitas vezes enfrentam resistência técnica ou desconhecimento do Judiciário sobre o funcionamento real dos jogos. Isso impede avanços mais concretos na proteção da infância frente ao consumo digital.

É necessário dizer que a crítica às loot boxes não é uma rejeição à indústria dos jogos. Ao contrário. Reconhece-se o valor cultural, econômico e social dos games. O que se questiona é o uso de estratégias opacas e exploratórias dentro de um ambiente que, por sua natureza, atrai públicos hiper vulneráveis. Essa crítica parte da compreensão de que o lazer digital pode ser uma ferramenta de desenvolvimento, desde que não esteja submetido exclusivamente à lógica da mercantilização do comportamento.

No limite, o problema das loot boxes revela o quanto estamos despreparados para lidar com os efeitos da gamificação comercial. Quando o prazer do jogo se torna refém do gasto, e quando a recompensa depende mais do quanto se paga do que do quanto se joga, há algo de fundamentalmente errado nesse modelo. A regulação não é uma censura — é uma tentativa de reequilibrar essa balança.

É, portanto, urgente que o debate sobre microtransações e loot boxes avance no Brasil com seriedade, rigor técnico e sensibilidade social. Sem isso, continuaremos permitindo que empresas operem práticas que geram dependência, desigualdade e frustração, disfarçadas sob o manto da diversão digital. A responsabilização, a transparência e a proteção de públicos vulneráveis devem ser centrais em qualquer política pública voltada para o setor.

 

4.      HIPER VULNERABILIDADE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E O CONSUMO DIGITAL

A estrutura legal brasileira reconhece, de forma inequívoca, a criança e o adolescente como sujeitos de direitos em condição peculiar de desenvolvimento. O artigo 227 da Constituição Federal estabelece que esses indivíduos devem ser protegidos com absoluta prioridade, incumbindo à família, ao Estado e à sociedade o dever de assegurar-lhes os direitos à vida, à saúde, ao lazer, à dignidade e à formação moral. Quando o ambiente digital — notadamente o setor de jogos eletrônicos — falha em implementar salvaguardas eficazes contra práticas abusivas, como as loot boxes, essa garantia constitucional deixa de ser efetivada, revelando um descompasso entre o avanço tecnológico e a proteção jurídica.

Cláudia Lima Marques é uma das principais referências no Direito do Consumidor no Brasil. Em suas obras, ela destaca a importância de reconhecer a hipervulnerabilidade de crianças e adolescentes, especialmente no contexto digital. Marques (2019) argumenta que, devido à sua condição peculiar de desenvolvimento, esse público é particularmente suscetível às práticas comerciais abusivas presentes no ambiente online. Ela enfatiza que a proteção desses consumidores deve ser reforçada, considerando os riscos associados às novas tecnologias e à publicidade direcionada.

Além disso, Marques (2019) ressalta que a legislação brasileira, como o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do Adolescente, já prevê mecanismos de proteção para esses grupos. No entanto, ela defende a necessidade de uma atualização constante dessas normas para acompanhar as transformações do mercado digital. A autora também destaca a importância da educação digital e do fortalecimento das políticas públicas voltadas à proteção da infância e adolescência no consumo eletrônico.

Já Benjamim (1994), introduziu o conceito de hiper vulnerabilidade para descrever consumidores que, por suas características específicas, necessitam de proteção jurídica especial. O autor enfatiza que crianças e adolescentes se enquadram nesse grupo devido à sua limitada capacidade de discernimento e à influência que a publicidade pode exercer sobre eles.

Benjamin (1994) também alerta para os perigos da publicidade abusiva direcionada ao público infantil, especialmente no ambiente digital. Ele argumenta que a exposição constante a mensagens comerciais pode afetar negativamente o desenvolvimento psicológico e social das crianças. Dessa maneira, seria fundamental que o Estado e a sociedade civil atuem de forma proativa na regulamentação e fiscalização dessas práticas, garantindo um ambiente de consumo mais seguro e ético para os jovens consumidores.

Mais do que consumidores vulneráveis, crianças e adolescentes são hiper vulneráveis no ambiente digital, conforme classificação já consolidada na doutrina nacional. Essa hiper vulnerabilidade resulta da sobreposição de diversas limitações: cognitivas, emocionais, econômicas, técnicas e jurídicas. Nishiyama (2015) argumenta que, em tais situações, os princípios gerais do direito do consumidor — como o direito à informação clara, à proteção contra práticas enganosas e à igualdade nas relações contratuais — devem ser interpretados com máxima amplitude, sob pena de se permitir a exploração institucionalizada da inocência e da imaturidade.

A Lei nº 8.069/1990 (ECA) trata com precisão desse dever de proteção. O artigo 17 assegura o direito à inviolabilidade da integridade psíquica e moral da criança, o que inclui o respeito à sua identidade e individualidade. Ora, quando uma criança é exposta repetidamente a mecanismos de recompensa aleatória que exploram sua impulsividade natural, a integridade psíquica fica comprometida. A consequência é mais profunda do que um mero prejuízo econômico — trata-se de um possível dano ao próprio processo formativo do sujeito, especialmente em uma sociedade que estimula o consumo desde os primeiros anos de vida.

Não se pode ignorar que as loot boxes operam dentro de um sistema de reforço intermitente, similar ao das máquinas caça-níqueis, com gatilhos visuais e sonoros cuidadosamente projetados para estimular a repetição da compra. A prática, portanto, não é meramente estética ou funcional: ela manipula variáveis comportamentais para condicionar reações automáticas de consumo. Isso é particularmente grave quando aplicado a usuários com julgamento em formação, cuja capacidade de autocontrole ainda está em desenvolvimento. Nesses casos, a neutralidade da empresa diante das consequências de sua própria arquitetura comercial é juridicamente inaceitável.

Sob a ótica contratual, não há como considerar válida a adesão de uma criança a uma relação de consumo que envolve aleatoriedade, coleta de dados e pagamento com dinheiro real ou seu equivalente digital. A ausência de informação clara, combinada com a ausência de consentimento real dos pais ou responsáveis, torna essa adesão nula de pleno direito. O artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor reforça que a informação adequada, acessível e ostensiva é um direito básico. Não é possível que tal princípio seja relativizado simplesmente porque o produto é digital, interativo ou voltado ao entretenimento.

A omissão legislativa brasileira quanto à regulação específica das loot boxes não pode ser interpretada como autorização tácita. Em temas que envolvem infância e consumo, vigora o princípio da precaução: diante da incerteza quanto aos efeitos psíquicos, sociais e econômicos de determinada prática, deve-se optar pela proteção ao hiper vulnerável. Tal orientação está em consonância com o artigo 1º, inciso III, da Constituição, que consagra a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República. Logo, mesmo na ausência de norma expressa, a Constituição impõe limites materiais à exploração comercial infantil.

Esse vácuo normativo é particularmente grave porque o setor de games opera em escala transnacional, com dinâmicas comerciais e tecnológicas altamente sofisticadas. A ausência de barreiras eficazes no Brasil transforma o país em um mercado permissivo. Não há qualquer impedimento técnico que restrinja o acesso de crianças a jogos com loot boxes. Tampouco há mecanismos obrigatórios de consentimento parental para transações que envolvam dinheiro real. Em termos práticos, temos um modelo de mercado que opera à revelia do arcabouço protetivo previsto na legislação infraconstitucional.

A Lei nº 13.709/2018 (LGPD) é outro instrumento que precisa ser resgatado nesse contexto. O artigo 14 dispõe que o tratamento de dados de crianças deve ser realizado com consentimento específico de pelo menos um dos pais ou responsável legal, e com destaque às informações relevantes. Contudo, na prática, os jogos coletam informações sensíveis, como tempo de uso, comportamento in-game e perfil de consumo, e utilizam tais dados para personalizar a oferta de loot boxes. Essa conduta não apenas viola a LGPD como agrava a condição de exposição da criança diante de práticas de mercado baseadas em vigilância comportamental.

A proteção a esses consumidores deve também ser compreendida como condição de legitimidade do próprio setor de games. Não se trata de oposição entre liberdade de mercado e proteção de direitos fundamentais, mas da necessária compatibilização entre esses valores. A indústria pode e deve crescer — mas não à custa da infância. O entretenimento digital precisa respeitar os limites da função social do consumo, do contrato e da própria tecnologia. Empresas que ignoram essa responsabilidade incorrem não apenas em abuso de direito, mas em verdadeira afronta ao sistema constitucional de proteção.

A título de comparação normativa, vale mencionar que outros ordenamentos já enfrentaram esse desafio com maior contundência. A Bélgica e os Países Baixos, por exemplo, classificaram as loot boxes como jogos de azar, restringindo seu uso ou impondo exigências severas quanto à transparência e à restrição etária. Esses países partiram da premissa de que, na dúvida entre o lucro e a proteção da infância, deve prevalecer a segunda. Tal postura poderia inspirar o legislador brasileiro a adotar uma abordagem semelhante, condizente com os compromissos constitucionais assumidos internamente.

Outro ponto que merece destaque é a naturalização do consumo como forma de socialização. Jogos com loot boxes inserem na experiência lúdica a lógica de que é necessário gastar para progredir, vencer ou ser reconhecido. Esse tipo de mensagem, internalizado na infância, pode produzir impactos duradouros sobre a formação da personalidade e sobre a relação do sujeito com o consumo. O risco, aqui, não é apenas financeiro — é cultural. É a construção de uma subjetividade atravessada pela ideia de que valor e prestígio decorrem de aquisições, mesmo que aleatórias.

No plano pedagógico, também se deve refletir sobre os efeitos colaterais de se permitir que jogos com elementos de sorte sejam consumidos indiscriminadamente por crianças. Ainda que a escola não consiga controlar o conteúdo digital acessado por seus alunos, é papel do Estado garantir que tais produtos estejam sujeitos a normas claras e a mecanismos eficazes de classificação indicativa, conforme previsto no artigo 21, inciso XVI, da Constituição. A ausência de políticas públicas específicas nesse ponto só acentua o desequilíbrio já existente entre o mercado e a infância.

Seria incorreto afirmar que o problema reside apenas nas empresas. A responsabilidade é compartilhada com o poder público, que tem se mostrado lento na formulação de respostas normativas e regulatórias. O Ministério da Justiça, por exemplo, ainda carece de diretrizes técnicas voltadas à regulação da monetização em jogos. Os Procons, por sua vez, nem sempre têm o ferramental técnico necessário para identificar e coibir práticas abusivas em plataformas digitais. Isso exige investimentos em capacitação institucional, articulação federativa e atuação coordenada com a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).

Portanto, a importância de proteger esses consumidores hiper vulneráveis vai além da análise pontual das loot boxes. Trata-se de reconhecer que o modelo econômico digital contemporâneo precisa de limites jurídicos claros quando envolve sujeitos em formação. Não é admissível que a infância seja tratada como nicho de mercado sem que isso acione mecanismos de tutela. A omissão regulatória é, nesse caso, forma indireta de conivência com práticas exploratórias.

A proteção jurídica da infância é um imperativo que antecede qualquer inovação tecnológica. O desafio do Direito contemporâneo é justamente esse: acompanhar as transformações sociais sem perder de vista a centralidade da dignidade humana. Crianças não são apenas jogadoras ou consumidoras. São pessoas em formação, com direitos próprios e inalienáveis — e é dever de todo o sistema jurídico garantir que esses direitos não sejam apagados pela luz colorida das recompensas digitais aleatórias.

 

5.      REGULAMENTAÇÃO ATUAL NO BRASIL

A regulamentação das loot boxes no Brasil ainda se encontra em estágio embrionário, apesar do crescimento expressivo da indústria de jogos eletrônicos e da crescente popularidade das microtransações como principal forma de monetização. Ao contrário do que se verifica em outros países, como Bélgica, Holanda e Japão, o Estado brasileiro ainda não enfrentou, de forma direta, a complexidade dessas práticas no âmbito legislativo. O resultado disso é um ambiente jurídico marcado por lacunas, interpretações extensivas e dificuldade de fiscalização. Essa ausência de regulação específica revela uma fragilidade institucional preocupante, sobretudo quando o público alvo é composto por consumidores vulneráveis — crianças e adolescentes.

O principal avanço recente na matéria foi a promulgação da Lei nº 14.852/2024, que institui o Marco Legal da Indústria de Jogos Eletrônicos. Trata-se de uma norma inovadora em muitos aspectos, por reconhecer os jogos como expressão cultural, estimular a produção nacional e estabelecer diretrizes para políticas públicas de incentivo ao setor. No entanto, quando se trata da monetização por loot boxes, a lei é absolutamente silenciosa. Nenhum artigo menciona, ainda que de forma indireta, o comércio de itens virtuais obtidos aleatoriamente mediante pagamento. Isso demonstra que, embora a indústria tenha obtido reconhecimento legal, a proteção do consumidor — especialmente o hiper vulnerável — ainda não recebeu atenção proporcional.

Diante da omissão legislativa específica, a interpretação jurídica tem se apoiado em dispositivos já existentes, sobretudo o Código de Defesa do Consumidor. O artigo 6º, inciso III, prevê como direito básico do consumidor a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços. No caso das loot boxes, é comum que o consumidor não saiba as probabilidades reais de obter um item raro, tampouco compreenda os termos do contrato que está aceitando ao realizar a compra. Isso se agrava quando o público é formado por crianças, que sequer possuem plena capacidade civil para contratar. A ausência de informações claras e ostensivas constitui infração ao direito à transparência e à boa-fé objetiva, pilares centrais do direito do consumidor.

Vale destacar que, além do dever de informar, o CDC também proíbe práticas abusivas. O artigo 39, inciso IV, considera abusiva a conduta do fornecedor que se aproveita da fraqueza ou ignorância do consumidor, levando em conta sua idade, saúde ou condição social. Jogos com loot boxes costumam ser promovidos em plataformas com estética infantil, linguagem simplificada e apelos visuais que estimulam a repetição de compras. Quando se explora a ingenuidade infantil com fins lucrativos, configura-se não apenas uma falha contratual, mas uma infração de ordem pública que precisa ser coibida com rigor.

Outro ponto frequentemente ignorado na regulamentação é a manipulação emocional produzida pelas loot boxes. Elementos como sons de vitória, luzes piscando e animações chamativas são usados intencionalmente para ativar os sistemas de recompensa no cérebro. Estudos em neuropsicologia apontam que tais estímulos, combinados com a incerteza do resultado, mimetizam os efeitos provocados por máquinas caça-níqueis. Ao transportar essa lógica para o ambiente digital, as empresas criam uma atmosfera de jogo de azar dentro de um espaço de lazer — sem qualquer regulação equivalente. Embora o art. 50 do Decreto-Lei nº 3.688/1941 (Lei das Contravenções Penais) proíba expressamente jogos de azar, a legislação brasileira ainda não definiu se as loot boxes se enquadram nessa categoria, deixando a questão em zona cinzenta jurídica.

Juridicamente, isso gera uma dificuldade relevante: se as loot boxes são ou não consideradas jogos de azar. Alguns autores, como Jacob (2024), sustentam que a aleatoriedade, somada à contrapartida financeira e à promessa de recompensa, configura todos os elementos típicos do jogo de aposta. No entanto, por ausência de previsão legal expressa, ainda prevalece no Brasil a tese de que tais práticas não se enquadram como contravenção penal, a menos que haja uma reforma legislativa clara nesse sentido. Tal indefinição legislativa deixa o consumidor desprotegido e o fornecedor sem parâmetros legais objetivos.

Jacob (2024), por exemplo, argumenta que essas práticas devem ser analisadas à luz do direito privado, por meio da teoria contratual do emptio rei speratae. Para o autor, a venda de loot boxes configura um contrato aleatório, em que o consumidor paga por algo cujo conteúdo é incerto, o que se aproxima das características dos jogos de azar. Jacob destaca ainda que, em casos de manipulação intencional da aleatoriedade por parte das empresas, o consumidor pode buscar o ressarcimento dos valores pagos, configurando-se uma clara lesão contratual.

Observa-se, portanto, que a ausência de regulação específica compromete a efetividade da proteção jurídica do consumidor, sobretudo quando se trata de públicos vulneráveis. O atual cenário normativo, fragmentado e omisso, permite que empresas explorem a impulsividade infantil por meio de práticas de monetização opacas, sem que haja qualquer tipo de controle institucional efetivo. Manifesta-se urgente que o legislador brasileiro adote medidas regulatórias claras, capazes de coibir a exploração comercial da imaturidade e da vulnerabilidade infantojuvenil. (Ruiz Junior, 2020)

O Estatuto da Criança e do Adolescente também pode e deve ser utilizado como instrumento de proteção contra os efeitos nocivos das loot boxes. O artigo 81, inciso VI, proíbe a venda de produtos que causem dependência física ou psíquica a menores de 18 anos. Ainda que não se trate de substância química, os jogos com mecânicas de recompensa aleatória produzem efeitos comportamentais semelhantes aos da adição: o desejo de repetição, a frustração com resultados negativos, e o impulso por mais uma tentativa. Esse ciclo vicioso, quando direcionado ao público infantil, pode ser lido como forma de exploração comercial da vulnerabilidade psíquica — prática inadmissível sob a ótica constitucional.

Além disso, o artigo 17 do ECA assegura à criança o direito à integridade física, psíquica e moral. Se reconhecermos que o consumo desmedido de loot boxes afeta o equilíbrio emocional e a autonomia infantil, então o Estado não pode permanecer inerte. A atuação legislativa, nesse sentido, não seria apenas desejável, mas obrigatória, à luz do artigo 227 da Constituição, que estabelece a prioridade absoluta dos direitos da criança e do adolescente. Essa prioridade não é retórica: é norma cogente, com força vinculativa sobre todas as esferas do poder público.

Outro aspecto fundamental, mas frequentemente esquecido no debate público, é o tratamento de dados pessoais no contexto dos jogos eletrônicos. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), em seu artigo 14, exige consentimento específico dos pais ou responsáveis para o tratamento de dados de menores de idade. No entanto, grande parte dos jogos coleta informações de comportamento de consumo, tempo de uso, preferências de compra e interações online, sem oferecer qualquer mecanismo de controle parental. Isso coloca o menor em situação de exposição indevida e viola frontalmente a legislação de proteção de dados.

Mais grave ainda: os dados coletados são utilizados para personalizar ofertas de loot boxes, com base em algoritmos que identificam momentos de maior propensão ao gasto. Isso não é apenas antiético — é ilegal. A criança passa a ser alvo de publicidade direcionada, sem sequer compreender que está sendo manipulada. Tal prática contraria não apenas a LGPD, mas também o artigo 37 do CDC, que veda a publicidade abusiva voltada ao público infantil. O ambiente digital, nesse caso, transforma-se em uma vitrine de exploração disfarçada de entretenimento.

A jurisprudência brasileira ainda é tímida, mas já existem sinais de movimentação. A Ação Civil Pública movida pela ANCED contra empresas de jogos, protocolada sob o nº 0701552-16.2021.8.07.0013, busca responsabilizar os desenvolvedores por danos morais coletivos causados pela exploração de loot boxes direcionadas a crianças. Embora o processo ainda esteja em tramitação, ele representa um importante precedente e pode abrir caminho para decisões mais robustas sobre o tema.

A doutrina brasileira, por sua vez, já vem alertando sobre a insuficiência da legislação atual. Fantini, Fantini e Garrocho (2019) destacam que o modelo de loot boxes representa uma forma de monetização que escapa aos padrões regulatórios clássicos e exige uma resposta normativa alinhada à complexidade das relações de consumo digitais. Para os autores, a aplicação extensiva do CDC é um paliativo que não resolve as questões centrais do problema.

Outro ponto crítico é a ausência de padronização na Classificação Indicativa de jogos com loot boxes. Apesar de a Portaria nº 1.189/2018, do Ministério da Justiça, prever a menção a “compras com itens aleatórios” nos critérios de avaliação, isso não resulta em qualquer impedimento concreto para o acesso de menores. O aviso funciona mais como orientação do que como barreira real. Na prática, crianças continuam tendo acesso irrestrito a jogos com microtransações aleatórias, mesmo quando a classificação etária sugere o contrário.

No campo normativo, o Brasil parece caminhar na contramão de países que já enfrentaram esse debate. Na Bélgica, por exemplo, as loot boxes foram equiparadas a jogos de azar e sua comercialização foi proibida. O mesmo ocorreu na Holanda. No Japão, a prática só é permitida sob condição de divulgação explícita das chances de obter cada item. Esses países compreenderam que, diante da incerteza quanto aos efeitos das loot boxes, deve prevalecer o princípio da precaução — algo que o ordenamento jurídico brasileiro, até o momento, reluta em aplicar ao contexto digital.

A ausência de uma norma nacional específica impede não apenas a responsabilização eficaz das empresas, mas também a formulação de políticas públicas de proteção digital para crianças. Sem diretrizes claras, os órgãos de defesa do consumidor, como os Procons, atuam de forma desarticulada e reativa. O Ministério Público, por sua vez, carece de mecanismos técnicos para realizar investigações mais apuradas sobre as estruturas internas dos jogos. O resultado é um ciclo de ineficácia institucional que perpetua o desequilíbrio na relação de consumo.

Portanto, a regulamentação atual no Brasil é fragmentada, dispersa e insuficiente para enfrentar os desafios concretos impostos pelas loot boxes. A aplicação de normas genéricas, ainda que útil em alguns casos, não substitui a urgência de uma legislação própria, voltada especificamente para esse tipo de prática digital. Enquanto isso não ocorre, o consumidor — especialmente o menor de idade — segue desprotegido diante de uma lógica de mercado que combina entretenimento com exploração econômica e emocional.

 

6.      ANÁLISE COMPARATIVA INTERNACIONAL

O debate sobre a regulamentação das loot boxes não é exclusivo do Brasil e tem provocado reações distintas em diferentes países. As abordagens variam entre proibições expressas, exigência de transparência, autorregulação da indústria e, em alguns casos, total ausência de normatividade. Essa pluralidade de soluções legislativas e políticas revela os desafios que os ordenamentos enfrentam diante de práticas comerciais digitais que não se enquadram nos moldes tradicionais de consumo, mas que afetam diretamente públicos vulneráveis — como é o caso de crianças e adolescentes, conforme já alertam Fantini, Fantini e Garrocho (2019).

No Japão, as loot boxes, conhecidas como “gacha”, são amplamente populares. O país optou por um modelo de regulação híbrido, combinando autorregulação setorial com medidas estatais pontuais. Após o escândalo envolvendo o sistema “kompu gacha”, considerado excessivamente predatório por exigir que o jogador comprasse diversas caixas para completar uma recompensa final, a Consumer Affairs Agency passou a exigir que as empresas divulgassem as probabilidades de obtenção dos itens virtuais. Embora não haja legislação federal específica que proíba as loot boxes, a aplicação da Act against Unjustifiable Premiums and Misleading Representations tem funcionado como instrumento de controle contra práticas enganosas. Essa postura proativa, ainda que moderada, contrasta com a ausência de medidas mínimas no Brasil, onde sequer há exigência de exibição das probabilidades ou de classificação específica (Xia; Zhang, 2022).

A China, por outro lado, adotou uma das regulamentações mais rigorosas do mundo. Desde 2017, o governo chinês determinou que todos os jogos com loot boxes devem exibir de forma pública e clara as probabilidades de obtenção de cada item. Adicionalmente, é proibido o uso de dinheiro real diretamente para aquisição das caixas — o que deve ser feito por meio de moedas virtuais adquiridas previamente. Mais recentemente, o país impôs limites de gastos mensais por faixa etária e proibiu o acesso a jogos com esse tipo de monetização para menores de oito anos. Essas medidas refletem uma política de Estado voltada não apenas à regulação econômica do setor, mas à proteção concreta da infância. O contraste com o Brasil é evidente: apesar do ECA e da LGPD fornecerem fundamentos normativos que poderiam embasar medidas similares, como observam Gonçalves e Gonçalves (2018), o país ainda não possui qualquer restrição legal quanto à idade mínima ou aos limites de gastos relacionados às loot boxes.

Nos Estados Unidos, a falta de uma legislação federal unificada resultou em uma regulamentação fragmentada. Algumas iniciativas estaduais, como as propostas no Havaí e no estado de Washington, buscaram restringir o acesso de menores a jogos com loot boxes e exigir transparência nas chances de obtenção dos itens. Em nível nacional, o projeto de lei S.1629, apresentado em 2019, tentou proibir microtransações "pay-to-win" e loot boxes em jogos direcionados a menores, mas não avançou. Mesmo assim, houve avanços na esfera administrativa: a Federal Trade Commission (FTC) multou recentemente uma desenvolvedora em US$ 20 milhões por vender loot boxes para menores sem informar as probabilidades e sem consentimento adequado (Comissão Federal de Comércio dos EUA, 2025).  Ainda que não haja um marco regulatório consolidado, os Estados Unidos demonstram um esforço institucional em frear abusos — algo que o Brasil, até aqui, tem feito de forma isolada, por meio de ações civis públicas como a movida pela ANCED, mas sem qualquer resposta legislativa significativa (Barreto, 2022).

A União Europeia também não conta com uma regulação unificada, mas o Parlamento Europeu tem pressionado por diretrizes comuns. O relatório de 2020 publicado pela European Parliamentary Research Service (2020) destacou os riscos das loot boxes, em especial para jovens consumidores, e sugeriu que essas práticas sejam tratadas como matéria de proteção ao consumidor — não apenas como uma questão lúdica ou de entretenimento. Países como Bélgica e Países Baixos já adotaram proibições formais quando as loot boxes envolvem elementos de azar, classificando-as como jogos de aposta ilegais. Por outro lado, França e Suécia ainda conduzem estudos sobre os impactos comportamentais e econômicos dessa prática, e a Alemanha passou a incluir a presença de loot boxes como critério de classificação etária obrigatória dos jogos. Esses dados demonstram um avanço significativo em termos de responsabilização e transparência — e reforçam o quanto o Brasil, apesar da robustez de sua legislação consumerista, ainda se mostra reticente em adaptar normas gerais ao ambiente digital de forma eficaz (European Parliament, 2020).

Quando comparado a esses países, o Brasil apresenta uma abordagem ainda embrionária. Apesar da promulgação do Marco Legal dos Jogos Eletrônicos pela Lei nº 14.852/2024, nenhuma disposição da norma trata das loot boxes ou das microtransações. Rios (2019) observa que essa omissão legislativa gera um vazio normativo preocupante, pois impede que o sistema jurídico acompanhe as transformações nas formas de consumo digital. A aplicação do Código de Defesa do Consumidor, embora possível em termos principiológicos (transparência, boa-fé, equilíbrio contratual), se dá de forma casuística e reativa, geralmente por meio do Judiciário ou dos órgãos de proteção ao consumidor.

Ademais, diferentemente da União Europeia, onde há um movimento coordenado de observação e padronização das práticas, no Brasil inexiste qualquer sinalização institucional de que o tema será tratado como prioridade. Como apontam Fantini, Fantini e Garrocho (2019), a proteção do consumidor infantojuvenil nas relações de consumo digitais exige mais do que aplicação subsidiária de normas tradicionais — demanda a construção de novos referenciais normativos que levem em conta a especificidade da linguagem, da estrutura e da lógica envolvida nas plataformas de jogos eletrônicos.

Em síntese, o cenário internacional demonstra que é possível adotar medidas equilibradas, capazes de preservar a liberdade econômica das desenvolvedoras sem abrir mão da proteção de públicos vulneráveis. China e Japão oferecem modelos mais rígidos e eficazes; a União Europeia, apesar da heterogeneidade, aponta para uma tendência regulatória clara. Os Estados Unidos, mesmo sem legislação nacional, investem na responsabilização administrativa. O Brasil, embora possua aparato normativo extenso, ainda não traduziu sua legislação em mecanismos concretos para enfrentar as práticas predatórias das loot boxes. Diante disso, torna-se imperativo observar os exemplos internacionais não como modelos a serem copiados integralmente, mas como horizontes possíveis para inspirar uma regulação própria, coerente com os princípios constitucionais de proteção à infância, dignidade da pessoa humana e defesa do consumidor.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste artigo, foi possível demonstrar que o sistema das loot boxes, apesar de inicialmente concebido como um elemento de entretenimento, assumiu proporções que ultrapassam a mera ludicidade. O modelo, baseado na aleatoriedade de recompensas em troca de pagamento, configura um mecanismo que, em muitos aspectos, se aproxima da lógica dos jogos de azar. Essa característica é especialmente preocupante quando se considera que tais práticas são acessadas de forma indiscriminada por crianças e adolescentes, que integram uma camada social particularmente vulnerável e hipossuficiente do ponto de vista contratual e informacional.

Não se trata de um fenômeno isolado ou trivial. As evidências reunidas ao longo deste trabalho apontam para uma tendência estruturada de mercantilização do comportamento dentro dos ambientes de jogos eletrônicos, em que a repetição do consumo é estimulada por artifícios visuais e sonoros cuidadosamente desenhados para gerar excitação e engajamento. A ausência de uma legislação específica no ordenamento jurídico brasileiro coloca o país em uma posição delicada, pois transfere para os instrumentos jurídicos tradicionais — como o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do Adolescente — a responsabilidade de preencher lacunas normativas que exigem, na verdade, soluções regulatórias próprias da era digital.

A análise comparada com outros países mostrou que o Brasil está atrasado no enfrentamento do problema. Enquanto países como Bélgica, Japão e China adotaram medidas concretas para conter os efeitos potencialmente lesivos das loot boxes — seja por meio da proibição direta, seja pela imposição de transparência e limites etários —, o Brasil ainda debate se essas práticas sequer devem ser consideradas jogos de azar. Essa inércia regulatória tem efeitos concretos: perpetua-se um ambiente em que empresas exploram o desconhecimento e a impulsividade de seus usuários mais jovens, sem que haja qualquer barreira legal eficaz para conter os abusos.

Além da omissão legislativa, existe uma questão de fundo que não pode ser ignorada. O atual modelo de monetização via loot boxes transforma o consumo em pré-requisito para a experiência plena dentro do jogo. Essa lógica compromete os princípios de isonomia e meritocracia que, em teoria, deveriam estruturar os ambientes virtuais. Aqueles que não podem pagar ficam à margem, e os que pagam são premiados com vantagens, status e diferenciais estéticos. O jogo, que deveria ser espaço de recreação e desenvolvimento, transforma-se em plataforma de reprodução das desigualdades do mundo real.

Essa monetização agressiva opera, portanto, sob uma estética de neutralidade que precisa ser desmistificada. A linguagem leve, os gráficos coloridos e a atmosfera infantilizada dos jogos ocultam o que, no fundo, é um sistema de coleta de dados, manipulação comportamental e maximização de lucro. A ausência de responsabilização das empresas e a fragilidade dos instrumentos de controle estatal apenas aprofundam esse desequilíbrio. A Constituição Federal, ao dispor no artigo 227 sobre a prioridade absoluta dos direitos da criança e do adolescente, exige do Estado ação concreta. E isso inclui legislar, fiscalizar e punir, sempre que o mercado colocar o lucro acima da dignidade da infância.

Dizer que é necessário regular as loot boxes não é, de forma alguma, negar a importância da indústria de jogos. Muito pelo contrário: trata-se de reconhecer o valor desse setor e garantir sua sustentabilidade ética e jurídica. A regulação, quando bem formulada, não destrói o mercado — ela o qualifica. Ao estabelecer limites, impõe também segurança jurídica e previsibilidade, o que é positivo para desenvolvedores, consumidores e instituições públicas. A omissão legislativa, por sua vez, além de fragilizar os direitos fundamentais, abre espaço para judicializações fragmentadas e decisões contraditórias, o que torna ainda mais instável o ambiente jurídico nacional.

A criação de um marco regulatório específico para loot boxes e microtransações, portanto, não é apenas recomendável: é imperativa. Esse novo instrumento normativo deve contemplar dispositivos claros sobre divulgação obrigatória de probabilidades, mecanismos de controle parental, restrições de idade, limites de gasto para menores de idade, sanções em caso de descumprimento e fiscalização sistemática por parte de órgãos especializados. Além disso, é preciso garantir que essas normas sejam compatíveis com os demais marcos protetivos, como a LGPD e o CDC, criando uma rede normativa coesa e efetiva.

Também é fundamental que o sistema jurídico brasileiro reconheça a hiper vulnerabilidade do público infantil no ambiente digital. A proteção dos dados pessoais, a transparência nas relações de consumo e a vedação à publicidade abusiva não são princípios abstratos: são ferramentas concretas para equilibrar a relação entre usuários e empresas. O tratamento de crianças como consumidores deve ser feito com especial cautela, e nunca com base em critérios meramente mercadológicos.

Essa discussão, embora ainda incipiente no âmbito legislativo, já vem ganhando espaço na academia e nos órgãos de defesa do consumidor. Iniciativas isoladas do Ministério Público, de entidades civis e de pesquisadores vêm chamando a atenção para os riscos sociais e jurídicos das loot boxes. O desafio, agora, é transformar esse acúmulo de conhecimento e indignação em uma resposta institucional concreta, que seja capaz de proteger o público vulnerável sem comprometer a vitalidade econômica do setor de jogos eletrônicos.

Este trabalho, embora limitado em escopo, buscou contribuir para esse debate com seriedade e rigor jurídico. Ao apresentar os riscos, os vazios normativos, as experiências estrangeiras e as propostas de aprimoramento legal, espera-se ter fornecido elementos suficientes para inspirar futuras pesquisas, discussões legislativas e políticas públicas. A era digital impõe novos desafios ao Direito, e é dever da ciência jurídica responder a eles com criatividade, responsabilidade e compromisso ético.

Se há algo que este estudo deixa claro, é que a infância não pode ser um campo de experimentação comercial irrestrita. O consumo digital precisa de limites. A diversão deve continuar sendo possível — mas nunca às custas da formação psíquica, da liberdade de escolha e da dignidade das crianças e adolescentes.

 

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