Literatura do mundo bíblico: Grécia e Roma

A interação cultural dos israelitas com os povos mesopotâmicos e egípcios foi diferente daquela que ocorreu com gregos e romanos. Se os mesopotâmicos e egípcios influenciaram na temática, no estilo e na forma literária a influência greco-romana se deu mais naquilo que poderíamos chamar de base filosófica. Ou seja, o povo israelita formou-se a partir da mesopotâmia (Abraão teria sido um migrante caldeu) e se fortaleceu como nação a partir de sua experiência no Egito. A sua identidade nacional se deu a partir desses dois polos desde a origem abraãnica passando pela dominação egípcia e posteriormente pelo cativeiro babilônico.

Por sua vez gregos e romanos entraram na história dos israelitas mais tardiamente. Os gregos já no período helenista e os romanos por ocasião da anexação da região ao império de César. A partir dessa época é que se pode perceber mais claramente as influências da cultura greco-latina sobre os escritos bíblicos. Entretanto, como estas e os israelitas são sociedades mais antigas, não se pode descartar interações culturais que podem e devem ter ocorrido em tempos anteriores.

Alguns autores sugerem que o helenismo pode ter influenciado alguns dos livros sapienciais. Além disso, realizações gregas são mencionadas nos chamados livros históricos. Quase todos os textos desses dois grupos de escritos (sapienciais e históricos) foram concluídos nos últimos séculos antes de Cristo, portanto, dentro do período helenístico.

Em relação à cultura grega e sua influência sobre os escritos bíblicos podemos concordar com Celso Kallarrari (2010). No site abíblia.org, o autor afirma que o processo de helenização promovido por Alexandre da Macedônia disseminou práticas religiosas, as quais favoreceram a difusão da popularização da língua grega. Esse processo explica o fato dos escritos do novo testamento terem sido produzidos nessa versão popular do grego. Em suas palavras:

Com a expansão do Império Persa, Alexandre, o grande preocupou-se em helenizar os povos conquistados, o que, de fato, corroborou para o desenvolvimento das práticas e crenças religiosas e estabeleceu-se, assim, a Koiné grega, considerado o idioma comum em todo império. Este idioma é, pois, o dialeto do Novo Testamento usado pelos evangelistas e apóstolos para expressar a fé cristã. (Kallarrari, 2010)

Posteriormente a Alexandre, a cultura helênica permanece se impondo sobre os Judeus. Esse contato – ora pacifico, ora violento – com a cultura grega se encerra a partir da revolta dos Macabeus. Mas o ponto final desse contato direto se encerra quando Judas Macabeu se alia aos romanos, como narra Kallarrari (2010):

Em 178, Simão denuncia o acúmulo muito grande de dinheiro no Templo que passa a ser fiscalizado. Nesse mesmo ano, Antíoco entra em Jerusalém e edita um decreto que suprimia a circuncisão, o sábado, as festas e a pureza alimentar dos judeus, implantando culto aos deuses gregos, a exemplo de Dionísio e Zeus. Em 164 Judas Macabeus conquista Jerusalém e, em 161, faz aliança com Roma, morrendo em 160.

Entretanto, as realizações alexandrinas são tardias, e tiveram pouca ou nenhuma influência sobre textos bíblicos mais antigos. Esses – como ocorria com quase todas as sociedades antigas – textos mais antigos são frutos de uma longa tradição oral, que foi sendo coletada e redigida ao longo de séculos.

Não é demais lembrar que essa prática (redigir as tradições) era comum a praticamente todos os povos antigos: mantinham suas tradições a partir da narração oral e só bem tardiamente essas tradições passaram a ser redigidas.

Admitindo esse método de preservação cultural, podemos perceber que a bíblia enquanto texto formal, é resultado desse modelo de preservação oral até chegar ao ponto de ser registrada graficamente. Esse modelo também esteve numa das bases da cultura dos gregos. Trata-se dos clássicos poemas homéricos: Ilíada e Odisseia, contando episódios de seus grandes personagens lendários.

Comentando “a Grécia descrita por Homero”, Florenzano, (1986, p. 12) diz que:

Hoje é sabido que a composição dos dois grandes poemas épicos dependeu de uma longa prática da poesia cantada oralmente que envolveu gerações inteiras de aedos e rapsodos. Isso nos permite concluir que Homero, na verdade, sistematizou e escreveu versos que vinham sendo cantados por sucessivas gerações e cujo conteúdo, portanto, tem muito da época imediatamente anterior ao poeta (FLORENZANO, 1986, p. 12).

O método homérico não era estranho a outros povos. Tanto para registrar epopeias como poemas populares e mesmo textos religiosos. Na bíblia podemos mencionar esse paralelismo cultural que permitiu o registro de textos tradicionais. Podemos mencionar alguns escritos em estilo poético: os salmos (atribuídos a Davi) e o livro dos Cantares ou Cântico dos Cânticos (atribuído a Salomão). Esses dois escritos também entraram no cânon a partir da tradição oral e são anteriores ao período helenista1 e, dessa forma, podem ser vistos como influenciados por culturas anteriores e com as quais os israelitas mantiveram contato.

Em relação aos romanos as influências são basicamente neotestamentárias. Ao dominar a região, os romanos impuseram sua cultura. Unificando a região sob um só governo, universalizando a língua (o grego comum – Koiné – e o latim) e abrindo estradas para facilitar o tráfego militar e comercial, os romanos também facilitaram e ajudaram na difusão do cristianismo.

No mundo romano, muitos foram os avanços nos aspectos cultural e econômico. Por exemplo, a confecção das moedas (denarius e o aureus ou libra, cunhadas em ouro, prata e cobre), cujo reconhecimento fora regional e internacional. Além disso, os avanços na construção e pavimentação das estradas e, principalmente, a construção de portos marítimos.

Esses acontecimentos foram, sem dúvida, muito importante tanto para o desenvolvimento do comércio quanto para o domínio romano em todas as províncias [...] fazendo-se, portanto, notória sua influência em todos os povos colonizados, principalmente na cultura do povo judeu.

Culturalmente, não podemos deixar de apontar para o campo literário, uma vez que os romanos foram grandes contribuidores, através da forma literária, para a redação dos textos e cartas bíblicas do Novo Testamento. (KALLARRARI, 2010).

As influências romanas podem ser percebidas principalmente na literatura paulina. O apóstolo valeu-se da estrutura romana: utilizou as estradas para suas viagens; valeu-se da cidadania romana para manter-se na pregação, a salvo dos judeus que o perseguiam; apropriou-se do direito romano para ser submetido a um julgamento isento, ao apelar para César (At 25,11). Além disso sua produção epistolar paga tributo não só à filosofia grega, do ponto de vista do conteúdo e da lógica de seu raciocínio, como ao estilo e forma romanos.

Além disso, da mesma forma que mesopotâmicos e egípcios, os gregos e os romanos dão destaque aos seus heróis lendários, mitológicos e/ou germinais. Exemplos desses textos, entre gregos e romanos são as celebres obras de Homero (Ilíada e Odisseia) e de Virgílio (Eneida). Esse procedimento tanto está presente nos escritos bíblicos veterotestamentários, a exemplo do livro do gênesis, como nos escritos neotestamentários. As genealogias de Jesus, inseridas nos evangelhos são exemplo disso.

Enfim, o dado antropológico confirma: as sociedades que se relacionam influenciam-se mutuamente. E isso não pode ser negado em relação ao texto bíblico. Mesmo afirmando a inspiração divina, no que diz respeito à mensagem salvadora, o texto, enquanto produção humana, mantém o rosto do homem e a marca da sociedade na qual o autor está inserido.

Referência complementar

ALVES, Alexandre; OLIVEIRA, Letícia F. Conexões com a história. 3 ed. São Paulo: Moderna, 2016

BÍBLIA comigo: disponível em: https://www.capuchinhos.org/biblia2/biblia-comigo acesso em 25/11/2017.

Disponível em:A Origem do Alfabeto. CAGLIARI, Luiz Carlos. https://dalete.com.br/saber/origem.pdf acesso em 26/12/1017.

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. S. Paulo: Ática, 2000.

In: O Nascimento da História ou o processo humano.CARNEIRO, Neri de P. www.webartigos.com. Publicado em 25 de Janeiro de 2010. Disponível em: https://www.webartigos.com/artigos/o-nascimento-da-historia-ou-o-processo-humano/31570#ixzz4zqXSiVCy. Acesso em 29/11/2017

. Tradução L.W. King. Disponível em: O Épico Da CriaçãoENUMA-ELISH: https://docplayer.com.br/37012145-Enuma-elish-o-epico-da-criacao-l-w-king-tradutor.html . Acesso em 15/07/2013

EPOPEIA DE GILGAMESH - Tradução de Carlos Daudt de Oliveira. Disponível em: https://geha.paginas.ufsc.br/files/2017/04/A-Epop%C3%A9ia-de-Gilgamesh.-Tradu%C3%A7%C3%A3o-de-Carlos-Daudt-de-Oliveira.-Martins-fontes-2011.-ISBN-85-336-1389-X.pdf. Acesso em 02/09/2017

FLORENZANO, Maria Beatriz B. O mundo antigo: economia e sociedade. 6 ed. São Paulo: Brasiliense, 1986

GIOVANI, Mário Curtis História da Antiguidade Oriental. 5 ed. Petrópolis: Vozes. 1981

vol.1 n.3. 2007. Disponível em: Revista Eletrônica da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas.Dialógica, In. .A escrita na História da humanidade GOMES, Eduardo de Castro. https://dialogica.ufam.edu.br/dialogican3.htm. Acesso em: 16/11/2017.

In: abiblia.org. Publicado em: 06/10/2010. Disponível em: A influência dos aspectos culturais nos escritos do Novo Testamento. KALLARRARI, Celso. https://www.abiblia.org/ver.php?id=1288&id_autor=59&id_utente=&caso=artigos. Acesso em 20/12/2017

in. Laboratório de Interação Mediada por Computador - UFRGS. Portal da escrita coletiva - links. 2005. Disponível em: virtual.A informação escrita: do manuscrito ao texto QUEIROZ, Rita de C. R. de. https://www.ufrgs.br/limc/escritacoletiva. Acesso em 16/11/2017

. In: infoescola.com. Diponível em: Crescente FértilSANTIAGO, Emerson. https://www.infoescola.com/geografia/crescente-fertil/ acesso em: 30/ 11/ 2017.

STADELMANN. Luís I. J. O Cântico dos Canticos: uma interpretação histórico-social . in. Perspectiva Teológica. v. 26. 1994. p. 47-60. Disponível em: faje.edu.br/periodicos/index.php/perspectiva/article/download/1201/1608

 

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação; filósofo, teólogo, historiador.

Rolim de Moura – RO

1Embora atribuídos a Davi, os salmos são produções populares que surgiram ao longo de séculos. Por sua vez Cântico dos Cânticos é uma produção pós exílica. Segundo LUÍS I. J. Stadelmann (1994, p. 56) “Os indícios que nos levam a admitir como provável a data de composição do livro em torno de 500a.C. são os temas abordados”