Vamos chamar de “literatura do mundo bíblico” todos os escritos que tem relação com a fé monoteísta de cristãos e judeus. Entre esses escritos encontram-se aqueles que são considerados canônicos e um grande volume de escritos não canônicos mas que exaltam a fé no Deus único, cultuado pelas duas religiões. Trata-se dos textos denominados de apócrifos.

Os judeus independem dos cristãos para definir seu cânon, a lista dos livros inspirados. Definiram sua “bíblia” que corresponde ao antigo testamento “selecionando” os textos que consideraram mensagem de Deus e deixaram de incorporar à bíblia inúmeros outros. Esses outros é o que os biblistas e outros estudiosos chamam de apócrifos.

Entre os cristãos há divergências em relação à lista dos livros inspirados. Essa divergência se aplica ao Antigo Testamento. O Novo Testamento, apenas dos cristãos, é o mesmo para todas as denominações. O problema ocorre somente em relação ao Antigo Testamento. Essa divergência na aceitação ou não de determinados escritos como sendo ou não inspirados gerou muito atrito ao longo da história. Entretanto, nos dias atuais, essa é uma discussão inútil. E, pior ainda, anticristã, pois mantém uma rivalidade que não tem sentido de existir.

Essa discussão, desentendimento e diferente aceitação dos livros sagrados, faz com que as igrejas cristãs convivam com uma discrepância em relação ao número de livros na bíblia. Embora professem a mesma fé, as diferentes igrejas cristãos não contam o mesmo número de livros em suas bíblias.

Entramos num território complexo, em se tratando da literatura bíblica. Não pela complexidade da temática, mas por conta das divergências conceituais que correm entre as Igrejas Cristãs.

Católicos Romanos e os cristãos de outras denominações reconhecem a existência de escritos não canônicos. E isso pode gerar problemas para os desavisados, equívocos para os desatentos ou discussões inúteis para quem deseja frisar a divisão em lugar de visualizar e valorizar as convergências.

Estamos nos referindo aos escritos que recebem a denominação de apócrifos e deuterocanônicos. O que vem a ser isso?

Só para recordarmos os conceitos: cânon, é uma palavra grega que pode ser entendida como lista. Na antiguidade essa palavra designava um instrumentos de medida; uma vara que pode ser identificada com o nosso metro. Canônico, é a palavra que os biblistas usam para designar a lista dos textos bíblicos; textos que fazem parte da bíblia porque foram considerados inspirados por Deus.

Mas as coisas que deveriam ser simples foram complicadas ao longo da história. Divergências doutrinárias, políticas e teológicas distanciaram, inicialmente cristãos e judeus; depois os próprios cristãos se dividiram. E o que era simples – a palavra de Deus – acabou sendo ponto de discórdia.

Há um grupo de escritos que os católicos chamam de Deuterocanônicos, pois, de acordo com a doutrina católica, foram escritos em língua grega e os judeus não os aceitaram em sua definição canônica e, por sua vez, as igrejas da reforma também não os assumiram. Entretanto por motivos internos, o catolicismo romano os considerou inspirados e os assumiu, depois da definição canônica judaica. Por isso são denominados Deuterocanônicos – depois do cânon. Esses escritos formam um conjunto de sete livros: Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiastes (ou Sirácida), Baruc e 1 e 2 Macabeus; além de partes de Ester e Daniel, escritas em grego.

Aqueles escritos que possuem alguma proximidade temática ou de estilo com os escritos bíblicos os católicos chamam de apócrifos. Também essa é uma palavra grega que pode ser entendida como “coisa escondida” ou oculta. Há uma grande lista de escritos apócrifos. Só a título de exemplo podemos mencionar: “Apocalipse de Adão”, “Testamento de Moisés”, “Apocalipse de Moisés” e “Testamento de Adão”. Vários sites na internet (por exemplo: https://www.abiblia.org/ver.php?id=2634) trazem uma lista mais ampla.

As igrejas da reforma chamam de apócrifos tanto os deuterocanônicos dos católicos quanto o conjunto de escritos universalmente chamado de Apócrifos. Comentando a questão dos apócrifos o pastor Brian Kibuuka (2017) afirma que na “comunidade judaica no exílio” havia grupos que usavam os apócrifos e aqueles que os rejeitavam. E faz a seguinte afirmação:

O problema dos apócrifos não faz parte da tradição latina ou oriental, sendo próprio apenas das Igrejas Reformadas. Lutero, influenciado pela tradição humanista, seguiu a divisão de Jerônimo, afirmando que os libri ecclesiastici eram apócrifos, ou seja, livros que não podem ser equiparados aos canônicos, mas cuja leitura é proveitosa. Foram incluídos por Lutero na categoria 'apócrifos' Judite, Sabedoria de Salomão, o e o 2º Macabeus, Tobias e os acréscimos de Ester e Daniel.

Lutero rejeitou Baruc, o terceiro livro de Esdras, o terceiro livro de Macabeus e Carta de Jeremias. (KIBUUKA, 2017)

As divergências são aquilo que poderíamos chamar de acidentes históricos, pois nasceram a partir de problemas – graves – mas que podem ser superados. Aliás, Paulo, antevendo as divergências e as combatendo em Corinto, nos indaga como num alerta: “Estaria o Cristo dividido?”(1 Cor. 1,13) O fato é que a essência do cristianismo permanece e mantém unidos Católicos Ortodoxos, Protestantes e Católicos Romanos.

Podemos nos valer do que dissemos em outra oportunidade, em relação às diferenças entre as bíblias cristãs, principalmente entre católicos romanos e protestantes:

Há, algumas diferenças no conjunto de livros usados pelos católicos e pelos protestantes. Mas, vale notar, trata-se de uma diferença mínima: sete livros. Há, portanto, muito mais a nos unir do que a nos separar. Na contagem geral aparecem sete livros a mais na bíblia católica e sete a menos na versão evangélica. A diferença é de sete, a proximidade corresponde a sessenta e seis. Ou seja, o que temos em comum é muito mais.

Pode-se ressaltar, além disso, que em algumas edições protestantes aparece, como apêndice os livros Deuterocanônicos que, de acordo com Lutero: “podem ser lidos com proveito”. (CARNEIRO, 2017)

Muito mais do que insistir nas divergências, deveríamos nos voltar para os pontos em comum. E, em relação à literatura apócrifa, nossa postura deveria ser a de continuar estudando-a. Não para comparar diferenças, mas para buscar mais luz sobre as base de nossa fé. Deveríamos ter em conta que os autores dessa literatura não tinham outra intenção que não fosse falar sobre Jesus. Podem até ter dito coisas exageradas, absurdas ou errôneas. Mas eles, da mesma forma que nós, tinham a intenção de acertar, de iluminar os caminhos, de aproximar seus leitores da luz salvífica de Jesus, o Cristo ressuscitado.

Referências complementares

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In: Canônicos e deuterocanônicos: diferenças que não separamCARNEIRO, Neri de P. www.webaertigos.com. Publicado em 04 de agosto de 2017. disponível em: https://www.webartigos.com/artigos/canonicos-e-deuterocanonicos-diferencas-que-nao-separam/152712. Acesso em 19/01/2018

ENUMA-ELISH: O Épico Da Criação. Tradução L.W. King. Disponível em: https://docplayer.com.br/37012145-Enuma-elish-o-epico-da-criacao-l-w-king-tradutor.html . Acesso em 15/07/2013

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Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação; filósofo, teólogo, historiador.

Rolim de Moura – RO