LIMITES E PARADOXOS DA LIBERDADE
Geraldo Barboza de Carvalho
Um dos ingredientes básicos da liberdade responsável é o respeito aos direitos dos outros, que consiste em cumprir seus deveres para com eles, sem sentir-se coagido, reprimido ou tolhi¬do por ninguém no uso da liberdade, mas só por sua consciência, autonomia pessoal, liberdade interior. Pois, não é coagido por normas que me sinto responsável pelos meus atos e cumpro meu dever de cidadão, mas diante de alguém que tem direitos como eu e que não posso negar, sem ser injusto e irresponsável. O desrespeito a direitos inalienáveis é liberdade excessiva, irresponsabilidade. Mas, o respeito aos direitos dos outros é consciên¬cia dos limites da própria liberdade e reconhecimento do direito alheio á liberdade e aos bens que ela acarreta. Respeito alguém, não porque tem poder, autoridade, mas porque é um ser humano, objeto de impostergáveis direitos e sujeito de deveres intransferíveis. Ademais, outro ingrediente básico, moderador poderoso da liberdade é a gratidão. Esta limita o ímpeto da liberdade louca, fascinada por autonomia absoluta insensata. Ser livre com gratidão é ter consciência que minha liberdade é função do trabalho de pessoas que produzem bens que viabilizam minha liberdade. Pois, esta não se exerce no vazio da realidade natural, so¬cial, política, econômica, religiosa, histórica, mas dentro dessa realidade complexa, que inclui as coisas produzidas por ou¬tros, para eu ser livre. Aqui se irmanam gratidão e respeito pelas coisas feitas por nossos semelhantes, que nos permitem ser livres. Pois, para sermos pessoas saudáveis, ricas e poderosas,¬ agricultores plantam e colhem para nos alimentar, operários fabricam roupas, veículos, livros, que geram nosso bem-estar. Sem eles, morreremos de fome, na ignorância, a liberdade sem juízo vira fumaça. Se operários não produzem carros, roupas, bebidas, casas, estradas, televisão, computadores, telefone, livros, nossa liberdade é fantasia. Mas, se essas coisas nos possibilitam ser livres, temos dever de gratidão a tanta gente que se sacrifica pra que tenhamos liberdade e vida. Só esta constatação bastaria para usarmos a liberdade com mais respeito e responsabilidade. Conhecendo os limites da nossa liberdade, quanto dependemos de outras pessoas para exercê-la, aprenderemos a ser gratos aos nossos benfeitores anônimos; e estaremos aptos a usar melhor as possibilidades da nossa liberdade, não como privilégio egoísta, sem serventia social, mas como serviço aos semelhantes; privilégios nos fazem medíocres consumidores, que não têm consciência de como foram produzidos os bens que nos dão bem-estar; privilégios fazem-nos consumidores vorazes de bens produzidos por operários, não raro mal pagos e tratados com discriminação e arrogância. Daí, além de respeito, gratidão, há outra qualidade básica da liberdade responsável: solidariedade. Não estou só no mundo: minha liberdade e as liberdades das outras pessoas fazem-nos irmanados na luta em prol do mundo humanizado e fraterno. Ser solidário é ter consciência da mútua interdependência na produção e consumo dos bens, construção de tecido social onde a liberdade, a verdade, a democracia, o amor, paz e justiça são a lei maior. Quem tem consciência da solidariedade social radical, usa a liberdade como serviço, não como aventura insensata, que nos tem como destinatários únicos. Por isto, quem é solidário de verdade não deixará de estar atendo às necessidades dos semelhantes. Não só de bens materiais, mas, sobretudo, necessidades mentais: esclarecimento, conscientização e res¬peito aos direitos dos outros. Quem é solidário e livre assim, se torna educador social, que empenha a liberdade no serviço ao bem-estar geral. Quem é livre e responsável assim, suscitará liberdade em outros. Pois, a liberdade verdadeira gera liberdade. Ser livre implica em libertar outros. Ninguém é livre para si, mas em solidariedade e em partilha. Empenhar a liberdade é condição da própria libertação e de outras pessoas; não é perder a li¬berdade, mas torná-la do tamanho do mundo novo que ajudamos a construir. não há liberdade hereditária. Pois, ao nascermos, somos só potencialmente livres, projeto de liberdade e realização pessoal, colaborando na edificação da história. Minha liberdade e a de cada pessoa é conquista, libertação permanente, não dádiva. Nascemos potencialmente livres e atuamos nossa liberdade à medida que a empenhamos no serviço da nossa e da libertação de outras pessoas, prisioneiras de tantos cadeias e escravidões pessoais e sociais.
Ora, falar da liberdade é fácil e poético. Mas, vivê-la é assaz problemático. Independentemente da cor política, do credo religioso, da condição sócio-econômica, classe social, todos concordamos, em tese, que a liberdade é nosso maior bem. Mas, as coisas se complicam quando passamos do romantismo sonhador à prática da liberdade real. Pois, se aceitamos de bom grado o bônus do direito à liberdade, na prática é extremamente difícil aceitar com naturalidade o ônus dos deveres de respeito, gratidão, solidariedade com as outras liberdades. A tendência é defender os direitos individuais e remeter a outros obrigações que nos competem: usamos nossa liberdade como se vivêssemos sós no mundo e não devêssemos nada a ninguém para sermos livres. É no jogo do direito e dever onde se dá o drama da liberdade, onde vivemos, a um só tempo, sua bênção e sua maldição. Pois, de um la¬do, se não dependemos de outros pra tomarmos decisões e praticarmos nossos atos, por outro, o dever de respeito, gratidão e solidariedade nos obrigam a dar satisfação a outros. Então veremos que, na prática, o dever limita o al¬cance de nossos direitos e o poder da nossa liberdade, e tomamos consciência que ser livre não é poder tudo, mas assumir o possível com responsabilidade, sempre em colaboração com os outros. De fato, as pessoas se comportam como se pudessem tudo, se liberdade não tivesse limites, não devessem absolutamente satisfação a alguém não precisassem da sua colaboração. Querem o direito de ter e usar bens deste mundo, mas sem se incomodar se outros são privados do mínimo à subsistência. Querem usar a natureza ? praias, rios, parques ?, mas não assumem obrigações de limpar os lugares que usufruem, que lhes servem de meios pra exercer a liberdade. Poucos se preocupam em saber se seus concidadãos, compatriotas e irmãos estão ou não passando necessidades, que demandam pronta solidariedade. Pra tais pessoas, obrigações empenham a liberdade. Como se fosse possível ser livre sem praticar, hipotecar a liberdade e todo o ser. Liberdade sem compromisso é cidadania pela metade, de quem só quer direito de usufruir sem limite dos bens da terra, sem se incomodar com a sorte e a morte dos seus semelhantes, e dever zero. Tal descompromisso da liber¬dade torna as pessoas egoístas e irresponsáveis, construtores da sociedade corrompida nos princípios da justiça e da fraternidade. Liberdade sem cidadania nem consciência dos limi¬tes, da dependência e solidariedade entre as pessoas. Esse descompromisso anti-solidário é o caminho reto pra a escravidão do ser. Liber¬dade sem empenho, gratidão, respeito, solidariedade é autofágica e gera escravidão. Usar a liberdade desenraizada da realidade histórica, sem compromisso social, faz-nos intolerante, egoísta, ingrato e célere nos tornaremos escravos da liberdade hipertrofiada e sem juízo. A distorção da liberdade onipotente começa quando tomamos decisões fora dos limites do possível, usando mais direitos que temos, deixando de cumprir intransferíveis deveres. Para os idolatras da liberdade insensata, é normal descumprir as leis, burlar as autoridades, impor a vontade pela força, explorar os fracos. Deste modo, usam a liberdade sem consciência de limites, que consistem na prática lúcida do respeito, solidariedade, gratidão. Quem concebe a liberdade exclusivamente do ponto de vista dos direitos individuais, sem levar em conta os correspondentes deveres sociais, a conce¬bem como fantasia e caminham célere pra o impasse da liberdade, configurado nos bumerangues dos crimes, doenças, drogas, inevitáveis na liberdade insensata, geradora de escravidão. Crimes, drogas são o preço da liberdade sem juízo. Preço caro da escravidão criada com as próprias mãos e pés, cérebro e coração dos atos loucos. Escravidão insuperável, para a qual talvez não exista alforria possível, pois somos nossos próprios opressores. Quando se é feito escravo pela tira¬nia de outro, pode-se ainda ser livre, mesmo na prisão. Pois pode-se estar preso por causa da liberdade comprometida, libertadora. Assim foram Jesus, Giordano Bruno, Tiradentes, Martin Luther King, Nelson Mandela e tantos prisioneiros de consciência. Seus carrascos achavam que tirá-los de circulação, acabariam os problemas que eles lhes causarem. Mas esqueceram que, prendendo os corpos, não prendiam as liberdades interiores deles, base de toda liberdade. As autori¬dades judeo-romanas disseram: ?É preferível morrer um só homem, a perder todo o povo? (pela ação libertária de Jesus). Enganaram-se, pois Jesus ressuscitou dos mortos e sua ressurreição foi semente de liberdade pra seguidores dele na fé. Pressentindo tal desfecho, tentaram conter Jesus no túmulo, escoltando o Sepulcro da Sexta-Feira à noite ao Domingo. Mas, gran¬de foi o pânico da guarnição militar, quando a liberdade ressurgiu da escuridão da cova rasa. De igual modo, os carrascos dos libertadores humanos não os ousam matar, pois sabem da sua autoridade libertária: sua morte se faria semente de liberdade pra muitos, pelos quais estiveram livremente prisioneiros. Liberdade autêntica gera liberdade. Não é o caso de quem é prisio¬neiro da liberdade insensata que aprisiona outros. A liberdade insana gera escravidão pra si, pra outros, pois radica no delírio de liberdade.
Daí, são loucas as pessoas que concebem a liberdade como a não-submissão às leis e o não-cumprimento de normas. Para elas, ser livre é ter poder absoluto sobre todas as pessoas e coisas, sem levar em conta as leis das coisas e os direitos das pessoas. Elas decidem levando em conta só seus direitos, sem se preocuparem em observar as leis das coisas, nem cumprir seus deveres para consigo mesmas, primeiro, e depois para com outras pessoas. Esquecem que liberdade demais é direito de¬mais pra poucos e direito de menos para a maioria. É nesta contradição escandalosa que se arrimam as mega-riquezas do mundo, geradoras de opressão e negadora dos direitos legítimos da maioria, e desrespeito às leis da história, da natureza, das coisas. Pois, queiram ou não, haverá sucessão do tempo independente da vontade livre e do capricho das pessoas. Decisão livre alguma impedirá um dia após o outro e uma noite no meio, e o ciclo das estações climáticas. Capricho humano algum muda os elementos químicos, físico-químicos, a composição atômica e molecular da matéria. Mesmo que devastem a natureza com pretenso poder sobre ela, ainda assim as flores continuarão a florir, os rios a correr, as marés a subirem e descerem, o sol a brilhar, a lua a tornar as noites românticas. Por mais que alguém seja livre, não impedirá as conseqüências das suas decisões insensatas e dos seus atos sem sabedoria. Por maior que seja o poder da sua liberdade, não impedirá que alguns dêem a vida livre¬mente pela libertação de muitos, enquanto outros, com o poder nefasto da liberdade excessiva, perseguem e tiram a liberdade dos justos. Se co¬mo e bebo demais, se fumo e consumo drogas, se me alimento e durmo mal, se guardo ódio no coração, sou vingativo, não respeito ninguém, como esperar ter corpo e mente saudáveis, ser feliz? Minha liberdade sequer tem poder sobre o determinismo fisiológico do meu ser. O ato de me alimentar depende de eu praticá-lo. Mas, sendo ato biológico, depois da comida ser mastigada, insalivada, deglutida pelo esôfago para o estômago, o processo digestivo e assimilador foge completamente ao poder da minha liberdade. Ora se até meus processos biológicos e bioquímicos fogem ao meu controle, como posso mandar nas liberdades alheias? Eu deveria respeitar, ser grato ao Criador, à natureza e aos semelhantes. Deveria parar e pensar que maravilha são o metabolismo, os sistemas digestivo, circulatório, nervoso, reprodutor, em vez de estragá-los com excessos. Pensar quanto é precioso o trabalho do semelhante pra que eu seja livre e como é importante o meu trabalho para a liberdade dos outros. Eu deveria tomar um copo de leite, comer uma fruta, vestir roupas, tomar banho, assistir TV, ler livros com as mãos levantadas para o céu em gratidão aos seres humanos, animais e plantas que me proporcionaram as coisas que me permitem viver e ser livre, em lugar de agir como ser insanamente autônomo que não precisa de nada e de ninguém. Esta liberdade insensata vem sendo vivida pela humanidade como maldição através dos séculos, desde Adão e Eva. O Criador lhes deu uma norma limitativa da liberdade, não proibição autoritária sem razão de ser, critério pra liberdade sujeita a desvio: "não podereis co¬mer da árvore do bem e do mal; no dia em que dela comerdes, vossos olhos se abrirão e conhecereis os segredos do bem e do mal". Não aceitando os li¬mites do seu ser e da sua liberdade, desafiando a norma saudável da natureza, eles conheceram os segredos do bem e do mal, mas pelo avesso: como castigo e punição da natureza contrariada. E o que era bênção, virou maldição, quando, porque desrespeitado, usado de forma inapropriada. Deixando de agir conforme a natureza, nos limites de possibilidade de sua liberdade finita, fascinados pela liberdade loucamente infinita, iniciaram a agir fora de órbita, com liberdade absoluta como Deus, que estabelece do nada as leis do bem e do mal. Por isto, corrompeu-se a harmonia natural do relacionamento entre criaturas e o Criador. Começaram, então, as agressões das pessoas entre si (Caim matou Abel); devastação da natureza: poluição do ar, dos mares, rios, destruição do equilíbrio ecológico, profanação da criação. Como sanar tão grave problema, de que depende a sobrevivência do gênero humano? Problema que demanda solução urgente, pois o ser humano continua destruindo as bases físicas da sua liberda¬de. Eis o paradoxo da liberdade, desde que a história registra as ações humanas na terra. Religiões, filosofias, artes, todas frutos culturais da ação humana livre, sempre se propuseram a solucionar o insolúvel paradoxo da liberdade a partir da ótica do Criador, que sabe o segredo da criação. Em suas pregações, procuram conciliar o real poder de autodeterminação da liberdade com os limites das decisões humanas, e com a real necessidade da ajuda dos outros para exercer nossa liberdade. Como ser livre, como obedecer a leis que não fiz, se não posso prescindir do trabalho dos outros nem deixar de colaborar com eles, pra que minha liberdade e a deles sejam viáveis? Até onde vai o alcance e limites da liberdade humana? Os determinismos naturais que fogem ao meu poder (clima, catástrofes), as mudanças políticas, os determinismos psicológicos, nervosos, biológicos, fisiológicos, químicos, físicos, físico-químicos do meu ser não tiram minha liberdade? Sei que as leis naturais e sociais independem de mim, pois elas regem a realidade antes de mim, malgrado eu. Quer me alegre ou sofra, seja pobre ou rico, saudável ou enfermo, empregado ou desempregado, tenha credo religioso, pessoa de boa vontade e vida ética correta, ou agnóstico, nada disto influenciará o determinismo natural. Por isso, é insensatez querer que as coisas se submetam aos caprichos da minha liberda¬de sem juízo, que me dá a ilusória sensação de ausência absoluta de limites. Não se pode esperar ou pretender que as leis da matéria, da vida e da morte mudem pra atenderem os caprichos da minha liberdade insensata. Querendo ou não, terei de me submeter às leis naturais, como condição inarredável da minha liberdade de escolha. Essas leis são anteriores à minha liberdade. Podemos intervir e por a natureza a serviço do bem-estar coletivo e pessoal, mas não podemos mudar seu determinismo. A liberdade não pode ignorar as leis naturais. Quem ousa desafiar a natureza exterior e pessoal, terá desvantagem. Não serei livre sem considerar o inexorável determinismo da natureza. "A liberdade é a consciência da necessidade", diz o filósofo. Necessidade são as leis do determinismo natural?, opostas ao indeterminado poder da autodeterminação. Serei livre na medida da minha integração às leis naturais, pessoais, sociais. Limitada e limitativa é a estrutura da minha liberdade e do meu ser; se meu ser é limitado, como poderá ser ilimitada a liberdade que expressão do ser limitado? É insensatez contrariar leis naturais, pois haverá prejuízo pra liberdade de escolha, do livre arbítrio. Sou livre, sim, mas minha liberdade tem limites intransponíveis que não posso ultrapassar, sem perturbar meu ser e minha liberdade. É sábio ser livre, grato e solidário com a natureza, a vida, os semelhantes e com o Autor da vida.