Sentença a ultima tentação de cristo

            O principal debate jurídico acerca deste caso e o que o fez com que ele se tornasse tão especial girou em torno da questão da origem da responsabilidade internacional do Estado. Diferentemente da maioria dos casos, onde a responsabilidade do Estado é comprometida por atos do Executivo, no caso chileno foram o Legislativo e o Judiciário que geraram atos que violaram a Convenção Americana.

            No caso de "A Última Tentação de Cristo", a decisão da Suprema Corte, baseada em uma disposição constitucional chilena, deu origem a violação do artigo 13 da Convenção Americana. Embora o Estado alegue que uma decisão judicial não seja suficiente para a caracterização de um delito em sede de delito internacional, uma vez que deveria ser acompanhada pela inatividade dos órgãos Legislativo e Executivo, esta tese não prosperou perante a Corte Interamericana. Se, para o Direito Constitucional, a questão da distribuição de competências é de grande relevância, o Direito Internacional é apenas um fato.

            Segundo um dos juízes da Corte, "o Estado, como um todo indivisível, continua a ser um centro de imputação, e deve responder por atos ou omissões internacionalmente ilícitos, de qualquer de seus poderes ou agentes, independentemente da hierarquia". Como os recursos internos disponíveis, adequados e eficazes foram esgotados e a decisão do Supremo Tribunal Chileno manteve a censura, a responsabilidade internacional do Estado foi comprometida por um ato do mais alto Tribunal do judiciário nacional.

            A melhor doutrina tem convergido para essa questão. Segundo G. E. Nascimento e Silva, "O Estado pode ser responsabilizado como resultado de atos de seus juízes ou de seus tribunais". Na opinião do jurista uruguaio Eduardo Jiménez de Aréchaga, embora independente do Governo, o Poder Judiciário não é independente do Estado, e o Poder Judiciário pode, através de uma sentença “que é manifestamente incompatível com uma regra de Direito Internacional”, colocar em risco responsabilidade internacional do Estado.

            Finalmente, o Constitucionalista Mauro Cappelletti conclui: "Estes 'recursos individuais' destinam-se a obter proteção judicial supranacional dos direitos proclamados pela Convenção Européia contra violações por qualquer autoridade do estado membro - legislativo, executivo ou judicial".

            A jurisprudência internacional também apoiou essa visão. A antiga Corte Permanente de Justiça Internacional (precursora da atual Corte Internacional de Justiça) estabeleceu que, do ponto de vista do Direito Internacional ... as leis nacionais são meros fatos que expressam a vontade e constituem as atividades dos Estados, na mesma forma como sentenças judiciais ou medidas administrativas "(pelo autor) Esta tese tornou-se jurisprudência internacional ao longo dos anos, e o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem ampla jurisprudência a este respeito.

            Nos bem conhecidos casos de Marckx (1979) e Vermeire (1987), o Tribunal Europeu determinou que várias disposições do Código Civil Belga (que tratam de afiliação ilegítima) foram violadas por burlar a Convenção Europeia, muito embora para a Corte de Cassação Belga não houvesse desacordo à Convenção. Assim, o Tribunal Europeu reverteu os acórdãos do Tribunal Belga.

            Além disso, "no referido caso, o Supremo Tribunal espanhol determinou que os acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos nunca podem invalidar um ato judicial interno. Entretanto, o Tribunal Constitucional espanhol declarou o acórdão do Supremo Tribunal nulo e sem efeito e admitiu. os efeitos internos da sentença do Tribunal Europeu "

            No continente americano, ao reverter uma decisão da Corte Suprema do Chile no caso da "Última Tentação de Cristo", a Corte Interamericana não está ignorando o princípio da coisa julgada, que não ocorreu no processo interno.

            A Corte Interamericana determinou ainda que o Estado do Chile, ao não cumprir a legislação interna chilena da Convenção Americana, deu origem a uma violação do art. 2 (Dever de Adotar Disposições de Direito Interno) da Convenção.

            A esse respeito, a responsabilidade internacional do Estado decorre de uma omissão do Legislativo (além da já mencionada decisão do Supremo Tribunal Federal), que ainda não concluiu o projeto de reforma constitucional iniciado pela Câmara dos Deputados do Chile em 1997, que teve como um de seus objetivos a eliminação do dispositivo constitucional que estabelece a censura prévia aos filmes. O artigo 1912 da Constituição chilena dispõe que: "A lei estabelecerá um sistema de censura para a exibição e publicidade da produção cinematográfica". O Chile terá, portanto, que alterar sua Constituição para cumprir sua obrigação internacional reiterada pela sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

            Ao determinar que o Estado chileno deve modificar seu sistema jurídico interno, a Corte Interamericana dá mais um passo em direção à plena vigência das obrigações legislativas dos Estados Partes da Convenção Americana.

            Além disso, consolidou o argumento de que a mera existência de disposições de direito interno contrárias à Convenção comprometem a responsabilidade do Estado. O exame da incompatibilidade das normas de direito interno torna-se uma questão concreta, dada a existência de vítimas. O controle concreto também tem sido uma prática comum no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, e até provocou reformas constitucionais em alguns dos Estados Partes da Convenção Européia.

            A própria Corte Interamericana, em sua recente decisão de 14 de março de 2001, a respeito do mérito do caso Barrios Altos, determinou que a promulgação e aplicação de duas leis de auto anistia no Peru (alegadas no presente caso) violavam os artigos 8 e 25 da Convenção Americana (Garantias Judiciais e Proteção Judicial, respectivamente). Além disso, tais leis de anistia, segundo a Corte, carecem de efeitos legais.

            Finalmente, no caso do Chile, o jurista chileno Santiago Benadava opinou que é a ordem jurídica interna que deve ser adaptada ao Direito Internacional, e não ao Direito Internacional, à ordem jurídica interna.

            A partir da análise do caso "Última Tentação de Cristo", percebemos não apenas a evolução do Direito Internacional, a fim de constituir uma garantia adicional do indivíduo contra a arbitrariedade do poder estatal, mas também uma crescente interação entre o Direito Internacional e o Direito promovido pela jurisprudência dos tribunais internacionais, com o conseqüente impacto, de grande significado, das decisões judiciais internacionais nos sistemas jurídicos internos dos Estados.

 

REFERÊNCIAS

ACCIOLY, Hildebrando. e SILVA, G. E. do Nascimento. Manual de Direito Internacional Público, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 130.

BENADAVA, Santiago. Corte Interamericana, In: El Mercúrio (jornal chileno) de 14 de fevereiro de 2001.

CAPELLETTI, Mauro. O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado (trad. por Aroldo Plínio Gonçalves), Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris: 1992, p. 20.

TRINDADE, A. A. Cançado, "A Determinação do Surgimento da Responsabilidade Internacional dos Estados", 49-50 In:Revista de Direito Público - São Paulo (1979) pp. 133-153.