LIBERDADE DE AUTONOMIA E DA VONTADE
Por Alexandre Alvaro Oliveira | 28/01/2014 | FilosofiaIntrodução
Neste ensaio pretendemos discutir a “questão da liberdade de autonomia da vontade” na perspectiva kantiana. Esta abordagem se enquadra dentro do Ética de Kant e julgamos que irá contribuir significativamente para tomada de consciência sobre as questões éticas não só de Kant mas também das nossas práticas quotidianas. Pretendemos explicar em que consiste a liberdade de autonomia em Kant sobretudo queremos perceber como é que se tem a autonomia da vontade.
Este tema “Liberdade de Autonomia da Vontade” é mais um desafio a todos aqueles que se interessam em aprofundar e compreender o pensamento ética de Kant para poderem revisitar a sua obra “Fundamentação da Metafísica dos Costumes” onde se encontra o seu pensamento ético e para a partir dela aurir algo que possa ser interessante no desenvolvimento ético da sociedade. Este assunto é relevante para nós dado que somos chamados a dar a nossa contribuição ética no processo de Ensino e aprendizagem uma vez que somos educadores.
Liberdade de autonomia
O iluminismo influenciou profundamente Kant na questão da razão como algo que o homem possui e que deve fazer uso dela. Essa capacidade de o homem servir-se da razão é o que lhe confere a autonomia.
“ A todo o ser racional que tem uma vontade temos que atribuir-lhe necessariamente também a ideia da liberdade, sob a qual ele unicamente pode agir” (Kant, 1995:96). A partir deste dado podemos concluir que o uso da razão pela parte do homem faz com que este tenha liberdade. E é nesta possibilidade do uso da razão que o homem tem a liberdade[1] de escolher como agir: ou segundo a razão ou segundo o instinto. Quando ele age segundo a razão essa acção Kant chama de “acção moral”, acção boa e quando age segundo os instintos essa acção é amoral ou má acção. Também a experiência mostra-nos que quem é autónomo é livre; e a autonomia se alcança enquanto o homem for racional.
O indivíduo é autónomo no sentido de que pode eventualmente agir independentemente das leis da natureza. Por isso que o princípio de uma acção deve estar livre das influências exteriores e o princípio da conduta não pode buscar leis empíricas.
Vontade
Também uma acção para ser boa ou má Kant diz que depende da intenção. Entenda-se intenção como “vontade”; portanto boa intenção equivale a boa vontade.
Uma vontade é boa quando ela é feita por dever. Mas aqui a que ter em conta se não existiu algum condicionamento; porque se se age por um dever condicionado por interesses individuais ou por uma intenção individual então essa acção torna-se amoral. O único que possa condicionar o agir é a lei. Como diz Kant “o Dever é a necessidade de uma acção por respeito à lei….se uma acção realizada por dever deve eliminar totalmente a influência da inclinação e com ela todo o objecto da vontade, nada mais resta à vontade que a possa determinar do que a lei objectivamente e subjectivamente, o puro respeito por esta lei prática e por conseguinte a máxima que manda obedecer a essa lei, mesmo com prejuízo de todas as minhas inclinações” (Kant, 1995:31).
Quer dizer, a submissão a uma lei, não pela utilidade ou satisfação que o seu cumprimento possa proporcionar-nos, mas por respeito para com a mesma.
A vontade é concebida com a faculdade de se determinar a si mesmo o agir em conformidade com a representação de certas leis. Por isso mesmo todas as máximas que não estão em consonância com a lei universal são rejeitadas. Aquilo que é boa vontade deve ser objecto de respeito, mandamento ou lei.
Toda a vontade humana seria uma vontade legisladora universal por meio de todas as suas máximas (Kant, 1995:74). Exactamente é por causa desta ideia de legislação universal que é necessário que tudo se faça em obediência a uma máxima de uma vontade que ao mesmo tempo possa ser universal. Podemos sustentar este pensamento com o imperativo categórico de Kant: “devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal” (Kant, 1995:33).
É por isso que Kant afirma que o princípio da autonomia da vontade é de não escolher senão de modo que as máximas da escolha estejam incluídas no querer mesmo, como lei universal. Como vemos esta regra é uma espécie de imperativo.
Vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto racionais, e liberdade seria a propriedade desta causalidade, isto é, da vontade, pela qual pode ser eficiente, independentemente de causas estranhas que a determinem; assim como necessidade natural é a propriedade de todos os seres irracionais de serem determinados à actividade pelo influxo de causas estranhas” (Kant, 1995: 93).
A citada definição de liberdade segundo Kant é negativa e, portanto, infrutífera para conhecer a sua essência. Porém, dela decorre um conceito positivo da mesma que é bem mais rico e fecundo. O conceito de uma causalidade arrasta consigo o conceito de leis, segundo as quais, por meio de alguma coisa a que chamamos causa, há-se ser afirmada alguma coisa, a saber: a consequência. Donde resulta que liberdade, ainda que não seja uma propriedade da vontade, segundo as leis naturais, nem por isso carece de lei, senão que tem de ser antes uma causalidade segundo leis imutáveis, embora de natureza particular; a ser de outro modo, uma vontade livre seria um absurdo. A necessidade natural era uma heteronomia das causas eficientes; pois todo o efeito não será possível senão segundo a lei de que alguma outra coisa determine, à causalidade, a causa eficiente. Que pode ser, pois, a liberdade da vontade senão autonomia, isto é, propriedade da vontade de ser uma lei para si mesma apenas caracteriza o princípio de não agir segundo nenhuma outra máxima do que aquela que pode ser objecto de si mesma, como lei universal. Esta é justamente a fórmula do imperativo categórico e do princípio de moralidade; desde modo, vontade livre e vontade submetida a leis morais são uma e a mesma coisa (Kant, 1995: 93 e 94).
Portanto não resta dúvida de que a liberdade da vontade é autónoma e o imperativo categórico é a determinação duma acção como necessária em si mesma, isto é, absolutamente desinteressada.
Não basta que atribuímos liberdade à nossa vontade, seja qual for o fundamento que se apresente, se não temos razão suficiente para atribuí-la do mesmo modo a todos os seres racionais. Como a moralidade nos serve de lei, enquanto seres racionais que somos, tem de valer também para todos os seres racionais, e como não deve derivar senão da propriedade da liberdade, tem de ser demonstrada a liberdade como propriedade da vontade de todos os seres racionais; não basta, pois, considerá-la na natureza humana por certas hipotéticas experiências (ainda quando isso é absolutamente impossível e só para ser afirmada a priori), mas temos de os dotados de liberdade (Kant, 1995: 95).
Quer dizer que todo o ser que pode agir de outro modo senão sob a ideia de liberdade é verdadeiramente livre em sentido prático, isto é, valem para tal ser todas as leis que estão inseparavelmente unidas à liberdade, como se a sua vontade fosse definida como livre em si mesma e por modo válido. Na verdade todo o ser racional que tem vontade tem também a ideia da liberdade.
Ora bem: eu sustento que a todo o ser racional que tem uma vontade devemos atribuir-lhe necessariamente também a ideia da liberdade, sob a qual age. Pois, em tal ser pensamos uma razão que é prática, isto é, que tem causalidade em relação aos seus objectos. Mas é impossível pensar uma razão que com a sua própria consciência em relação aos seus juízos receba uma direcção cujo impulso proceda de alguma outra parte, pois então o sujeito atribuiria, não à sua razão, mas ao impulso, a determinação do juízo. Tem de considerar-se a si mesma como autora dos seus princípios, independentemente de influxos estranhos; por conseguinte, como razão prática ou como vontade de ser racional, deve considerar-se a si mesma como livre; isto é, a sua vontade não pode ser vontade própria senão sob a ideia da liberdade e, portanto, tem de atribuir-se em sentido prático, a todos os seres racionais (Kant, 1995:85,93 a96)
Portanto a razão prática, que é a vontade, é a autora das suas leis e em Kant a moralidade radica na determinação da vontade pela razão e o dever moral é um imperativo categórico.
Determinação da vontade
Há duas perspectivas de determinar a vontade: determinar a vontade por desejo e determinar a vontade por dever.
Essas duas perspectivas de determinar a vontade nunca coincidem e é muito difícil distinguir se uma certa acção é ou foi determinada/ condicionada por desejo ou por dever. Por isso é muito importante, antes fazer um questionamento sobre o princípio que determina uma certa vontade ou por outras ter em conta a intenção de cada acção.
Valor moral das acções
Kant considera que o valor moral das acções vem das intenções com que são feitas. Portanto, poderemos afirmar que esta ou aquela acção tem um valor moral se essa acção fôr feita com uma boa intenção; estou a referir a intenção de dever e não intenção de desejo.
Ora vejamos que uma mesma acção pode ser realizada com diferentes intenções por desejo ou por dever. Por exemplo posso dar esmola a uma mendiga para a partir daquele gesto ser bem visto; mas também posso dar a mesma esmola por sentir que tenho o dever de o fazer.
Na primeira intenção fui movido pelo desejo, enquanto na segunda intenção fui movido por dever. É claramente evidente que a acção que foi feita por desejo não tem nenhum valor moral mas a que foi feita por dever sim, porque tive a obrigação moral de oferecer; essa obrigação não veio de fora de mim, isto é, não é algo exterior a mim, vem da minha própria racionalidade. E é por isso que Kant disse que “a obrigação moral vem se funda na razão” (Kant, 1995:).
Sendo assim é fácil perceber quando Kant afirma que a moral se conhece a priori e não aposteriori; exactamente por ser algo que vem da razão e não da experiência.
Uma regra moral pela sua natureza deve ser respeitada sem olhar pelas suas consequências.
Uma regra moral é uma espécie de lei moral e ela é estabelecida pela razão. É por isso que uma lei moral está em forma de dever – espécie de obrigação moral. Portanto, quem age moralmente respeita os direitos.
Imperativo
O imperativo normalmente diz a mim o porque é que pratico uma certa acção. Mesmo eu sabendo que é boa acção se for contrária aos princípios objectivos ou da razão prática não vou praticar.
Kant divide os imperativos em dois: categórico e hipotético. Imperativo hipotético “é a necessidade prática de uma acção possível como meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer” (Kant, 1995:50); isto é, é aquele que nos diz se uma acção é boa em vista de uma intenção possível ou real. Imperativo categórico, é aquele que tem acção objectivamente necessária, isto é, válido para todos, como princípio prático. Normalmente expressa-se da seguinte forma: “age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (Kant, 1995:59).
Kant lembra-nos que há máximas que são contrárias a lei universal como por exemplo o suicídio por amor a si mesmo. É por isso que o dever deve ter um significado e deve conter uma verdadeira legislação para as nossas acções.
Imperativo categórico
A exigência de agir moralmente exprime-se num imperativo que não é, nem pode ser hipotético, mas categórico. Kant deixou-nos diversas fórmulas do imperativo categórico, das quais a primeira é a seguinte: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (Kant, 1995:59). Esta formulação revela claramente o imperativo categórico tem um carácter formal; pelo facto de não estabelecer nenhuma norma concreta, mas sim a forma que devem ter as normas que determinam a conduta de cada um, que Kant denomina de “máximas”.
E qualquer máxima deve ser tal que o sujeito possa querer que se converta em norma para todos os homens ou em lei universal. Esta formulação do imperativo categórico mostra ainda a exigência de universalidade própria de uma moral racional.
A acção só tem valor se realizada por dever[2] e não apenas de acordo com o dever[3]. No exemplo anterior sobre dar esmola a uma mendiga, poderemos afirmar que foi por um “imperativo categórico” que tive que dar esmola e não por um imperativo hipotético. Explico porque: porque apesar de ser uma obrigação é dependente ou condicional a certa circunstância; ser visto pelos outros como alguém que dá sempre esmola. Portanto fui obrigado a dar esmola com o propósito de ser visto. Imaginemos se eu desistir o desejo de ser visto como alguém que dá esmola; o que vai acontecer é que automaticamente a obrigação de dar esmola irá desaparecer em mim e nunca mais vou dar esmola.
Autonomia da Vontade[4]
O homem é um ser que possui muitas dimensões a saber: ser racional, sensível e da natureza. Sendo assim ele precisa de se regular pelas leis da razão. Pelo facto de se regular pela lei da razão significa que o homem é autónomo e auto regula-se.
O princípio da autonomia é não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente no querer mesmo, como lei universal (…) pela simples análise dos conceitos da moralidade pode-se, porém, mostrar muito bem que o citado princípio da autonomia é o único princípio da moral. Pois desta maneira se descobre que esse seu princípio tem de ser um imperativo categórico, e que este imperativo não manda nem mais nem menos do que precisamente esta autonomia” (Kant, 1995:85 e 86).
Portanto a função da razão é de transformar a vontade em boa vontade e esta em autónoma (livre).
Conclusão
A ética de Kant é meramente universal e sendo assim tem apenas um imperativo que é o categórico e é autónomo; autónomo porque o sujeito determinar-se a si próprio a agir, dá-se a si próprio a lei.
É também uma ética formal, por não possuir conteúdo específico e por não estabelecer nenhum bem ou fim que deve ser seguido e por não nos dizer o que devemos fazer, mas como devemos agir ou a forma como devemos actuar.
A liberdade em Kant aparece quando fizemos o nosso dever; portanto ser livre implica agir condicionado ou determinado pela lei moral.
A razão exerce uma influência sobre a vontade, isto é, a vontade é guiada pela razão e quando isto acontece ela, a vontade, produz um bem supremo e ou uma boa acção.
A vontade livre esta virada para o bem, e isto se efectiva quando o homem age segundo leis da liberdade ou normas universais. A vontade boa é boa pelo dever e não por aquilo que realiza ou por desejo.
Para agir moralmente bom é preciso que se siga a vontade boa e pelo dever de cumprir-se suas determinações. O agir pelo respeito à lei moral é resultado do uso racional que o homem faz e isso lhe confere uma possibilidade de deixar de ser simples realidade ou coisa mas sim sujeito ou dono de uma vontade.
Uma acção para ser autónoma e ética, o indivíduo terá que querer por sua própria vontade e agir em consonância a lei universal. Apesar de ser uma acção determinada por uma regra trata-se de uma escolha livre e racional e sobretudo consciente. Portanto, a autonomia da acção está na capacidade de o indivíduo poder fazer uma escolha racional. Durante a escolha é a razão que justifica o acto correcto. Portanto a ideia do dever está fundada na razão.
Referencia bibliográfica
KANT, Immanuel; Fundamentação Da Metafísica Dos Costumes, Ed. 70, Lisboa, 1995
[1] Em Kant liberdade é algo que o homem tende a possuir e dela ser responsável.
[2] Por dever significa uma obrigação moral.
[3] De acordo com o dever significa obrigação que dependa dos desejos.
[4] A autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente dos objectos do querer) (Kant, 1995:85).