A revolta dos figurantes

Em passeio a São Paulo, tive a oportunidade, acompanhado do amigo e também professor Adilson Paula de Oliveira, de conhecer o programa de leituras dramáticas Letras em cena, organizado desde dois mil e sete, executando, no Grande Auditório do Masp, o ato de ler textos dramáticos, líricos, epistolares, entre outros gêneros textuais.
O projeto se desenvolve todas às segundas-feiras e oportunizaalgumas leituras variadas de diversos autores, bem como a atuação de atores novos e consagrados. Gratuitamente, o público tem acesso à cultura de qualidade, além de poder promover debate acerca do texto, do autor e da atuação dos atores, tudo isso com o intuito de enriquecer o trabalho por intermédio de sugestões e críticas. Para participar do Letras em cena, existe uma inscrição a ser realizada no site www.letrasemcena.art.br e emails podem ser enviados a [email protected] a fim de se apresentar ou propor trabalho.
No dia 18 de julho, Adilson Paula de oliveira e eu, juntamente com um público considerável e um provocador especial na plateia, assistimos à leitura da peça Os figurantes, do espanhol José Sanchis Sinisterra, com tradução de Daniela de Vecchi, direção de Augusto Marin e Imara Reis e direção de produção de Heloísa Andersen, com atuação de Carlos Capeletti, Salete Fracarolli, Michelle Gabriel, Nyerce Levin, Tuna Dwek, Augusto Pompeo, Patrícia Gordo, Gabriela Fontana, Juliana Dip,Tadeu Pinheiro, Marcos Thadeus, Gabi Zanola, e aluno do projeto Teatro Cidadão do Ponto de Cultura da Commune.
Os figurantes constitui um texto dramático que apresenta personagens tipificados, como monges, metalúrgico, prisioneiro, soldados, povo, damas, entre outros, os quais, na ausência dos protagonistas, resolvem atuar e mostrar seu valor, rebelando-se contra o autor e os atores principais. Sem uma ação pronta e sem liderança, eles desenvolvem a peça. O argumento textual se mostra engajado, na medida em que convoca todos à ação, pois o mundo está marcado por movimentos que consolidam líderes, mas já está na hora de os figurantes fazerem acontecer sem a existência de cabeças manipuladoras e interesseiras.
A leitura da peça se mostrou excelente e bastante profissional, com destaque para a imitação de Lula na personagem do metalúrgico, pois o texto de Sinisterra diz que o metalúrgico tem a língua presa, uma feliz coincidência para a associação, muito bem elaborada, diga-se de passagem. Entretanto os "erros de português" na fala do metalúrgico poderiam ser evitados sem prejuízo da caracterização, afinal estamos em plena discussão contra o preconceito linguístico, discriminação de que Lula foi vítima e ainda continua sendo, e esse tipo de abordagem estigmatiza, marca e perpetua uma ignorância já superada, tendo em vista que o ser humano é maior que a língua, e o respeito conquistado internacionalmente por Lula é prova disso. Todos devem entender a importância de se estudar a norma culta, porém aprendendo que a língua foi criada para servir ao homem e não para humilhar os indivíduos.
A peça me fez lembrar uma dramatização a que assisti no Teatro Carlos Gomes, no Espírito Santo, com autoria e encenação de Alvarito Mendes e grande elenco. No texto Morto por trinta dias, os personagens se revoltam contra o autor e agem por si mesmos, ganhando vida própria por meio de ações livres de orientações de outrem.
As duas realizações textuais acontecem metalinguisticamente de forma a discutir a liberdade das personagens, haja vista que o autor perde o controle de sua criação quando o texto começa a ser escrito. Além disso, ambos os trabalhos mostram a importância de todos os personagens, pois cada papel tem sua relevância, o que precisa ser compreendido pelo público, para que deixe de valorizar apenas os protagonistas e também perceba a ação silenciosa dos figurantes.
Por tudo isso, espera-se que a peça Os figurantes, que envolve dezenove atores, possa ser montada e apresentada ao Brasil, haja vista que o povo brasileiro precisa aprender a sair da condição de figurante para protagonizar uma revolução social capaz de valorizar a máxima "Infeliz do povo que precisa de heróis", do pensador Bertolt Brecht.

Jean Carlos Neris de Paula