Lei 11.101/05: Recuperação de empresas e falência – construindo sentido

Por Karla Giuliane Gomes Garcia | 28/11/2016 | Direito

Karla Giuliane Gomes Garcia

1 DESCRIÇÃO DO CASO

O case proposto trata da situação vivida por João Feitosa, domiciliado em Belo Horizonte – MG, que adquiriu um conjunto de maquinário para a confecção de tecidos e vestuário, em sua atividade empresarial. Este maquinário foi adquirido em hasta pública em um processo de Recuperação Judicial de uma empresa de abrangência nacional, mas com sede estatuária na cidade de Rio Branco – AC (segundo o contrato social), principal parque fabril em Bacabal – MA e direção no Rio de Janeiro – RJ. 

Contudo, posteriormente, João Feitosa já em uso do maquinário, é surpreendido por uma determinação judicial, estabelecendo a constrição judicial com previsão de futura alienação para satisfazer créditos de natureza trabalhista relativos ao alienante do maquinário. 

Este caso possui vários problemas que deverão ser analisados. O primeiro deles é quanto aos ônus e à sucessão do arrematante em processos de recuperação judicial ou processo de falência. Nesses casos há mais de uma interpretação possível com base na lei nº 11.101, sancionada em 9 de fevereiro de 2005.

Outro problema, também a ser analisado, é quanto a definição do juízo competente para o processamento e julgamento do caso, ainda com base na lei nº 11.101/05. Além disso, se é possível encontrar um referencial central que permeie e vincule as respostas possíveis ao tema proposto.

  1. IDENTIFICAÇÃO E ANÁLISE DO CASO

2.1) Ônus e sucessão trabalhista em processos de recuperação judicial e falência. Há diferenças nessas duas situações? Quais as interpretações possíveis com relação a essa temática, inclusive sob o aspecto linguístico? Como os tribunais têm se posicionado sobre esse tema?

Primeiramente é necessário entender o que é recuperação judicial e o que é falência. A falência, também tratada como insolvência pelo Código Civil Brasileiro, é aquela situação de grande crise na empresa, mostrando-se até mesmo insuperável a sua recuperação e desta forma, há sentença judicial decretando a falência. A própria Lei base para este case - nº 11.101/05 – define recuperação judicial em seu artigo 47.

Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. (Lei nº 11.101/05)

O Decreto-Lei nº 7.661/45 regulamentava o processo de falência, mas foi revogado pela lei anteriormente citada que “regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária”. Nesta nova lei, é explícito que o objeto de alienação em processos de falência não está sujeito a obrigações referentes a legislação do trabalho ou acidentes de trabalho, conforme o artigo 141 inciso II. Contudo, ao tratar do objeto de alienação em processos de recuperação judicial, o legislador  não se manifesta quanto às obrigações trabalhistas. Simplesmente se cala, deixando assim um campo aberto para discussões de cunho interpretativo. Para tanto, a interpretação é um recurso necessário para a construção do sentido da norma jurídica. Utilizando os métodos de interpretação é possível fazer diferentes análises do texto normativo.

Interpretação gramatical. De acordo com Bernardo Gonçalves Fernandes (2010), este método interpretativo é “referente à estrutura léxica do texto normativo”, sendo necessária a compreensão do pensamento do legislador, ou seja, voluntas legislatoris.

De acordo com a interpretação gramatical, haverá sucessão trabalhista do arrematante nas obrigações do devedor em recuperação judicial, conforme a interpretação dada pelos romanos: exceptinoes sunt strictissima interpretationis (interpretam-se as exceções estritissimamente). Ou seja, o fato de não ocorrer sucessão trabalhista na alienação de estabelecimento em decorrência de recuperação judicial representa uma exceção, portanto deveria o legislador ter mencionado expressamente tal condição exceptiva. Pelo fato de não a ter mencionado, não poderá o intérprete colocar uma ressalva onde não foi posta, caso o fizesse, estaria inovando a norma jurídica e, por consequência, acabaria por exercer uma função que não é a sua e sim, do legislador, o qual, a princípio, representa a vontade do povo em geral. (LASMAR, 2009, P. 47)

Ao fazer, então, uma interpretação literal daquilo que está escrito, observa-se que o legislador apenas menciona que não haverá sucessão em casos de natureza tributária, ocorrendo, portanto em casos de natureza trabalhista.

Interpretação histórica. Leva em conta o momento histórico da criação da norma e o momento histórico da aplicação da mesma. A sociedade está em constante mudança e para tanto, as leis e suas devidas interpretações devem acompanhar estas mudanças. Assim, deve-se levar em conta o processo de formação da lei. No caso da lei nº 11.101/05, houve uma emenda (número 12) que propôs a alteração do parágrafo único do artigo 60, para que o arrematante não fosse responsabilizado por sucessões trabalhistas. Contudo, o parecer desfavorável atestou a intenção de proteger os direitos trabalhistas. Sendo assim, este silêncio do legislador atestaria a possibilidade de sucessão em casos de natureza trabalhista.

Interpretação lógico-sistemática. Seria uma espécie de comparação entre as leis dentro do ordenamento jurídico, levando-se em conta fatores como hierarquia e temporalidade. Neste caso, a Consolidação das Leis do Trabalho é enaltecida, por ser uma lei geral. Ponderando ainda, com o princípio in dubio pro operario, ou seja, maior garantia para o empregado. Ocorrendo, então, a sucessão em casos trabalhistas para favorecer o trabalhador (BRIGAGÃO, 2013).

Interpretação teleológica. Busca a finalidade, objetivo da norma. O artigo 47 da lei em questão deixa claro que o objetivo da recuperação judicial é de preserver a empresa. “Assim, por contribuir para a preservação da empresa, a exclusão da sucessão trabalhista na recuperação judicial encontra-se em perfeita harmonia com o texto constitucional” (LASMAR, 2009, P. 58).

Com estes métodos interpretativos, observa-se uma maior tendência para a ocorrência de sucessão trabalhista em casos de recuperação judicial. Mas, os tribunais têm tomado posicionamentos distintos e o próprio Supremo Tribunal Federal tem afastado a possibilidade de sucessão trabalhista, como mostra ADI nº 3.934-2-DF, com o Ministro Relator Ricardo Lewandowski. É possível, ainda, citar dois casos. Primeiramente o da VRG.

A Justiça do Trabalho tem reconhecido que os adquirentes de ativos de companhias em recuperação judicial não são responsáveis pelos débitos trabalhistas dessas empresas. Em julgamento recente, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) julgou que a VRG Linhas Aéreas - pertencente ao grupo Gol - não pode ser responsabilizada pelos débitos trabalhistas da antiga Varig (atual Flex). A VRG adquiriu a antiga Varig em leilão judicial em março de 2007. A Varig entrou em recuperação em junho de 2005 e em setembro do ano passado teve o processo encerrado pelo juiz Luiz Roberto Ayoub, da 1ª Vara Empresarial do Rio. As dívidas da companhia aérea, porém, ainda estão pendentes. No caso trabalhista, há diversas decisões que excluem a responsabilidade da VRG, tanto no Tribunal Superior do Trabalho (TST) como nos Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs). (AGUIAR, 2010)

Outro caso na jurisprudência, mais antigo, também pode ser citado, mas agora, favorável a sucessão trabalhista.

Sucessão Trabalhista. Configuração. Hipótese. O fato de o contrato de trabalho do reclamante ter findado antes da efetivação da sucessão não descaracteriza esta, pois, ao adquirir a unidade econômica jurídica, a empresa sucessora passou a ser responsável também pelos contratos laborais extintos. Dessa forma, responde o empreendimento, representado pelo sucessor, pelas dívidas trabalhistas oriundas dos contratos de trabalho findos ou vigentes à época da transferência da unidade produtiva. (TRT/MS – AP – 1111/2001 – 005-24-00-3- REL.: JUIZ NINCANOR DE ARAÚJO LIMA – DOE 31.10.2002. (BRIGAGÃO, 2013).

2.2) Qual seria o foro competente para julgamento do feito? Quais os sentidos apresentados pela doutrina para a referida expressão e consequentes efeitos práticos da adoção de cada um? Como os tribunais vêm se posicionando a respeito desse tema?

Quanto ao foro competente, o artigo 3º da Lei nº 11.101/05 afirma que será “o juízo do local do principal estabelecimento do devedor”. Mas, questiona-se qual seria o principal estabelecimento. Não significa necessariamente a matriz, ou sede prevista no contrato social da empresa. Segundo muitos doutrinadores como Rubens Requião e Oscar Barreto Filho, o principal estabelecimento seria a sede administrativa, onde as decisões são tomadas e onde há o maior número de negócios. “A identificação do principal estabelecimento estaria no lugar onde se corporifica a sede da liderança dos negócios do devedor comerciante” (MARCATO, 2012). 

É possível notar a existência de duas correntes para esta discussão. A primeira, já citada, seria no local de administração da empresa e maior numero de negócios, juntos. A segunda corrente afirma que o principal estabelecimento seria aquele com maior número de negócios, ou seja, leva-se em conta o quesito atividade econômica.

É preciso entender também qual é o posicionamento do Superior Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.

Perceba-se que tanto STF quanto STJ[…]definem como principal estabelecimento aquele que corresponda ao "centro vital das principais atividades do devedor". Contudo, nas discussões do qual seja esse dito "centro vital", a jurisprudência também se controverte: uns entendem que tal centro vital é onde fica a chefia da empresa, presumindo que aí é celebrada a maior parte dos negócios; outros, que é onde está o estabelecimento de maior relevância econômica, mas utilizando-se de critérios variados para estabelecer qual seja este estabelecimento mais relevante economicamente. (FERREIRA, 2005)

Gecivaldo Vasconcelos Ferreira, em seu artigo “A polêmica conceituação de principal estabelecimento para fins de falência e recuperação de empresas” defende o mesmo posicionamento do autor  Fábio Ulhoa Coelho - que o principal estabelecimento deve ser aquele “de maior importância do ponto de vista econômico”. Nesse mesmo sentido caminha a decisão do STJ no caso da empresa SHARP. 

Nesse julgado, outrossim, o Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, em seu voto-vista, com precisão, sintetizou a divergência central travada naquele julgamento (decidido por maior de votos) ao afirmar que: "No caso dos autos, a questão reside fundamentalmente em saber-se onde está o ‘corpo vivo’, o centro vital das principais atividades comerciais do devedor, se em Manaus, onde está localizado o parque industrial das empresas em exame, ou em São Paulo, local onde está o comando e administração delas". Defendeu o Ministro referido supra, que tal ‘corpo vivo’ estaria em São Paulo, pois lá se encontraria "[...] o maior volume de negócios, a centralização da influência econômica, a direção, o comando e a administração geral [...]". (FERREIRA, 2005)

[...]

Artigo completo: