Na legislação brasileira que trata da escravatura, três leis foram chamadas de abolicionistas, a saber: Ventre Livre, Sexagenários e Áurea. Embora fossem consideradas assim, não asseguraram em si o direito dos cativos. Indubitavelmente, foram cartadas legais dos conservadores no Parlamento para que o processo da Abolição fosse lento e gradativo. Elas só tentaram golpear e neutralizar as ações dos radicais, mas, felizmente, não conseguiram.
Antes de tratar das leis supracitadas, é importante apontar as duas correntes distintas do movimento abolicionista: os conservadores e os radicais-revolucionários. Aqueles, os dissidentes das oligarquias rurais e altos escalões da burocracia estatal, queriam "resolver" tudo no Parlamento. Estes, entretanto, a classe média urbana e os trabalhadores livres, articulavam uma ativa propaganda através da imprensa, utilizavam até métodos ilegais, como o patrocínio de fugas de escravos, porém envolvia o povo e a população escrava.
Os conservadores pouco se interessavam pela complexidade cultural dos escravos. Slenes (1995, p.23) esclarece que "para a elite branca a única identidade que podia ser forjada entre os africanos era a que surgisse a partir de sua condição de escravos, ou a que fosse baseada na ?barbárie? compartilhada de suas origens, era impensável que pudesse haver uma união entre cativos em torno de paradigmas culturais complexos". Enquanto isso, em meio a esta "ingenuidade", os negros moviam-se com uma desenvoltura ímpar e faziam-se mestres articulados para a própria defesa.
A primeira, chamada de Lei do Ventre Livre ou Lei Rio Branco, em homenagem ao Visconde, demorou quatro meses para que a Câmara e o Senado a aprovasse (maio a setembro). Ela considerava livre todos os filhos de escravas nascidos a partir de 28 de setembro de 1871. Com discurso ambíguo de tutela e metafórico para transformar os "ingênuos" em trabalhadores "livres" da mesma propriedade em que seus pais eram escravos (ZERO, 2010), foi uma pseudolibertação infantil.
A lei estabelecia duas possibilidades para as crianças que nasciam livres: ficar aos cuidados dos senhores dos seus pais até os 21 anos de idade ou entregues ao governo (ZERO, 2010). Claro que a primeira alternativa foi a mais comum já que beneficiaria os senhores que poderiam usar a mão de obra destes "livres" até os 21 anos de idade. Em nenhum momento, pensou-se num benefício para a maternidade desta escrava. Tudo para não causar impacto na economia escravagista.
Depois da aprovação desta lei que foi "apenas um sonho", a mortalidade infantil aumentou gradativamente. O descontentamento ocasionou um natural desinteresse por parte dos senhores sobre as crianças recém-nascidas. Vale ressaltar ainda que "esse período foi marcado por profundas transformações econômicas, sociais e políticas, que contribuíram para a construção da história da família negra e escrava, assim como da infância brasileira" (ZERO, 2010, p. 15).
Em 28 de setembro de 1885, foi sancionada a segunda, a Lei dos Sexagenários ou Saraiva-Cotegipe, nascida de um projeto de Rui Barbosa cujo nome fazia uma homenagem ao deputado santo-amarense José Antônio Saraiva, o Barão de Cotegipe. Ela previa a libertação dos escravos com mais de sessenta anos. Eles, entretanto, deveriam trabalhar mais cinco anos gratuitamente para o senhor a título de indenização.
Essa lei ? considerada como uma "brincadeira de mau gosto" já que a maioria dos cativos não tinha essa expectativa de sobrevida ? foi apenas mais uma solução paliativa que também não eliminava o cativeiro. Mais uma vez, os senhores foram beneficiários, porque estavam isentos de qualquer responsabilidade no tratamento dos escravos idosos e ainda ganhavam mais cinco anos de trabalho desses seus cativos.
Ainda assim, essa aprovação gerou um grande descontentamento por parte dos senhores que falsificaram, por ocasião do censo de 1872, a idade de seus escravos (HOLLANDA, 2000). Muitos declararam uma idade maior para os seus cativos contrabandeados para aparentar que eles tinham ingressado no país antes de 1831, quando houve a primeira lei acabando com o tráfico negreiro (a Eusébio de Queiroz). Assim, viram-se "obrigados" a "libertar" inúmeros cativos ainda robustos e jovens.
Para fechar com chave de ouro (literalmente!), sancionou-se a Lei Áurea a 13 de maio de 1888 que declarou aos 5% restante dos únicos cativos a "libertação". A grande maioria já estava liberta e essa farsa, na verdade, só serviu como estratégia para dar à população negra um respaldo jurídico de libertação (SANTOS, 2010). Essa lenda só corrobora para manter o protagonismo branco na história, deixando a realeza como redentora e bondosa.
Para Scwarcz (2007, p. 26), "distante da noção de revolução, nosso processo de libertação escravocrata era representado como pacífico, gradual e, sobretudo, como um ?presente dos senhores e do Estado?." Além disso, para essa falácia da historiografia brasileira ter um final feliz, cabia ainda aos libertos uma mostra de extrema gratidão aos seus benfeitores: manterem-se submissos, fiéis e obedientes nas fazendas. Ô dívida impagável...
Vale ainda destacar que, como as regras da sociedade escravocrata estavam concentradas inteiramente nas mãos dos senhores de escravos, muitos deles driblavam, escarneciam e até desobedeciam às leis supracitadas e faziam valer o seu poder. Quiseram até revogar a extinção dessa grave doença social... Enfim, o 14 de maio de 1888 já nascia clamando por equidade, não para corrigir o que era justo na lei, mas completar o que a justiça não alcançava (CARVALHO FILHO, 2003).

REFERÊNCIAS

CARVALHO FILHO, Milton Paulo. Indenização por Equidade no Novo Código Civil. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2003.

HOLLANDA, Sergio Buarque. O Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Bertrand, 2000.
SANTOS, Frei David. A face real da lei Áurea. Disponível em http://www.antroposmoderno.com/antro-articulo.php?id_articulo=312. Acesso em: 01 jul. 2010.
SLENES, Robert. Malungu, ngoma vem: África encoberta e descoberta no Brasil. In: Cadernos do Museu de Escravatura, Luanda, ano 1, n. 1, nov. 1995.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Dos males da dádiva: sobre as ambiguidades no processo da Abolição brasileira. In: Cunha, Olívia Maria Gomes da. GOMES, Flávio Santos (org.) Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil.Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007, p. 23-52.
ZERO, Arethuza. Ingênuos, libertos, órfãos e a lei do ventre livre. Disponível em http://www.abphe.org.br/congresso2003/Textos/Abphe_2003_76.pdf.
Acesso em: 28 jun. 2010.