JUSTIÇA E VINGANÇA NO DIREITO 

Violência como reparação da vida em comunidade a partir da obra Crônica de Uma Morte Anunciada 

 

 

Helio Negreiros Penteado Filho

AnaClara Valentim

Filosofia do Direito – Justiça e Vingança

 

  

RESUMO: O texto apresenta uma construção descritiva histórica das narrativas sobre direito a partir da noção e diferenciação entre justiça e vingança. Uma das obra de Gabriel Garcia Márquez é utilizada para caracterizar um universo histórico contemporâneo do tema e as singularidades de cada personagem como símbolos do senso comum acerca do tema. A problematização é como as potências da justiça e da vingança se nos apresentam e nos afetam. Existe então uma violência permitida e regulada na sociedade moderna?

Palavras-chave: violência; justiça; vingança; direito; filosofia.

 

 

 

ABSTRACT: This paper presents an analytical and descriptive historical perspective of a construction about legal and law based in the notion and differentiation between justice and revenge. One of Gabriel García Márquez's works is used to characterize a contemporary “historical universe” of the theme and its singularities in each character as symbols of common sense about it. The problematization is how the powers of justice (Public or not)  and revenge (public or not) are presented to us and affect us. Is there a permissible and regulated violence in modern society?

 

Sumário

Introdução.. 3

1.     Ciência Moderna. 6

2.     Da Obra de Garcia Márquez. 8

a.     Enredo. 8

b.      Narrativa e estilo do autor. 9

c.      Personagens principais 11

d.     Debates. 13

e.      Personagens Femininos 14

3.     Sobre o tema Justiça. 14

a.     Deusa Grega THEMIS. 15

b.      Vingança de sangue. 18

c.      Kolasis e Timoria em Aristóteles. 19

d.     Deusa Grega DIKÉ: 21

e.      Paradoxo. 22

f.      Notas Finais. 24

REFERENCIAS. 25

 

 

 

 

 

JUSTIÇA E VINGANÇA NO DIREITO

 

Violência como reparação da vida em comunidade 

 

Introdução

 

           

A ciência moderna, como paradigma racional do conhecimento, removeu a possibilidade de encontro entre o ser humano e o mundo que sentimos. Daí a expressiva abertura trazida por Edmund Husserl[1]  de “voltar às coisas mesmas” - um apelo filosófico da fenomenologia  - que invoca, aqui, um olhar para a história em estado renascente. Entender o direito e seus corolários justiça e vingança exige, por isso, uma volta à coisa chamada de apocripho (do grego “apo”= emanação, e kryphos = secreto). Um dos caminhos para buscar esse secreto, essa essência escondida, é a arte, que pode nos direcionar às descrições, interpretações e ao imanente das coisas mesmas. Eis um dos papéis da literatura que nos traz o relato mítico dos gregos de outrora - um olhar para a profundeza da alma. Para, por meio dessas explicações do mundo, nos possibilitar enxergarmos melhor a superfície das coisas que aparecem e como aparecem. A proposta aqui, então, é partir da obscuridade única, íntima e incomunicável dos segredos do coração humano para a formulação das regras sociais de conduta da forma como são vistas pelo senso comum jurídico e não jurídico.

 

Para atingir essa intimidade é preciso criar uma nova forma de chegar ao ontos, à essência da coisa, através da ontologia[2] do direito partindo já do ponto que ela nunca se positiva, diferente do que propôs Kelsen em sua teoria pura do direito que é um teoria do direito positivo, mas procurando descrever o que essa noção de direito é, entender essa história e metafísica do direito e principalmente como ele se dá na vida das pessoas, ou seja, uma ontologia do imanente e do transcendente do direito.  Trata-se de matéria irredutivelmente apócrifa, oculta, um castelo onde o homem não pode entrar como nos  colocou Kafka, onde a conduta humana descrita e regulada está numa dicotomia entre o mundo ideal, das ideias, do que deve ser, e a realização da conduta no mundo observável e sentido por nossos sentidos, mundo do ser aqui nesse momento nessa dobra de espaço tempo, o mundo do vir a ser, do devir.

 

Nesse texto para um seminário sobre Corpo e Violência, abordo, em especial, a violência social do direito e trago o tema da Justiça e da Vingança que se estranham mas se integram, desde as condutas mais simples no seio da família, o direito perpassa as regras e obrigações jurídicas e alcança as relações internacionais entre países e cidadãos do mundo. Para descrevermos o fenômeno da justiça e o da vingança e como isso ocorre em um romance, partiremos da ciência moderna do Direito, mas antes de tudo, reconhecemos que anterior à pergunta primeira – que é isso, o Direito? precisamos entender e delimitar a capacidade de conhecimento humano e como se dá essa transferência de conhecimento que é criadora de mundos.

 

Para Nietzsche, em sua Genealogia, o ser humano sai da condição de animal em matilha e passa a ser humano através da convivência com outros estruturada numa matriz econômica jurídica, é o sistema de troca de coisas que gera a memória para o devedor de algo devido, a memória faz do animal homem um ser humano. Ao mesmo tempo, obrigar-se em relação a outro ser humano gera a noção de poder, de dever algo, uma tonalidade afetiva do ressentido que não consegue esquecer. Essa memória em Nietzsche é exatamente o momento em que o animal homem se faz um zoon politikon – um animal político.

 

Aqui, enfrento o desafio duplo, de um lado reconhecer que a perspectiva do Direito Positivo normativo, na experiência humana, é incapaz de lidar com questões mais próximas e mais profundas, questões anteriores e mais persistentes que a teoria da norma e do ordenamento jurídico e de outro que a própria construção do direito como ciência esquece que se trata de um fenômeno, de um ente como todos os outros, uma “coisa do mundo” – mundo aqui como horizonte de possibilidades que a cada vez se apresenta, que regra o modo de vida dos seres do mundo. Algumas questões que voltam para a história não como conhecimento científico herdado do Iluminismo, mas como questionamento interno do próprio ser, da existência, da essência da constituição mesma desse ser e constituída por ele.

 

Assim, voltamos ao “apócrifo”, como coloca o professor Tércio Sampaio Ferraz[3], no sentido de falso, enganador, melhor ainda no sentido de segredo, do oculto. Aqui a filosofia do direito, em especial a fenomenologia, tem a intenção de procurar o sentido próprio das coisas, revelar ou mostrar caminhos que revelem esse segredo da essência, trazer luz nessa escura área que oculta a essência da coisa. Revelar esse segredo, analisando as manifestações humanas sobre justiça no tempo e descrever o direito pela ocorrência nessas relações humanas, nos valores de cada tempo e cultura, nos princípios erigidos nas diferentes épocas como matriz de conhecimento e nas leis, vistas de fora como o direito posto é um caminho por demais vasto. Assim, tomaremos como fonte de interpretação e descrição do justo a arte escrita, a literatura em momentos diversos do homem, da Grécia antiga dos mitos e deuses até o momento presente através de uma interessante narrativa de Gabriel Garcia Márquez.

 

 

1.Ciência Moderna

 

A ciência moderna removeu o encontro do ser humano com a realidade do mundo, em nossa modernidade ocidental laica, extremamente cientificista, que demanda uma elaboração de uma teoria, da mesma forma laica e científica para tudo, propôs-se a resolver também o todo do mundo. Investida essa que surgiu a partir da crise existencial do séc. XVI , onde o homem deixou de ser o protagonista da cena universal. A Era da Razão, o Iluminismo, pós crise existencial dos séculos XVI e XVII, trouxe a época das ciências com apanágio das soluções últimas para o ser humano e assim também a cientificidade do Direito, que buscou suas raízes na teoria das fontes de Savigny e sua própria formação, existência e certezas, a partir do discurso científico sistematizado por Descartes. Friedrich Carl von Savigny[4], expoente da Escola Histórica do Direito, alinhado com esse cientificismo da época, propunha o estudo e a aplicação do direito através de um método científico próprio, ou seja, observação dos fatos jurídicos, a formulação de uma hipótese da origem do direito, a experimentação dessa hipótese, a interpretação dos resultados de uma fonte do direito romana arcaica aplicada na vida moderna, em especial germânica.

 

Como toda ciência moderna, também a ciência do direito não responde todas as questões sobre o que é o justo, um fenômeno quase desconhecido. A teoria da norma e do ordenamento jurídico que fundamentou por muito tempo o Direito e a Justiça, mostraram-se incapazes de lidar com a questão do que é, na vida prática, a justiça. Em um movimento para teorizar esse sentimento humano sobre o que é fazer a coisa certa, as teorias são muitas - de Sócrates a Amartya Sem, da perdição e decadência do homem de Rousseau até a salvação cristã de Habbermas, dos pós-estruturalistas como Foucault, Agambem e Derridá, mas aqui trago também a arte, a técnica, a inspiração, a religião, a história mítica e muitos outros caminhos que também podem desvendar essa ontologia. A literatura pode descortinar caminhos que traçaremos aqui e um dos aliados à arte de escrever é a filosofia, mais especificamente o caminho da redução fenomenológica proposta por Husserl e seu método de voltar às coisas mesmas.

 

Nesse mundo moderno não buscamos na verdade o sentido das coisas, ao contrário, fugimos desse mistério, dessa busca, não buscamos mais o oráculo para nos orientar e a “sombra do Budha” ainda está em nossos sentidos mas optamos pela crença cega na ciência e em seus dogmas de racionalização que nos dirige de forma soberana e tirânica, e não vemos as coisas mesmas, senão através de pressupostos e hipóteses em comprovação metodológica científica racional que sedimentam uma pré concepção de todas as coisas do mundo.  A proposta aqui, então, é desvendar essa “apocrifia” – com a ideia de penetrar no sentido, no mistério nesse não desvelado, desse “a/pócrifo”, ou melhor trabalhando com seu oposto, atuando em “aletéia”, no sentido de descobrir o encoberto, desvendar a verdade, a essência, suspendendo temporariamente as nossas verdades e conceitos pré organizados da coisa chamada justiça.

 

Desse secreto, que esconde a natureza, a essência, de onde se manifesta esse Krypthos do Apócrifo, dessa krypta, desse lugar secreto surgem manifestações que não se revelam em seu todo. A partir da descrição da coisa, observamos algumas de suas manifestações e assim tomamos conta de um possível caminho de descoberta desse ente - a justiça - para voltar às coisas mesmas e iluminá-las, descobrindo, desvelando um pouco mais sobre os caminhos para esse entendimento. Nesse caminho, especificamente nesse seminário, a arte poderá ser um guia, nosso instrumento e meio para desvendar que é isso – a Justiça. Arte na literatura e na expressão de Gabriel García Márquez[5] na obra “Crônica de uma Morte Anunciada”.

 

 

2.Da Obra de Garcia Márquez

 

Crônica de uma Morte Anunciada foi escrita por Gabriel Garcia Márquez em 1981, um romance que usa linguagem jornalística, de caráter investigativo, para reconstituir de forma detalhada e em relato de primeira pessoa um assassinato ocorrido em uma pequena comunidade no Caribe Colombiano.

 

 

a.Enredo

 

Um homem descobre que a mulher com quem acaba de casar não é mais virgem e, desgraçado pela descoberta, ele a devolve à casa de seus pais e todos sofrem com a vergonha. Nesse contexto, desencadeiam-se uma série de eventos que, poucas horas depois, resultarão no assassinato perpetrado pelos irmãos gêmeos da noiva para "recuperar" a honra da família e da irmã violada. Esses dois irmãos decidem matar a facadas aquela pessoa, indicada pela noiva como autor da desonra, e divulgam suas intenções já de início a todos que encontram pelo pequeno povoado caribenho onde vivem. Isso soa um tanto antigo testamento e as disputas pela honra dos séculos passados, e é nesse cenário cultural que somos inseridos por Gabriel Garcia Márquez, onde a morte de um homem devolve a honra tomada pela desonra da cópula pré-nupcial.

 

A narrativa feita pelo personagem que reorganiza, muito tempo depois,  sua memória de fatos ocorridos, envolve e surpreende o leitor pelo modo como é descrito um crime que foi tantas vezes anunciado pelos próprios autores, em público, e na constante presença de todo o povoado e não foi evitado. É um misto de ficção e de autobiografia pois o autor realmente morou em um povoado e viveu fatos semelhantes envolvendo amigos e família[6].

 

A obra de García Márquez sempre questiona certezas, autoridade, preconceito, hierarquia, homogeneidade, honra e morte, e, aqui em especial, nosso foco – questiona a justiça, vingança e relações de vingança na justiça e de justiça (ou injustiça) na vingança. Nessa obra a linguagem objetiva, simples e concisa, constrói uma narrativa de cronologia bem marcada de vários episódios que, apoiados no tempo cronológico, estruturam-se para o desfecho final fechando o ciclo entre a acusação de desonra, a premeditação e atos preparatórios, a divulgação até a consumação do crime.

 

As questões referentes à sexualidade, desigualdade, responsabilidade social, ciência, religião, e relação da honra com a vingança, são todas levantadas e dirigidas ao leitor moderno e às convenções sociais e literárias do contexto histórico da obra. Em sua relação com o leitor, o romance contemporâneo, diferente das tragédias gregas, não é ideológico, não procura, por meio do veículo da ficção, persuadir o leitor quanto à correção de conduta ou convencê-lo de uma forma específica de interpretar o mundo. Antes, faz com que seu leitor questione suas próprias interpretações e, por implicação, as interpretações dos outros, apresentando uma polifonia de vários discursos.

 

 

b.Narrativa e estilo do autor

 

            Trama - Ângela Vicário, a noiva, casa com Bayardo San Román, o noivo forasteiro que exibe arrogantemente o seu poder econômico, e é devolvida logo após a noite de núpcias, depois de ter o noivo constado que Ângela já não era virgem. Pressionada pela família, a jovem denuncia Santiago Nasar como autor da desonra pela “defloração”. Os gêmeos, irmão da ofendida, impelidos pela mentalidade dominante típica da sociedade machista patriarcal, e pressionados pela moral e pela matriarca da família Vicário que se diz incapaz de aguentar o escárnio motivado pela honra manchada, sentem-se compelidos a matar o "infame", apesar da pouca vontade em fazê-lo.

 

Na realidade, os irmãos de Ângela Vicário (“os gêmeos”), fazem tudo para dar a entender as suas intenções declaradas, talvez com o objetivo de que alguém os impeça e proporcione a Santiago Nasar a oportunidade para escapar a uma morte mais do que anunciada. Apesar de todos os indícios serem facultados no sentido de evitar a morte de Santiago Nasar, o acesso à informação é bloqueado por uma série de imprevistos, contratempos e caprichos do destino. A morte de Santiago, apesar de apregoadíssima, não é levada a sério pela maior parte das pessoas envolvidas que poderiam tê-la evitado, ou é tida como merecida por alguns personagens.

 

            O romance se inicia pelo final, o assassinato já se consumou, e por meio de testemunhos diversos em tempos diferentes e desencontrados, o personagem narrador descreve o porquê e o como a vítima Santiago foi morto. O narrador afirma que voltava ao povoado em que vivera para reconstruir os fatos tão confusos como um quebra-cabeça, com o objetivo de “...recompor o espelho quebrado da memória.”

 

“No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 05h30m da manhã para esperar o navio em que chegaria o bispo.”

 

 

            A técnica discursiva utilizada na obra já mostra a necessidade de recolher as memórias do fato, as pessoais e a de testemunhas, talvez da forma mais objetiva possível, em estilo jornalístico, cujo elemento temporal – a passagem do tempo – é o elemento fundamental para alinhavar todos os pedaços soltos da memória. O tempo é fator tão indissociável que o ator o determina precisamente já logo no início da obra – levantou-se as 05h30m.

 

            A objetividade da narrativa é identificada pela precisão dos horários assinalados na reconstituição dos fatos, onde o narrador refaz a linha de tempo como parâmetro da reconstrução das memórias. Aqui o tempo é Cronos o devorador, irreversível e fatal. A irreversibilidade da passagem do tempo acompanha a fatalidade do crime. O relato então se inicia às 05h30 da manhã e segue até as 07h05 momento da morte de Santiago.

 

 

            Uma das técnicas de Garcia Márquez é colocar o povoado sem centro nem periferia, tudo é um labirinto de passagens, substituindo a noção espacial organizada do leitor sobre o local pela confusão geográfica. Tal qual o direito para o homem comum, um labirinto de regras e decisões. Aliado à topografia confusa, fatos carnavalescos perturbam a linearidade da narrativa como o “grande casamento”, as “festas do casamento” e a “grande festa da chega do bispo” no dia seguinte, tudo pautado pelo anúncio público da morte de Santiago desde muito cedo naquele dia.

           

 

c.Personagens principais

 

Santiago Nasar, o protagonista, é filho de um rico emigrante árabe. Sedutor, culto, adepto da caça de altanaria, é apreciador de cavalos, armas e, claro, aves de presa. Já na aparência, Nasar assume o aspecto físico muito semelhante ao do autor – “... vestia um fato de linho lavado só com água por não suportar o estalar da goma em contato com a pele, cabelos crespos e pálpebras árabes...”. Mas o que mais impressiona nesta personagem é a sua extrema solidão, característica comum a todos os heróis da ficção de García Márquez.

 

Santiago, a vítima anunciada, apesar de sociável, tem poucos amigos mas um considerável número de pessoas que o estimam, pauta sua conduta por uma quase que excessiva reserva, e é precisamente esta característica o torna vulnerável e faz com que passe ao lado de todas as tentativas levadas a cabo pelos outros para impedirem a sua morte: o seu alheamento, por um lado, e a indiferença dos menos íntimos, a quem os mais chegados delegaram alguma tarefa no sentido de lhe fazerem chegar a informação.

 

Bayardo San Román, o anti-herói, é uma personagem que, desde o início, desperta a desconfiança de todos. Forasteiro e com um passado nebuloso envolto em mistério, provoca a curiosidade da população local e suscita a proliferação dos mais extravagantes boatos. Tem um aspecto algo efeminado, devido às roupas que usa – sempre muito justas e num tom amarelado. Os olhos são dourados (vulgaridade e corrupção por associar ao ouro) que denotam o desejo de ostentação por um lado e a avareza pelo outro. O seu comportamento extravagante na forma como exibe o poder de compra conquista a família de Ângela Vicário – família que vê nele uma porta de saída de uma vida pautada pela escassez de recursos.

 

Curiosamente, Bayardo é o filho de Petrônio San Román, o general conservador que derrotou o coronel Aureliano Buendía e disparou pelas costas contra Gerineldo Márquez em Cem Anos de Solidão – o que lhe dá uma forte impopularidade quando da sua entrada na cidade.

 

Os assassinos vingadores, os gêmeos Pedro e Pablo Vicário, segundo a opinião geral tinham “má catadura”, mas eram de boa índole. Pedro e Pablo são os filhos típicos de uma sociedade onde os rapazes são criados para serem homens e as filhas educadas para casar e serem submissas.

 

A noiva, Ângela Vicário, a mais nova e bela das quatro irmãs de Pedro e Pablo Vicário, é uma personagem em transformação. Inicialmente tida como bela e “estúpida”, até pelo próprio Santiago, a sua personalidade vai se afirmando à medida que amadurece, rebelando-se contra o comportamento ditatorial e repressor da mãe que a obriga a vestir de vermelho logo após a morte de Santiago Nasar para que não pensassem que estaria de luto pelo amante morto.

 

Ângela, durante a obra toda, luta persistentemente pela sua paixão pelo marido, enviando-lhe cartas semanais declarando seu amor, apesar da violência com que foi por ele tratada, tecendo, ao longo dos anos, um relacionamento com base na paciência, esperança e fé, na ação do tempo que cura feridas, e, talvez, na erosão e sublimação do rancor de Bayardo. Ângela pode até ser comparada ao arquétipo de Penélope da Odisseia de Homero.

 

A cozinheira de Santiago Nasar, Victoria Guzmán, vê na intenção dos irmãos Vicário a oportunidade de se vingar dos rancores acumulados do passado e eliminar a ameaça à possibilidade da filha fazer um bom casamento, evitando-lhe um destino semelhante ao de Ângela Vicário. Victoria poderia ter prevenido Santiago e não o fez.

 

O povoado - Na verdade, todas as personagens poderiam ter, efetivamente, feito alguma coisa para evitar a morte de Santiago, mas a maior parte tinha coisas mais importantes para fazer ou estavam, simplesmente, decididas a minimizar a capacidade dos irmãos Vicário em executar a vingança.

 

 

d.Debates

 

Em Crônica de uma morte anunciada a narrativa reconstrói a atmosfera medieval dos julgamentos públicos e mais uma vez, as mulheres movimentam o destino da personagem principal. Sobretudo Clotilde Armenta (dona da venda) e Victoria Gúzman (cozinheira), uma como aliada e a outra como adversária e mais uma vez Garcia Márquez traz os temas da honra e vingança de sangue, virgindade e casamento, em especial em um universo rústico do pequeno povoado de valores sociais fortemente instituídos.

 

A vítima, Santiago, era amigo de infância e juventude do narrador que segundo seu próprio entendimento, se deixou matar ou porque se atordoara com avisos desencontrados da população local, por descuido ou mesmo por inocência. A Trama apresentada em várias versões dialógicas da realidade deixa ao leitor a decisão de quem é herói e quem é o bandido e nem o narrador é confiável na restituição de suas lembranças. Aqui a questão da culpa da morte pode ser remetida apenas aos executores, mas também a todo o povoado que resignado, assiste impassível a toda a sequência de atos e fatos que terminarão no assassinato de Santiago na porta de sua casa.

 

 

 

 

e.Personagens Femininos

 

A mulher, ou melhor, as personagens femininas frente a um mundo masculino machista, patriarcal de povoado colonizado caribenho, fazem o contraponto da sociedade “coronelista”. A ideia de lavar o honra com sangue, de justiça dos homens, é questionada pelo lado do feminino na obra - uma “mulher” a todo momento questiona esses conceitos trazendo a ideia de justiça equitativa, ao passo que uma “outra mulher” exige a correção do estrago feito na sociedade invocando a vingança.

 

A mãe do narrador e Clotilde Armenta, dona da leiteria do povoado, onde as pessoas se reuniam pra prosear,  é figura de equilíbrio familiar, ligadas ao leite, à condição de mãe, ao materno – tinha o poder de organizar a família, perceber as contradições existentes no mundo masculino e denunciá-las e corrigi-las, na medida do possível. Ao mesmo tempo que mulheres “outras” (machistas patriarcais[7]) como Prudência Cotes mãe da noiva e dos gêmeos Vicário, a matriarca Vicário, espera dos gêmeos um atitude digna de homem – ou seja – vingança de sangue.

 

A cozinheira de Santiago, Victoria Gúzman, em certa altura da trama, omite a informação que os gêmeos estavam clamando a todos que iam se vingar, por uma vingança própria e pelo medo constante que tinha do patrão aproveitar-se de sua filha menor de idade.

 

 

3.Sobre o tema Justiça

 

            Nosso caminho para desvendar a essência escondida da Justiça, de traçar linhas para nos aproximar da questão: que é isso – a justiça? – segue a história mítica, o caminho da narração, do mito, o caminho da deusa romana Justitia que teve sua origem em duas outras deusas gregas: Themis e Diké, telúricas, deusas que vivem na terra e aqui acontecem. Em um brevíssimo resumo das origens mitológicas, expomos aqui algumas características que cada uma delas têm e como se manifestam, a seguir.

 

 

a.Deusa Grega THEMIS

 

Deusa da justiça sob a forma da vingança. Essa é a Justiça (vingança) no núcleo familiar, tocante à família, ao grupo, a justiça da máfia. Do grego “thesmoi”, “nomoi”, norma como conselhos, thesmoi como mistério, mistério da punição como compensação e indenização para a purificação de dívida de sangue, de lavar a honra com sangue. Essa é a justiça corretiva de Aristóteles na mensuração, a pena aqui atua como correção, como reajuste de conduta, reeducação, onde a mensuração não é tão simples.

 

O mundo de Themis é o mundo familiar, lugar privilegiado do terror ético íntimo, cujo centro do sistema de referência é o círculo da família e nele, a figura do pai, o macho alfa, com a forte presença de uma agregação natural marcada pela desigualdade, de onde parte a punição maior como rejeição. O fato de ser deixado ao abandono, ser repudiado e condenado pelos seus é pior forma de punir. Qualificamos esse direito com uma espécie de esfera mítica em torno da deusa grega Themis,  com um mundo peculiar, um mundo em que as coisas são vistas pra dentro, um mundo onde a noção de sentimento de solidariedade é muito forte. O protótipo desse mundo é a família, o interno, o para dentro, a solidariedade entre a família, portanto qualquer violação dessa solidariedade provoca uma reação muito forte. Até quando ela vem de outra família que vem de fora portanto, e mesmo quando vem de dentro mesmo.

 

Essa esfera do meio familiar, esfera íntima, sagrada, idolatrada,  é uma espécie de tradição mítica, esse mundo é simultaneamente um lugar de segurança, de paz e tranquilidade mas ao mesmo tempo as divisões que separam um do doutro é marcado por uma espécie de um terror localizado na noção de intocável, de intocabilidade, não se pode mexer. O incesto, primeira forma de regramento social conhecida, a  ideia do parricídio, do fratricídio é uma ideia muito forte nesse sentido, no irmão a irmã não toca, não se toca na mãe, não se toca no pai. O curioso é que nessa estrutura de poder familiar e intimidade são todos solidários, ligados, mas ao mesmo tempo intocáveis, numa estrutura muito peculiar e por isso mesmo muito difícil de racionalizar.

 

A Justiça como retribuição, que se paga com algo sagrado (intocável), é o pagamento em sacrifício da ovelha sacrificada no fogo, uma Justiça que foge da racionalização, escapa da aritmética da medida suficiente. Trata do julgamento de sangue, do pagamento de uma dívida de sangue, da proteção da família, dos irmãos de sangue que exercitam a justiça lavando o crime com sangue. Aqui aparece claramente o sentido da “vingança de sangue” que se perpetua em gerações, o dever familiar das sociedades helênicas, o juramento ou pacto de sangue, o direito natural onde as infrações são sacrilégios, traições irreparáveis ao patrimônio do grupo, da família, da congregação.

 

Em Thêmis, deusa grega da Justiça significando a virtude, nessa ideia de justo virtuoso, o forte é a noção de desigualdade cuja maior punição é o abandono, o repúdio do criminoso, o excomungado, desnaturado, deserdado e descriminado no sentido de descrimen, separado da solidariedade íntima, o excomungado.

 

As grandes infrações a Themis são marcadas pelo medo difuso onde a angústia prevalece, como é o caso dos sacrilégios em geral, isto é, a ofensa aos valores sagrados, intocáveis, religiosos como patrimônio invisível do grupo, dominado por um temor a um ser superior intangível; mais particularmente, isso se percebe na traição, no assassinato de um parente (parricídio, matricídio, fratricídio, infanticídio), na transgressão sexual (incesto, estupro, adultério), em que estão presentes as angústias edipianas. Mas, em tudo, a marca do discrimen (no sentido de separar, separação) e a proibição de sua violação conferem ao sistema o seu perfil orgânico como em Totem e Tabu.  Interessante observar, nesse sentido, que o fulcro de uma infração está em “tocar o que é proibido” . Note-se, porém, que, nessa lista arcaica, a propriedade (domus, dominium, dominus) é, em geral, coletivamente familiar, por isso o roubo, o furto não entra nesse rol. Sugestiva, nesse sentido, a observação de Julius Cesar em De bello gallico (VI,23) a propósito dos povos germânicos onde explica que a “rapina” não provoca nenhuma desonra, desde que ela seja exercida fora do território da “civitas”, ou seja, fora da civilização e dos costumes, na natureza selvagem.

 

Esse mundo é um mundo em que as desigualdades são marcadas nitidamente, digamos assim: cada um cada um, singularmente, ou seja,  ele próprio e ao mesmo tempo estão solidariamente juntos mas não se igualam nunca. Nem mesmo um irmão é igual ao outro irmão. O fator tempo altera o fator espaço, nesse sentido, aquele que vem antes é o primogênito com todos os seus privilégios. Nessa situação o que marca a solidariedade para a diferença não tem conexão, a priori, com bens externos, assim como a noção de propriedade como conhecemos hoje, lá na Grécia antiga, não era forte e talvez tenha alguma explicação pela antiga noção romana de domínio, palavra que vem de dominus e tem origem em domus = casa. Obviamente o domínio tomou esse sentido de se ter algo para si, para o indivíduo, separado da comunidade. Mas nesse sentido primitivo que ressaltamos, a propriedade não é realmente o que marca ou que destaca e para que possamos entender as divisões, a propriedade não é relevante nesses termos, e  por isso mesmo não tem relação direta em termos de estrutura de solidariedade comum.

 

Isso advém do fato de que nem a propriedade nem a riqueza marcam a diferença no Império Romano, onde um escravo por vezes tinha uma quantidade de ouro e mercadorias muito maior que seu dono. Aqui, onde a punição maior é o banimento, o abandono a uma vida solitária, uma espécie de excomunhão e maldição, a solidariedade e a convivência como comum vivência é o mais importante. A pena mais grave nesse tempo era o repúdio e a execração. Nesse universo de Themis, é o metabolismo da vida que marca as diferenças ou seja, procriar, criar, alimentar, ser pai, mãe, homem, mulher, filho, irmão, servo, escravo todos compartilhavam um núcleo íntimo familiar, unidos pela aliança de sangue.

 

A pena aqui era o banimento, e era a forma mais cruel de punição, pois significava a expulsão do indivíduo para um mundo que o ignora (desconfirmação do ser). Do exílio, pura e simplesmente,  a pena evolui e chega nos rituais das ordálias da Idade Media, a Justiça de Deus para com seus filhos, levadas à cabo pelos seus próprios irmãos, que pertencem à justiça interna do grupo então entendido como a sacra família. Para os súditos de um senhor rei divino, jogar alguém do alto de um penhasco e entrega-lo à sorte divina era justiça na medida em que a verdade aconteceria. Uma intervenção divina explicaria e traria a tão aclamada justiça. Apesar de agora um único deus ocupar o centro e a medida das coisas, que julgará os vivos e os mortos, segue ainda na mesma linha de ideias do sagrado, do separado, o culpado ainda é um maldito, que não se deve tocar para não se manchar. Daí a lapidação, forma de punição que evita o contato com esse maldito. Essa forma de punir tem o sentido de uma devotio (devotare como entregar – vovere), uma reação forte à infração consistente em tocar o que é proibido.

 

 

b.Vingança de sangue

 

A vingança com o sangue derramado do violador, que estimula a reação contrária, surge como resultado de uma proximidade proibida e quando vem à cabo, lava as manchas morais e sociais da família ofendida, fenômeno que se conserva até os dias de hoje. A vingança tem ligação com uma expectativa de destruição total, cabal, até sua satisfação plena, que alcança inclusive as punições póstumas - recusar os funerais na tragédia de Antígona, o enterro ou as exéquias, ou condenar o maldito a errar nas trevas, como se vê com Aquiles, ao abandonar o cadáver de Heitor aos animais - ca-da-ver: carnis datum vermis, “tu vais pagar o irmão que me mataste” mas sendo, por sua vez, condenado pelos deuses ao receber a flechada no calcanhar – Ilíada, XXIV, 31-140. Pode-se até pensar aqui em retribuição – retaliação, de Talião, tal e qual – mas é muito mais forte, pois atinge o horror implacável de Themis.

 

A origem da vingança não é bem uma punição cujo sentido ficou obscurecido pela proximidade com as punições executadas por ordem de um soberano. Na verdade, ela é uma reação a uma mancha intolerável que cobre todo o grupo, origem da exaltação do herói e o caráter de reparação que tem a morte do culpado, essa, não necessariamente pública, como se vê nas sociedades modernas do inicio do iluminismo,  pela morte em nome da honra em duelos e linchamentos, onde sempre o desonrado exige uma reação forte e se não o faz incorre em um descrédito ilimitado, uma morte ética, se não se vinga.

 

Na vingança, e isso é interessante do ponto de vista dos pólos da realação, o ofensor ocupa um papel secundário: o papel primário cabe ao ofendido. É precisamente o ofendido que, na estrutura da vingança, exige a reparação cabal, de sangue, essencial. Nessa estrutura, não importa tanto o que fez o ofensor, que pode, inclusive, ter agido até de forma honrosa como na legítima defesa. Aqui, no direito de Themis, a carga da vingança repousa no ofendido e esse dado quase desaparece no curso da história com a invenção do Estado e o monopólio da força, fazendo da vingança algo “inútil”, mascarando essa sensação de que é o Estado que, afinal, parece frágil ou inexistente, quando não cumpre o papel do ofendido na estrutura vingativa (lembrar do linchamento, por exemplo). 

 

 

c.Kolasis e Timoria em Aristóteles

 

Aqui se descreve e entende-se que a vingança não seja, propriamente, uma pena imposta ao ofensor, mas uma espécie de restauração da situação em sua plenitude original. Nesse sentido Aristóteles[8] distingue entre kolasis, pena cuja finalidade é voltada para o paciente da punição, e a timoria, que se exerce em vista da restauração da plenitude. O grego timorós (o vingador) é aquele que vela (orán, olhar, velar) pela timé (a honra). Por isso o vingador evoca certa solidariedade familiar. Lembramos que a palavra vindex, vem de vindicare: vingar e vindicar, que substituiu ultor, de origem desconhecida, que restou na expressão insultus in – sem – ultor- defensor,  daí a ofensa, o insultar. O timorós, que designava, primitivamente, aquele que que vem em proteção de um devedor, faz desse vindex  algo a ver com a solidariedade familiar mais do que alguém que pune no sentido de impor uma pena. Isso nos traz a ideia de que a vingança tende a ser uma espécie de “contabilidade”, de exigir as contas, por assim dizer, mas isso não significa que aqueles que pedem as contas as calculem da mesma maneira. Há um particularismo dentro da estrutura da vingança que nos impede de, em outras palavras, racionalizar completamente a vingança, o que, ao contrário, conseguimos no plano da justiça desde a antiguidade: justiça comutativa, justiça distributiva, justiça-equidade, justiça legal, justiça universal – essas classificações no âmbito da justiça são bastante conhecidas, são formas de se racionalizar alguma estrutura; na vingança temos bons exemplos, mas não temos propriamente classificações, o que não deixa de ser uma forma de diferenciar justiça de vingança.

 

Não se vingar em Themis é morrer socialmente, é uma morte ética, a figura central em Themis é o ofendido que tem a necessidade de reparação. E a resposta do ofendido ou do vingador é o foco da reparação, é o mais importante para restabelecer o equilíbrio, a solidariedade familiar, restabelecer a sagrada unidade do grupo. Mas medir essa satisfação é difícil, ela tende a não ser satisfeita, como mensurar o resgate da honra? E ponto fundamental aqui é que a vingança repercute. Talvez o capitalismo tenha sido a solução de “dikeizar” a Themis no mundo moderno, ao invés da retaliação a composição pecuniária como na roma antiga ou em tribos africanas, como nas “Institutas” onde a aceitação do resgate era a negação da vingança.

 

 

 

 

 

 

d.Deusa Grega DIKÉ:

 

Aqui traremos a Justiça como sentido do justo, do grego “dikaos” - justiça como equilíbrio ou retribuição, justiça da polis, do estado da Nação como um todo organizado político -  como traz Aristóteles na geometria da proporção, a solução por meio da proporcionalidade em cada caso concreto. Justiça como aquilo que se se retribui em face de algo (e suas quatro possibilidades: Poiné, Timoria, Holasis e Zenia), trata de uma solução para equilibrar as partes. Aqui o foco é outro, é uma Justiça que foca no ofensor numa reparação finita, limitada, mesurável. Medir essa retribuição é por um fim ao processo de retribuição no tempo, alcançar uma homeostase.

 

A Diké é o computável, o comutativo, é a balança de dois pratos. Talvez possamos dizer que o que ocorre nesse momento é que a balança de Thêmis é a balança do pondus, de um prato só, a balança do julgador propriamente, aquele que assume o seu critério  julgando os outros. Essa é a balança forte da figura da Thêmis. Em Diké não, pois ela é a do equilíbrio, fica de fora e fica olhando os fenômenos de forma a equilibrar. E age ao contrário de Themis, age pela proibição de extrapolar para além do culpado a pena, em não atingir outros, nesse ponto elas são bastante diferentes. Mas essas diferenças, no entanto, mostram como vingança e justiça, na composição da nossa percepção do que é justo, acabam gerando um outro problema, que é o problema do auto-equilíbrio, das instituições se equilibrarem. Talvez essa seja a grande dificuldade em lidar com esses temas de justiça (o que é justo ou injusto) qual seja, a presença dessas duas estruturas. Diké aparece – ou ao menos se identifica – mais com os procedimentos arbitrais, como todos aqueles procedimentos em que aparece realmente o julgador como um terceiro, aquele que não se mistura com os outros. Ele é um “outro”, efetivamente. Ele não está ali dentro. A figura complicada como por exemplo a do Promotor de Justiça, do Ministério Público, pois ele está ali “dentro” do processo como  parte, como representante ou como fiscal da lei. E há dificuldade em aceitarmos que ele tenha alguma participação no julgamento de alguma forma. Todas essas discussões de quem é que pode fazer o acordo de delação ou de colaboração premiada envolvem essa questão. Quem deve fazer isso é o Juiz? É o Promotor? Mesmo sabendo que o Promotor é parte da Justiça do estado, ou seja, essa ideia de “ser parte” parece que vai conspurcar um pouco a Diké. A Diké exige isso. E o problema institucional do Direito, em termos de ser justo, passa a ser “como é que achamos equilíbrio nisso?”, como é que se equilibra a presença dos dois, a Justiça aí presente, em termos da Diké, procura neutralizar tudo isso, todos esses elementos já citados da estruturada vingança não são aceitáveis do ponto de vista da Diké. A Diké deplora a chicana, por exemplo, e não consegue em nome da Justiça aceitar a tortura de modo nenhum.

 

Característica desse mundo é a reação : “...é injusto forçar alguém” – esse é o lado Justiça-Diké – e, no entanto, a expansão do ódio, da raiva e de tudo mais está aí presente. Por isso a percepção do justo hoje é uma percepção complicada, porque é uma percepção de auto equilíbrio, de como eu, ser-ai-com-o mundo  me equilibro aí dentro.

 

 

e.Paradoxo

 

Estamos buscando aqui a expressão de uma espécie de paradoxo: a justiça se torna um ideal que o ser humano não atinge por causa da vingança sempre presente em ciclos dinâmicos de autores vingadores e vingados. Digamos que o equilíbrio da tal balança é algo sempre procurando na execução da justiça, mas, por conta dessa estrutura cíclica viciosa da vingança, que fica acossando as relações de justiça, essa balança nunca se estabiliza. É como se o equilíbrio da justiça se frustrasse permanentemente, e a pergunta é se a justiça é, do ponto de vista valorativo, alguma coisa que aspiramos? É bom? Por qual razão não atingimos uma homeostase no sistemas? Um equilíbrio mecânico? Um ponto estático que podemos observar sem dúvida a marca do fiel? Por que a justiça não se realiza totalmente?

 

Uma hipótese que levantamos aqui é um tanto paradoxal – a balança nunca se estabiliza e nem pode, porque ela está sempre trocando pesos entre os pratos, ou sejam, Themis sempre se mete nas questões da Diké, por assim dizer, ou se quiser em outros termos, a emoção sempre acaba entrando dentro das decisões jurídicas e de tudo mais, os afetos são a expressão do dinamismo desse sistema. Essa é uma outra forma de vermos isso pois, de fato, a ligação da vingança com a emoção é muito mais forte. Podemos fazer até uma pesquisa simplista com qualquer pessoa, basta falarmos em vingança e imediatamente a conotação é de um subjetivismo muito forte, o sujeito a liga imediatamente à emoção, à forte emoção, e não para por aí, a vingança pode ser, ao contrário, bastante calculista, e existem expressões populares que mostram isso – um prato que se como frio, a vida se encarregada dela, antes de sair em busca de vingança, cave duas covas, “dizem que a vingança é doce mas à abelha custa-lhe a vida”, “o esquecimento mata as injúrias, a vingança as multiplica.” “O sentimento da vingança é tão agradável, que muitas vezes o homem deseja ser ofendido para se poder vingar, e não falo apenas de um inimigo habitual, mas de uma pessoa indiferente, ou até mesmo, sobretudo em alguns momentos de humor negro, de um amigo.” de Giacomo Leopardi[9]. Talvez as frases tenham algo de exagero, mas é nesse vetor de interpretação que percebemos o papel que a justiça exerce em nós. A possiblidade de ritualizar a vingança, ou a justiça, tentando pôr um fim mostra exatamente a presença da vingança naquilo que costumamos chamar de direito.

 

Esse tal Direito que se nos apresenta sob a forma de regras e normas, decisões de juízes e de tribunais tem uma espécie de sentido ritualístico que tenta controlar tanto a vingança quanto a justiça em equilíbrio e a ideia aqui é que as decisões jurídicas não solucionam o conflito, elas apenas põem fim ao conflito, elas proíbem que as partes do processo continuem debatendo o mesmo caso indefinidamente, o que é a forma contemporânea de lidar com esse jogo entre Themis e Diké, vingança e justiça.

 

Podemos encontrar, no plano das emoções, outras formas com as quais lidamos com esse jogo, com o estático e o dinâmico, justiça tentando reduzir o ciclo vicioso da vingança, dos ressentimentos, das sublimações. São formas pelas quais lidamos com  a injustiça na impossibilidade ritualística da vingança. Nesses termos o direito, enquanto formalidade ritual, é um jeito lidarmos com esse jogo dessas duas estruturas, pondo fim ao debate com a chamada coisa julgada, com a prisão depois da segunda instância, com audiências em segredo de justiça e coisas desse tipo. São estabelecidos limites vingativos por meio desses instrumentos do poder estatal de onde observamos uma tentativa de estabelecer controles.

 

No Agamémnon de Ésquilo, uma interessante passagem nos traz: “o ultraje é resposta a um ultraje, uma lei deve reinar enquanto reina Zeus, ao culpado o castigo pela ordem divina, quem poderá então extirpar deste palácio o germe da execração?” Esse tom do poeta Ésquilo, no personagem Agamémnon, mostra um pouco do complicado desse jogo, entre a vingança e a justiça: quem poderá expulsar deste palácio o germe da execração?, é o lado dinâmico da coisa, que não para, a vingança do ofendido pela vingança anterior leva gerações ao conflito.

 

 

 

f.Notas Finais

 

Somos então apenas simples seres movidos pela vingança, mesmo que em nome da justiça? Mas se a vingança é chamada de justiça, então dessa justiça irá nascer ainda mais vingança em um ciclo de ódio. Mas assim mesmo, vivemos com isso, cientes do passado, predizendo o futuro, ou seja conhecendo a história e seus tempos.

 

Só nos resta aqui a humanidade do ser, ficamos atentos às teorias, à resistência do direito falar em justiça, das fontes do direito em achar um braço de rio navegante por essas águas profundas entre Themis e Diké, desde os tempos arcaicos até hoje, sempre a justiça é clamada pelo injustiçado, em uma proporção moral, ética e em dimensões que extrapolam as desigualdades históricas, sociais e culturais. Como tecer teorias sobre o justo se ainda não o experimentamos, como entender a empatia que rega o árido terrenos dos mediadores de conflitos? De Esquilo até Amartya Sem essa questão pavimenta nosso caminho filosófico em que não são as respostas, mas sim as perguntas que movem o mundo.

 

 

 

REFERENCIAS

 

ARISTOTELES. Retórica, I, 10, 1369b.

ALBERTO, Paulo Farmhouse e PENA, Abel do Nascimiento. Retórica. Aristoteles Obras Completas. 2ª ed revista.Trad.e notas de Manuel Alexandre Junior – Lisboa: INCM,2005. Isbn 972-27-1377-9

DASÍ, Olga Martines Dasí em comentario da obra Gabriel Garcia Márquez apunte biográfico, ed. 2007, p.6, disponível em: https://sololiteratura.com/gabriel-garcia-marquez/

GARCIA MARQUEZ, Gabriel. Cronica de uma morte anuncianda; trad Remu Gorga filho-Rio de janeiro: Record,1998

 

 

 

 

 

 

[1] Edmund Gustav Albrecht Husserl, filósofo alemão que inaugurou a escola da fenomenologia, rompeu com a orientação positivista da ciência e da filosofia de sua época, criticou o historicismo e do psicologismo na lógica e trouxe a noção da intencionalidade da consciência. A questão ontológica em Husserl parte de da concepção de intencionalidade da consciência, da imanência e da transcendência, que estabelece a noção de região ontológica e distingue as duas esferas do “ser” existentes: consciência e mundo. A partir dessa distinção retoma a tese cartesiana, mas de forma mais profunda, de que a subjetividade é um absoluto enquanto o ser do mundo é relativo e contingente.

[2] Ontologia nesse texto, diferente da origem aristotélica, é o estudo da natureza da coisa mesma, da natureza, existência e realidade dessa coisa.

[3] jurista brasileiro, autor de diversas obras filosóficas em Direito, graduado e pós graduado em Filosofia, Letras e Ciências Humanas, pela Universidade de São Paulo, professor emérito da faculdade de direito do Largo São Francisco, professor no doutorado na USP, PUC e outras faculdades de direito.

[4] Friedrich Carl von Savigny foi um jurista alemães do século XIX, maior nome da Escola Histórica do Direito que se contrapôs à codificação francesa de Napoleão. Seu pensamento recupera as fontes do direito e atualiza através dos costumes do povo para erigir uma Ciência do Direito e teve grande influência no Direito alemão, bem como no Direito dos países de tradição romano-germânica.

[5] Gabriel José García Márquez foi escritor, jornalista, editor, ativista e político colombiano. Considerado um dos autores mais importantes do século XX, um dos escritores mais admirados e traduzidos no mundo, com mais de 40 milhões de livros vendidos em 36 idiomas

[6] Assim atesta Olga Martines Dasí na obra Gabriel Garcia Márquez apunte biográfico, ed. 2007, p.6, disponível em: https://sololiteratura.com/gabriel-garcia-marquez/ .

[7] No sentido da ma-fé de Simone de Beauvoir

 

[8] Original: Retórica, I, 10, 1369b; agora em v3 tomo I da obra: ALBERTO, Paulo Farmhouse e PENA, Abel do Nascimiento. Retórica. Aristoteles Obras Completas. 2ª ed revista.Trad.e notas de Manuel Alexandre Junior – Lisboa: INCM,2005. Isbn 972-27-1377-9

[9] poeta, ensaísta e filólogo italiano do séc XIX.