NATIVISMO, NACIONALISMO, REGIONALISMO.

O Regionalismo (...) no início, ao aparecer como nativismo, finca raízes na descrição da especificidade da nova terra, dando ênfase àquilo que lhe é característico, para efeito de propaganda, como fizeram os cronistas coloniais. Daí uma predominância do pitoresco, que se revela nas enumerações de animais e frutas estranhos, com nomes também estranhos. (GALVÃO, 2000: 14)

Aderaldo Castelo considera Gregório de Matos o primeiro grande escritor autenticamente brasileiro, ao incorporar a sua produção não só temas- o retrato burlesco satírico da cidade da Bahia colonial e seus habitantes- mas também a linguagem já “brasileira”, proveniente de inúmeros coloquialismos, gírias, tupiniquismos, africanismos e expressões populares correntes na cidade da Bahia no último quartel do século XVII. Teria sido também, o primeiro a expressar em seus versos, um sentimento nativista ou mesmo nacionalismo. (Castelo in ESPÍNOLA, 2001: 20)

Os poetas árcades também empenharam- se em defender, por meio de um sentimento nativista, a natureza brasileira, contudo a natureza retratada por eles enquadra-se aos padrões e às condições culturais da Europa.

O advento do Romantismo, coincidindo com o processo de independência política do Brasil, acentuou o sentimento nacionalista, nascendo, nesse contexto, o primeiro regionalismo. Coube, então, aos romancistas descobrir e idealizar a natureza, o espaço rural e o sertão em suas escrituras.

José de Alencar, Taunay e Bernardo Guimarães procuraram retratar os costumes do sertanejo brasileiro, no entanto, a estética romântica, impede-os de retratar, de maneira verossímil, o ambiente rural.  Em suas obras, o que predomina é a imaginação, a idealização dos ambientes e das pessoas, e não a realidade das diversas regiões do Brasil. Amora (1968: 53- 54) afirma que (...) dois ingredientes psíquicos da estética romântica- o sentimentalismo e a imaginação- formaram a nossa realidade rural (...) pondo no ambiente rústico, caboclos bem falantes (...).

Os romances regionalistas de José de Alencar - O gaúcho (1870), O Tronco do Ipê (1871), Til (1872), O Sertanejo (1875) - são idealizações das diversas regiões do Brasil, e, devido, a essas obras, o autor recebeu severas críticas, em especial do romancista Franklin Távora, que combate a imaginação excessiva de Alencar. Segundo Távora, Alencar pretendeu desenhar um retrato do Brasil a ser mostrado à corte. Naturalmente distanciado do mundo campesino. (Távora in SOUZA e PAVÃO,1977: 63),

Araripe Junior  em seu estudo “O Gaúcho, de Alencar, tocou na essência do caso, ao atestar: O verdadeiro pampa não foi observado pelo romancista; este que aí fica esboçado nas páginas do livro não passa de um sonho, de um pesadelo; pintura mais exata das desolações, das tristuras que povoaram a mente do escritor. (...) No Gaúcho de Alencar, havia de fato um romance regional fracassado para o ponto de vista do nosso regionalismo incipiente, que era uma das formas dessa triste limitação de perspectiva chamada “realismo”.( Junior in MEYER, 1986: 501- 502)

Acreditamos que o trecho fala por si mesmo. O que predomina na maioria das obras do primeiro regionalismo brasileiro foi a tentativa de retratar o ambiente rural, marcado pela idealização e pelo pitoresco, contudo desprovido de verossimilhança e veracidade.

Além do regionalismo fracassado, outro fator também marcou a obra de Alencar: a linguagem. Mesmo que o autor se esforce para não se afastar em demasia da linguagem das personagens, há uma discrepância entre a fala dos sertanejos e a linguagem do escritor e de seus narradores- culta e sentenciosa. (Junior in MEYER, 1986: 501- 502)

Anos mais tarde, surgiria um “segundo regionalismo”, sob o influxo do naturalismo (Galvão, 2000: 16). No entanto, afasta-se da idealização do sertanismo romântico por não valorizar pictórico. Nesse período, o aspecto documental dos problemas locais e regionais ganha vigor. Domingos Olímpio, em Luzia- Homem, volta-se para o drama dos retirantes do Nordeste, ao fugir da seca. A paisagem não pano de fundo, idealizada pelo autor; é um retrato verossímil da realidade hostil, a qual o homem sucumbe.

Como se pode ver, Domingos Olímpio trouxe, ao conhecimento do leitor, ainda habituados aos valores propagados pelo romantismo, a paisagem nordestina, a crueldade da seca e a condição de vida cruenta do sertanejo. Desse modo, o autor, desvela a miséria que os românticos jamais mencionaram.

No final do século XIX e começo do XX, na fase Pré-Modernista, vemos uma retomada do tema, exemplo disso são as obras Os Sertões de Euclides da Cunha e Urupês de Monteiro Lobato. Esses autores desenvolvem o regionalismo determinista, que predominou no pensamento dos autores realistas/naturalistas, ao apresentarem uma dimensão crítica à preocupação social.

No seu fazer literário, o estilo de Euclides da Cunha é a procura pela palavra rebuscada e o rigor científico. Já Monteiro Lobato, a partir de suas pesquisas sobre a linguagem do “caipira” brasileiro, traz para sua obra o falar errado do homem do campo, que fala diferente.

No entanto, o filão regionalista mostrava-se tão rico que ainda não se esgotara e voltaria com forças renovadas após o modernismo dos anos 20. Este, no seu afã de desprovincianizar-se e alçar-se ao patamar das vanguardas européias, apesar de todo o seu nacionalismo torcera o nariz para o regionalismo e o decretara de má qualidade estética, bem como inteiramente equivocado quanto aos propósitos de dar a conhecer o Brasil. O melhor exemplo é Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, teórico e principal artista da escola, que esboça o panorama do Brasil em sua totalidade mas deliberadamente confunde as diferentes regiões e aquilo que as caracteriza, praticando o que chamava de "desgeograficação". (Galvão, 2000: 17)

A linguagem de Macunaína foi resultado de uma intensa colheita de material, da documentação e do desejo de autenticidade, pois Mário de Andrade desejava criar uma língua autenticamente brasileira e independente do português culto e das normas gramaticais, o que, de certo modo, pode ser considerado um rompimento com o tradicional.

Se para o primeiro regionalismo a inspiração tinha provindo do romantismo e para o segundo do naturalismo, o terceiro, que se tornaria conhecido como "regionalismo de 30", beberia em outras fontes. (Galvão, 2000: 18)

Nas décadas de 30 e 40, período em que vigorou o terceiro momento modernista, a ficção configurada pelas narrativas voltadas para a decadência do Nordeste, ao privilegiar o vaqueiro, o retirante, a seca e a miséria.

João Luís Lafetá salienta que (...) a politização dos anos 30 descobre ângulos diferentes: preocupa-se mais diretamente com os problemas sociais e produz o romance de denúncia. Os escritores e intelectuais esquerdistas mostraram a figura do proletariado (Jubiabá, por exemplo) e do camponês (Vidas Secas) (...). A revolução de 30 propicia o debate em torno da história nacional, da situação de vida do povo do campo, do drama das secas. O real conhecimento do país faz-se sentir como uma necessidade urgente e os artistas são bastante sensibilizados por essa exigência. (Lafetá 2000, apud LIMA, 2002: 15)

Os autores engajados como Graciliano Ramos, um dos autores mais representativos do grupo nordestino, retrata em sua obra prima Vidas Secas, o sofrimento do retirante nordestino, castigado pela natureza e seu poder destrutivo. A preocupação central de Graciliano Ramos é a análise da condição existencial do homem nordestino em uma região hostil, que projeta personagens marcadas pela dor e opressão.

Alfredo Bosi (salienta que (...) escrevendo sob o signo dialético por excelência do conflito, Graciliano compôs uma série de romances cuja descontinuidade é sintoma de um espírito pronto à indagação, à fratura, ao problema. Isso explica a disparidade da linguagem. Cada romance é um questionamento novo, que propõe uma linguagem adequada. (Bosi in ANDRADE 1987: 48)

A temática regionalista foi recorrente nos escritores brasileiros, como foi explanado anteriormente. A transição do idealismo regionalista de José de Alencar para uma postura crítico- social dos autores regionalistas da década de 1930 fez-se gradativamente, mas, o que muitos críticos salientam nessas obras é a não adequação da fala do narrador a dos personagens, um problema compositivo do regionalismo.

 

O REGIONAL E O UNIVERSAL – “O SERTÃO É O MUNDO”.

Após esse breve panorama literário povoado por diferentes produções regionalistas, essa tendência não chegou ao fim com os escritores da chamada década de 30, pois em 1946, dentro de uma tradição literária representada por José de Alencar e Graciliano Ramos, surge Sagarana, uma coletânea composta por de 9 contos : O burrinho Pedrês, A volta do marido pródigo, Duelo, Minha gente, São Marcos, Corpo fechado, Conversa de bois, A hora e vez de Augusto Matraga, em que a temática é novamente o sertão.

 Mais uma vez o sertão é matéria para o fazer literário, mas desta ganha novas roupagens; Guimarães Rosa destaca-se perante os demais regionalistas, provavelmente porque sua ficção, embora retrate uma região do Brasil, o sertão de Minas Gerais, conseguiu ampliar as representações regionalistas retratadas no Romantismo, no Naturalismo, no Pré-Modernismo e no Modernismo, com os autores da década de 30, para atingir o universal, como defende Antonio Candido (...) Prosa transcendente o regional, através da aguda percepção dos problemas vitais que existem no interior do homem de qualquer região. Dessa maneira, os elementos pitorescos e tipicamente regionais que aparecem em sua obra não são importantes em si mesmo (como em muitos outros autores) mas servem para estruturar e revelar ao leitor todas as inquietudes do homem. (CANDIDO, 2000: 245)

(...) Nhô Augusto (...) não tinha tentações, nada desejava, cansava o corpo no pesado e dava rezas para a sua alma (...) também não fumava mais, não bebia, não olhava para o bom-parecer das mulheres (...) Nhô Augusto foi indo por muito tempo se acostumando com os novos sofrimentos, mais meses. Mas sempre saia para servir os outros (...) ajudava a carregar defuntos, visitava e assistia os doentes, e fazia tipo com tristeza bondosa, a mais não ser. (...) Até que, pouco a pouco, devagarinho, imperceptível, alguma coisa pegou a querer voltar para ela, a crescer-lhe do fundo para fora, sorrateira, como a chegada do tempo das águas (...) Choveu. ( ROSA, 1983: 59-60-63-64).

Encontramos aqui, a personagem “natureza”- a Chuva- agindo como elemento de transformação da personagem.

Então, tudo estava mesmo muito mudado e Nhô Augusto de repente pensou com a idéia fácil e o corpo muito bom. (Ibid, p: 364).

De fato, Guimarães Rosa, nesse cenário, soube fazer viver o drama universal da condição humana. O pictório, o documental, o folclórico, a denúncia social, cedem lugar para uma maneira nova de repensar a existência humana. Trilhando as veredas do humano, sua obra envolve indagações e reflexões sobre deus e o diabo, sobre o bem e o mal, sobre a vida e a morte sobre o destino e o amor.

Outro aspecto que distingue a escritura de Rosa da de outros regionalistas é a linguagem. As criações linguísticas operadas pelo autor são consideradas um divisor de águas na linguagem literária brasileira, ao explorar os mais variados signos: sonoridade, neologismos e arcaísmos, de modo a criar uma autêntica e verossímil linguagem literária para expressar a visão de mundo que sua obra difunde.

 

A LINGUAGEM LITERÁRIA DE GUIMARÂES ROSA

Os sertões de Guimarães Rosa são uma região constituída na linguagem. A perspectiva adotada pelo autor é a de um “realista poético”, isto é, “um realismo em que a trama das coisas e dos seres nasce, a cada momento, da trama originária da linguagem (...). O romancista brasileiro utiliza a linguagem não como um instrumento exterior, apto a traduzir um mundo de antemão dimensionado, e sim uma espécie de linguagem em estado nascente que retoma a “poceses” da língua portuguesa, incidindo sobre as estruturas efetivas e as possibilidades latentes do idioma. É ao contrário da língua objeto, do realisto puro, a língua sujeito, do realismo poético (...). Os personagens de Guimarães Rosa falam e ao mesmo tempo não falam a língua corrente dos sertões. Falam na medida em que a sua linguagem tem uma série de termos e construções, um ritmo e uma certa cadência, um conteúdo altamente emocional e uma maneira especial de dizer as coisas, que são típicos dos sertões. No entanto, estes são apenas alguns aspectos da sua linguagem, aqueles, que estão associados à região física e social (...)”. (Nunez in COUTINHO,1983: 224- 225).

Contudo, o que se altera na ficção brasileira com a produção de Guimarães Rosa é o modo como ele enfrenta a palavra, a maneira como considera a linguagem, ao criar uma linguagem consciente do que estava fazendo. Em depoimento o autor fala sobre seu processo de criação da linguagem.

Não, não sou romancista; sou um contista de contos críticos. Meus romances e ciclos de romances são na realidade contos nos quais se unem a ficção poética e a realidade. Sei que daí pode facilmente nascer um filho ilegítimo, mas justamente o autor deve ter um aparelho de controle:  sua cabeça. Escrevo, e creio que este é o meu aparelho de controle: o idioma português, tal como usamos no Brasil; entretanto, no fundo, enquanto vou escrevendo, extraio de muitos outros idiomas. Disso resultam meus livros, escritos em um idioma próprio, meu, e pode-se deduzir daí que não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros. A gramática e a chamada filologia, ciência lingüística, foram inventadas pelos inimigos da poesia”. ( BRAiT, 1982: 102)

 

O PROCESSO DE REVITALIZAÇÃO DA LINGUAGEM

Em entrevista concedida ao crítico Günter Lorenz, João Guimarães Rosa afirma que (...) sua relação com a linguagem há dois aspectos a serem considerados: o primeiro é o metafísico, aquele a que podemos chamar de filológico. O segundo refere-se, especialmente à linguagem criada por ele.

Para Guimarães Rosa, linguagem e vida são uma só e mesma coisa. Deste modo, sendo a vida um constante fluir, ou seja, algo em perpétua mutação, a linguagem também deve constantemente evoluir. Como tudo na vida, as formas da língua também envelhecem e se tornam completamente inexpressivas após uso prolongado: palavras perdem o seu significado originário, expressões se tornam obsoletas, consciente de sua missão, refletir sobre cada palavra ou construção que utiliza e fazê-la redobrar sua energia primitiva, desgastada pelo uso”. (Lorenz in COUTINHO,1991: 62).

Guimarães Rosa, com suas andanças pelo sertão mineiro, trouxe, para dentro de sua obra, a linguagem daquele povo, mas esse não é o único processo utilizado pelo contista, ele ressignificou a linguagem literária, explorando as diversas potencialidades do signo linguísticos, como os que mencionamos anteriormente: os neologismos e arcaísmos, sabendo adequar a linguagem do narrador à das personagens. Rosa revitalizou a linguagem por acreditar que vida e linguagem são as mesmas coisas, assim envelhecem, e as palavras perdem seu significado verdadeiro, assim Rosa transcende o regional, pela força de sua linguagem e de sua expressão.

 

Referências Bibliogáficas:

AMORA, Antonio Soares. História da literatura brasileira.7ª ed. São Paulo; Saraiva, 1968.

ANDRADE, Fernando Teixeira de. Coleção Objetivo. Sistema de métodos de aprendizagem, n. 28. São Paulo: Centro de Recursos Educacionais, 1987. p. 48.

BRAIT. Beth. Literatura comentada: Guimarães Rosa. São Paulo; Abril Educação. 1982.

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6ª ed. Belo Horizonte, MG: Itatiaia, 2000.

COUTINHO, E. F. Guimarães Rosa. 2 ed. Coleção Fortuna Crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.

ESPÍNOLA, Adriano. O nativismo ambíguo de Gregório de Mattos. Revista Brasileira de Literatura, n. 41, p. 20, dez, 2000.

GALVÃO, Walnice Nogueira. Guimarães Rosa. São Paulo: Publifolha, série Folha Explica.2000

LIMA, Sônia Maria van Dijck. Sagarana e a recepção da crítica. Revista Leitura, n.06, p.15, jun, 2002.

LORENZ, Gümer. Diálogo com Guimarães Rosa. In: COUTINHO, Eduardo F. (Org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 62-97. Coleção "For­tuna Crítica", n. 6.

MEYER, Augusto. Textos críticos. São Paulo: Perspectiva, 1977.

ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1983.

SOUZA, Sergio Alberto de, PAVÃO, Suzana Rodrigues. Literatura brasileira. São Paulo; Moderna, 1997.