Itinerário da noite interior.

Nas horas tardias que a noite desmaia
Que rolam na praia mil vagas azuis,
E a lua cercada de pálida chama
Nos mares derrama seu pranto de luz,
(Fagundes Varela)

A noite é negra porque as estrelas são imagens mortas. No entanto, entre brumas macilentas, um luzeiro, em um horizonte, imanta seu olhar.
Quando caminha, são tantos passos, que perde a direção que pretendia dar aos seus pés. Quase sempre, ao largo de tudo, perde-se nos anos que já foram.
As ruas estão mortas.
Tudo ao redor de seu ser são ecos de um dia que nunca existiu. Faces que já não se lembra de quem sejam, furam-lhe as retinas, enquanto tropeça em algum buraco do calçamento.
Paisagens que não estão onde vê, surgem e somem, confundindo-lhe a percepção do agora. É quase um sonho peripatético, raciocina, movimentando o corpo flácido.
Atravessa quarteirões de sua infância, contemplado por casas impassíveis. Arfa sob o peso das lembranças, visto por muitas janelas cerradas.
Cada metro de calçada pulsa dentro de suas costelas. O silêncio do sono alheio, que são centenas de almas, ensurdece seus sentidos, sob lâmpadas mortiças do passeio público.
Para para olhar o córrego que costumava ser um rio. Rio de sua infância. Testemunha passiva daquela agitação juvenil. A pressa característica das almas tenras, que respiram a audácia de poder ser o que vier.
Já faz tempo, constata, olhando o fundo barrento de um ponto equidistante entre as margens, que se despediu dos haveres de um cotidiano matrimonial. Ressoam em seus tímpanos as vozes infantis daqueles dias. Nesse instante, fecha os olhos, de uma vez. Ao abrí-los, some a nesga de luz que lhe marejava as pupilas.
Agora, chove fora e dentro do seu ser cansado. Fatigado dessa marcha incessante por entre anos a fio, caminha, leve e lento, na cidade sem memória de ti.
Personagem de si mesmo, desperta de seu sonho particular que não pode mais se realizar.
Está velho, é fato. Sua alma anciã povoa um corpo alquebrado pela jornada de uma vida.
A escuridão envolve tudo e todos, na madrugada de uma noite sem lua.
Após o baque seco, segue-se a agonia do rompimento do cordão vital que lhe hauria as forças.
Auri, sem sentir os percalços do caminho de cimento, que segue nessa madrugada, perdida em devaneios de vida e morte, pairando sobre pedregulhos e dores humanas.