A memória é um dos elementos que nos diferenciam dos demais seres. A origem do termo vem do latim "memoria", de "memor", cujo significado é "aquele que se lembra. [1]
Ela é que forma a base para a aprendizagem. Sem ela, não teríamos de onde tirar aprendizados do passado para utilizar em situações no presente. A experiência só é possível, graças a essa faculdade cognitiva. [2]
Portanto, é correto concluir que somos o que somos, por causa dos eventos que passamos, somados às lembranças que guardamos desses eventos, adicionados às aplicações feitas até então de tais aprendizados. Memória e imaginação são faculdades mentais que são essenciais para um viver cônscio. Enquanto a segunda é importante para o ser humano não ficar preso nas rotinas diárias, ou ser um escravo da nostalgia, a primeira é considerável pelo fato de, sem lembranças, o ser humano ser um prisioneiro dos mesmos erros, em todo seu viver.

O ser humano, então, é distinto de todos os demais seres vivos pelo somatório de três elementos: liberdade + memória + imaginação. Qualquer elemento que seja retirado, perde-se muito em relação ao que seja de fato ser humano. Podemos ter um robô, ou um andarilho que, como as demais espécies, segue sendo sempre fazendo as mesmas coisas que os antepassados, ou então ter uma máquina de executar tarefas, que possui o presente e o passado como únicos elementos temporais existentes. Pouco se diferenciaria o ser humano de tantos outros animais.

Por causa disso, um texto presente na Bíblia, que trata a respeito do estado humano na eternidade, parece dar a entender que, após o Juízo Final, o ser humano perderá uma dessas faculdades cognitivas (a imaginação), e, se tornará um ser menos humano; ou seja, a eternidade não tornaria o ser humano mais completo, pelo contrário; este seria alguém inferior ao seu estado atual.
O texto é o do livro do profeta Isaías, capítulo 65, verso 17. Segue ele abaixo:

"Porque, eis que eu crio novos céus e nova terra; e não haverá mais lembrança das coisas passadas, nem mais se recordarão." Is 65.17

Neste capítulo, vemos uma das primeiras declarações explícitas da parte de Deus, sobre a extensão do seu plano de redenção de Israel para as demais nações. Deus mostra a Isaías que Ele haveria de se revelar àqueles que até então não o buscavam (Is 65.1) e que seu tratamento não seria relacionado a motivos étnicos, mas sim pela fé no seu Ser (Is 65.11-16). E, como uma das promessas aos crentes, Deus diz que providenciará um novo lugar, "novos ceus e nova terra" (Is 65.17), para os crentes habitarem juntamente com Deus. Sem pecado, sem maldade, um lugar onde só haverá amor, paz, justiça e bondade.

Contudo, neste mesmo verso, Deus diz que nesses novos ceus e novas terras, "não haverá mais lembranças das coisas passadas." E, como vimos acima, a memória é algo essencial para o ser humano ser quem é. Tirar isso, é diminuir o status ontológico de qualquer pessoa. E, além desse fato, algumas perguntas surgem em decorrência dessa perda:

    1 -Como poderíamos ter certeza que nenhum ser humano viria a pecar novamente, dado que nenhum dos salvos terão lembranças dos terríveis efeitos e das terríveis consequências do pecado e do mal?

    2- Como adoraríamos a Deus, sem saber do que Ele nos libertou nesta vida? A adoração não seria menor do que caso tivéssemos as lembranças das lutas e sofrimentos que passamos, e do dia em que o Senhor nos perdoou e nos salvou?

    3 -Se nós, hoje somos fruto dos momentos que passamos e das lições que tivemos e que aplicamos, por que Deus diminuiria nosso status como ser, para alguém cujas lembranças serão apenas as pós Juízo Final?

Bem, analisando o verso 17 no hebraico (língua em que o livro de Isaías foi escrito), conseguimos encontrar soluções para essas perguntas.

Na expressão "não haverá mais lembrança", temos, no hebraico, " ṯiz·zā·ḵar·nāh", cuja tradução literal seria "não serão lembradas" (em referência ás coisas antigas).
Nesse trecho "ṯiz·zā·ḵar·nāh", o verbo utilizado para "lembradas" é "zãkar". Este verbo, de acordo com o léxico de Strong, tem como significados:

. fazer menção;
. recontar;
. registrar;
. lembrar;
. fazer para ser lembrado;
. fazer menção de;
. chamar, ver, manter, colocar para/ em memória. [3]

O que, então, Deus quis dizer com "as coisas passadas não mais serão lembradas?"

Com certeza, não significa que os salvos terão total esquecimento das lutas e dores desta vida, mas sim, que tais acontecimentos não terão o mesmo peso em nós, como têm hoje.
Analisar outros textos bíblicos com o mesmo verbo utilizado, ajudarão a mostrar como essa interpretação é a verdadeira.

Em Ezequiel 18.24, Deus; falando acerca dos justos que voltam a ser iníquos, diz:

"Mas, desviando-se o justo da sua justiça, e cometendo a iniqüidade, fazendo conforme todas as abominações que faz o ímpio, porventura viverá? De todas as justiças que tiver feito não se fará memória; na sua transgressão com que transgrediu, e no seu pecado com que pecou, neles morrerá." Ez 18.24

No hebraico, a expressão "ṯiz·zā·ḵar·nāh" é traduzida por não se "fará memória" (literalemente, não "ser mencionada"). Ou seja, não é que Deus sofra de amnésia quando um justo se enxarca nas iniquidades feitas e abandona a Deus, mas sim, que as justiças (ou boas obras) feitas pela pessoa quando era justa, não mais serão mencionadas como elementos relevantes na vida daquela pessoa; tais obras não mais terão peso perante Deus, para manter a pessoa como sendo justa diante de Deus.

No livro de Juízes, no capítulo 8, verso 34, temos o relato de que, após a morte de Gideão, os israelitas começaram ter por Deus "Baal-Berite", abandonando ao Deus de Abraão, Isaque e Jacó, que os havia separado como sua propriedade exclusiva (Êx 19.6):

"E assim os filhos de Israel não se lembraram do Senhor seu Deus, que os livrara da mão de todos os seus inimigos ao redor." Jz 8.34

Nesse triste verso, a palavra "lembraram" foi traduzida do termo hebraico " zā·ḵə·rū", derivado de "zãkar". [4]

O texto bíblico diz que os israelitas não mais lembraram quem era o Deus que havia feito tantos milagres para com seus antepassados? Os israelitas tiveram um surto de amnésia ao ponto de sequer lembrarem o nome de Deus? Não. Eles não mais consideravam a YHWH como antes; i.e, não viam Deus com a relevância que ele tinha, e merecia ter, causa e consequência da adoração a outra divindade e de outros pecados cometidos.
Os israelitas no geral não estavam mais prestando culto a Deus, obedecendo aos seus mandamentos, servindo-o com suas vidas. Não que o nome de Deus não passasse mais pela cabeça deles, mas no seu íntimo, eles o haviam abandonado.

Assim, podemos chegar a conclusão de que após o Juízo Final, os salvos não perderão as memórias desta vida; não sofreremos uma lavagem cerebral divina, nem teremos de fazer elocubrações para responder às três perguntas feitas anteriormente. Antes, todo o pesar, sofrimento, dor que o pecado nos ocasionou nessa vida, todo o sofrer que Satanás e o mundo implicaram nos crentes em Jesus, não serão mencionados como algo relevante em nossas vidas; não terão o mesmo peso em nossos seres, não incomodarão. A presença de Deus, e a liberdade plena do pecado e do mal, impedirão que os salvos sejam agonizados com os martírios pertencentes à vida na Terra.

Deus não será injusto com seus filhos, criando um mundo e permitindo que tal mundo exista, para que depois nenhum deles se lembre de nada ocorrido aqui. Porém, Deus será bondoso, por fazer com que tais agonias não mais aflijam os justos, tornando a adoração a Ele plena por toda a eternidade.

 

Referências:

[1] https://uniso.br/publicacoes/anais_eletronicos/2014/5_es_memoria/04.pdf

[2] http://www.cerebromente.org.br/n01/memo/memoria.htm

[3] http://biblehub.com/strongs/hebrew/2142.htm

[4] http://biblehub.com/hebrew/zacheru_2142.htm