Inventadeira

Eu a conhecia a tanto tempo, que nem sei precisar quanto. Parece que sempre.

Mas sempre é muito, dizia-me ela.

Devia beirar os vinte anos, ou trinta anos, sei lá. Talvez um tanto mais, talvez um tanto menos... Só sei que era mais velha do que eu.

Éramos vizinhas. Morávamos na mesma rua. A sua casa distava da minha cerca de cem metros. Ou mais, ou menos, não sei.

Morena alta, magra, com um sorriso permanente nos lábios e uns olhos que não se descuidavam de nada. Estavam sempre atentos a observar tudo. Olhos e ouvidos curiosos.

Eu gostava muito de conversar com ela. Vai, vai conversar com a inventadeira, dizia-me minha mãe. E eu ia. Todos os dias em que não chovesse.

Nós nos encontrávamos à tardinha, após o banho, enquanto esperávamos a hora do jantar. Sentávamos sempre no mesmo banco, na praça da Matriz. O banco de onde eu poderia ver e ouvir minha mãe a chamar-me.

Ela sempre pedia para que eu contasse alguma coisa do meu dia. Como tinham sido as coisas na escola, as brincadeiras no recreio, o que eu tinha comido no almoço, as brincadeiras com   minha irmã e amigas, após ter feito as lições de casa... Eu que era tímida, em sua presença tornava-me outra pessoa, mais solta, falante. Penso que graças à ela, hoje sou bem diferente daquela que já fui um dia.

Ouvia-me sempre com muita atenção. Depois, quando já tinha ouvido o suficiente, aproveitava um gancho em minhas palavras ditas, e devaneava, inventava as histórias, que fizeram parte da minha infância, que aguçaram em mim a curiosidade, o querer saber cada vez mais.

De “faladora” eu passava a “ouvidora”.

Dona das palavras que era, gostava de falar do passado, como se o presente só a mim pertencesse.

“Uma vez, enquanto eu fazia minhas lições, como as que você disse que acabou de fazer, vi passar por debaixo da porta da sala, um bicho meio estranho, do tamanho da minha mão. Tinha vários olhos que circundavam sua cabeça, e orelhas que encobriam ouvidos na mesma proporção. Se tinha boca não vi, mas penso que deveria ter. Afinal...  Ele veio bem rápido em minha direção, como que se voasse. Subiu em cima da mesa, e postou-se no meio do livro que eu usava. Olhamo-nos por um bom tempo, como que se a nos conhecermos, ou nos reconhecermos... Não senti nem um pouco de medo. E olhe que eu era bem medrosa. Vi-o como quem vê um amigo. E de fato, ele se tornou o meu melhor amigo. Aquele que estava comigo o tempo todo a olhar a vida e não me deixar descuidar de nada do que era visto, e de não deixar que nenhuma palavra ouvida fosse jogada ao vento.

Quanto a falar... Como já disse, não me lembro, que tivesse boca para tal. Mas deveria ter.”

E encerrava sempre suas histórias no tempo certo, como se tivesse combinado com minha mãe a hora certa do jantar.

Saudade...