INTEGRAÇÃO E CONTRIBUIÇÃO DO INDÍGENA À “CULTURA BRANCA”: OS CASOS DE ITAJUBÁ E CRISTINA
Por Gustavo Uchôas Guimarães | 22/08/2020 | HistóriaRESUMO
O relato da história sul-mineira, muitas vezes, deixa de lado a importância do indígena como formador da sociedade e cultura do território que hoje convencionamos chamar de “sul de Minas”. Autores como o campanhense Bernardo Saturnino da Veiga e o cristinense Luís Barcellos de Toledo (ambos no século XIX) chegam até mesmo a atribuir o povoamento de regiões sul-mineiras a famílias brancas, ignorando a presença indígena em locais cujas histórias eles relatam. Visando resgatar a história indígena sul-mineira e refletir sobre o que aconteceu no contato com os não-indígenas que chegaram ao sul de Minas, recorreu-se à pesquisa em arquivos paroquiais e de museus e centros de memória, focando os municípios sul-mineiros de Itajubá e Cristina para perceber a participação do indígena na formação social e cultural (neste caso, da região sul-mineira abrangida pela Serra da Mantiqueira) e também para compreender o processo de integração com a sociedade não-indígena (neste caso, dialogando com obras de John Manuel Monteiro para o entendimento da ideia de “integração”). Com base nesta pesquisa, é possível perceber, no século XIX, a atuação do indígena (ligado, por exemplo, aos povos Puri e Coroado) em contato com o não-indígena no desenvolvimento das vilas de Nossa Senhora da Soledade (atual Itajubá) e Espírito Santo dos Cumquibus (atual Cristina) e a presença de indígenas tanto na população urbana nascente quanto na população rural destas localidades, interagindo culturalmente a despeito dos preconceitos ou omissões nos relatos de memorialistas sul-mineiros.
PALAVRAS-CHAVE: Indígenas, Itajubá, Cristina
INTRODUÇÃO
Os municípios de Itajubá e Cristina ficam na região sul do estado de Minas Gerais, cercados pela Serra da Mantiqueira, e passaram a ser mais intensamente explorados e dominados por não-indígenas a partir do século XVIII. Ambos os municípios ficam próximos a divisa de Minas Gerais com São Paulo, uma região fronteiriça na qual houve uma cada vez mais intensa passagem de exploradores e desbravadores em busca de pedras preciosas e indígenas para escravização.
O presente artigo analisará a figura do indígena em meio ao processo de formação dos municípios de Itajubá e Cristina, abrangendo o século XVIII e a primeira metade do século XIX, períodos aos quais se referem os relatos que aqui serão analisados. Escritores e publicações locais dão poucas notícias a respeito dos indígenas da região, sendo a maior parte destas notícias ligadas a especulações etimológicas ou relatos escritos a partir da década de 1980. Dentre os escritores e publicações mencionados, temos as obras dos cristinenses Luís Barcellos de Toledo (1848-1922) e Luiz Gonzaga Teixeira e dos itajubenses Pedro Bernardo Guimarães (1884-1948) e Armelim Guimarães[1] (1915-2004). O primeiro é autor de O passado da Christina (início do século XX), obra manuscrita que foi publicada por Luiz Gonzaga Teixeira[2], na mesma ocasião em que este lançou a obra Cristina (2013). Pedro Guimarães escreveu, em 1915, a obra O município de Itajubá, sendo, tempos depois, acompanhado por Armelim Guimarães, que escreveu, entre outras, as obras História de Itajubá (1985), Itajubá e sua história (1998) e Resumo didático da história de Itajubá (2000). Além destes, temos referências a história itajubense e cristinense em produções, memorialistas ou acadêmicas, de Bernardo Saturnino da Veiga (1874; 1884), Monsenhor Lefort (1993), Gustavo Uchôas Guimarães (2017), entre outros. Em cima destas obras, será realizada uma breve análise bibliográfica, buscando resgatar a figura do indígena presente em territórios de Itajubá e Cristina, perceber as formas como estes indígenas aparecem nos relatos (analisando também suas ausências) e compreender melhor o lugar destes indígenas enquanto se formavam as antigas vilas de Nossa Senhora da Soledade do Itagybá (atual Itajubá) e Espírito Santo dos Cumquibus (atual Cristina).
No primeiro capítulo, intitulado "Resgate histórico", vamos abordar o que dizem as produções em torno das origens e histórias de Itajubá e Cristina, com foco na presença indígena local. No segundo capítulo, intitulado "Entre apagamentos e integração", vamos analisar as possíveis razões para que se deixasse de lado o indígena como integrante da história local e o processo de integração às novas realidades sociais, culturais e territoriais (aqui utilizaremos a ideia de integração sob o ponto de vista do historiador John Manuel Monteiro). Nas considerações finais, algumas reflexões sobre a presença indígena em Itajubá e Cristina, a partir do exposto nos capítulos anteriores.
1. RESGATE HISTÓRICO
Itajubá e Cristina são municípios de formação antiga, se comparados com outros municípios do sul de Minas, remetendo aos episódios de exploração territorial, colonização, busca por pedras preciosas e formação de culturas agrícolas, o que abrange os séculos XVII a XIX. Neste período, indígenas habitavam ou passavam pelas localidades, conforme relatos e menções de escritores regionais.
Bernardo Saturnino da Veiga (1874; 1884), em suas edições do Almanach Sul-Mineiro, evoca uma história popular que, por muito tempo, acreditou-se ser a real origem de Itajubá. Na edição de 1874 do Almanach (p. 281), Veiga afirma que
Nos primeiros annos do século que corre começou-se a fundação deste povoado. Por este tempo já a Soledade do Itajubá era um curato importante da capitania de Minas Geraes. Alguns de seus habitantes, pela maior parte paulistas de Taubaté e Guaratinguetá, margeando o ribeirão da serra ou de Santo Antônio descerão das altas montanhas onde fica aquelle curato, hoje freguezia, chegarão á margem do Sapucahy e descendo por este rio, cerca de 10 kilometros, descobrirão a Pedra vermelha, formoso rochedo que visto ao longe tem aquella côr, mas que examinado de perto é todo listrado de uma linda côr amarella, pelo que mais propriamente a denominavão os indígenas Ita-jubá (pedra amarella).
Esta história, que liga o nome Itajubá ao significado de "pedra amarela", chegou a ser detalhadamente explicada por Pedro Bernardo Guimarães (1915, p. 31-33), que recorreu a estudiosos da língua tupi para comprovar a origem do nome Itajubá. No entanto, esta história que liga o nome de Itajubá a uma origem etimológica que significa "pedra amarela" é desmentida por escritos posteriores, conforme detalharemos mais adiante.
O que é preciso atentar, por enquanto, é para o fato de que, em suas obras, tanto Veiga quanto Guimarães mencionam os indígenas da região itajubense apenas em função da história de origem da localidade, sem apontar para outros fatos que mostrassem a presença indígena local. Vamos ver maiores detalhes dos indígenas de Itajubá nas obras de Armelim Guimarães. Em Itajubá e sua história, Guimarães começa a mencionar a presença indígena local justamente pela contestação à versão que associa Itajubá ao significado de "pedra amarela".
Em 1703 o sertanista taubateano Miguel Garcia Velho fundou o povoado serrano de Nossa Senhora da Soledade de Itagybá (com GY), no alto da Mantiqueira, que hoje é a cidade e o município de Delfim Moreira. Junto a este povoado, que era a primitiva Itajubá, está a cascata que deu origem ao topônimo. Os índios da Bandeira de Garcia Velho denominaram-na Itagybá, que significa, conforme o douto tupinólogo Dr. Geraldino Campista, 'água que, do alto, cai sobre a pedra', isto é, cascata, cachoeira. [...] Por confusão com Itajuba, com tônica no 'U', isto é, Itajúba, paroxítona, muita gente pensava que Itajubá, oxítona, teria o significado de pedra amarela! Mera ignorância dos fatos históricos, de etimologia e do tupi-guarani! Quem for a Delfim Moreira poderá visitar, na sua área urbana, a histórica Itagybá. (GUIMARÃES, 1998, sem numeração de página)
Atualmente, em Itajubá, é aceita a versão que associa o nome da cidade ao significado de "água que, do alto, cai sobre a pedra". No entanto, o avanço da obra de Armelim Guimarães está em não apenas citar os indígenas que passavam por Itajubá em suas origens. O autor vai mais longe, ao descrever aspectos culturais dos indígenas que viviam onde hoje é o território itajubense.
Na obra Resumo didático da história de Itajubá, Guimarães chama a região de Itajubá de "sertão bravio" (2000, p. 5), referindo-se ao período anterior ao século XVIII. Nas páginas seguintes, dedica-se a descrever fauna e flora locais, para, enfim, falar dos primeiros habitantes da região (p. 7-13). A princípio, descreve teorias baseadas em supostas descobertas de objetos que ele julga terem sido de povos que vieram de fora da América (tais achados teriam sido encontrados em Maria da Fé, Brasópolis, São José do Alegre e no Pico dos Marins[3], todos nas vizinhanças de Itajubá, e consistiam em moedas, imagens, inscrições, etc). Depois, atenta para os indígenas locais, afirmando que eram descendentes dos povos Puri e Coroado (no livro, Guimarães usa a expressão "grupo étnico puri-coroados" para dizer que os indígenas de Itajubá formaram seu grupo a partir da mistura entre integrantes dos dois povos).
Armelim Guimarães descreve os "puri-coroados" como extremamente "mansos", não dados a guerra e atrasados tecnologicamente (segundo o autor, estes índios desconheciam até mesmo a cerâmica e a fabricação de redes). Citando Francisco de Paula Ferreira de Resende[4] (1832-1893) e sua obra Minhas recordações, Guimarães descreve o costume dos indígenas de Itajubá de dormir no chão e morar em tabas feitas de folhas e galhos. As descrições continuam sobre os costumes destes indígenas, até que Guimarães volta a falar da suposta mansidão (p. 11):
Mansos e conformados, à vista dos civilizados que iam chegando para se apropriarem das glebas da região, os puris-coroados iam deixando pacificamente estas terras, sem oferecerem a mínima resistência, e emigravam para o centro e o norte do País.
O trecho transmite uma ideia de impotência indígena que aparece também em outros autores. Esta afirmação era contraposta por uma ideia heroica a respeito dos não-indígenas que chegavam a região e tomavam as terras para si. É interessante também ver que Guimarães, no trecho, contrapõe mansos e civilizados, como se a mansidão (associada a não-resistência) fosse contrária a civilização, podendo esta ser associada, portanto, a uma suposta coragem na conquista e a um suposto heroísmo no desbravamento, como podemos perceber também na forma como Lefort se refere aos bandeirantes:
Notadamente os paulistas muito concorreram para o povoamento de Minas. Primeiro, em busca de índios; depois, de minérios e pedras preciosas; os bandeirantes levaram bem longe a civilização e o progresso. (1970, p. 17)
Nos tempos mais antigos, [os índios] foram combatidos, em 1636 e 1639, pelo destemido sertanista [grifo nosso] Jaques Félix [...] (1996, p. 8)
O elogio aos bandeirantes neste autor, colocando-os como promotores de civilização e progresso, contrasta com o relato que ele faz a respeito de alguns povos indígenas do sul de Minas Gerais, caracterizando-os como ferozes e de “temperamento agressivo” (1996, p. 7).
Além da abordagem de Armelim Guimarães sobre os indígenas de Itajubá, temos também importantes os relatos de Luís Barcellos de Toledo e Luiz Gonzaga Teixeira a respeito da história de Cristina. O caso de Luís Barcellos de Toledo é peculiar, pois sua obra O passado da Christina não faz nenhuma menção a indígenas locais e é justamente este silêncio sobre os indígenas que nos interessa nesta abordagem, assim como já foi objeto de análise em outras produções (GUIMARÃES, 2017).
Luís Barcellos de Toledo, ao escrever sua obra O passado da Christina, informa que “Baependy, Ayuruoca e Pouso Alto e outros povoados de Minas contavam mais de meio século de vida e o nosso Sertão estava ainda completamente deserto” (TEIXEIRA, 2013, p. 296). Aqui, ele se refere ao final do século XVIII, mas também faz entender que o “deserto” cristinense se devia a ausência de ouro na região, o que desestimulou os aventureiros. No entanto, Lefort (1993, p. 146) informa, a respeito de Cristina no início do século XIX:
Em uma informação do vigário de Pouso Alto – Pe. José Maria Fajardo de Assis – em 1825, assim descrevia a Capela do Espírito Santo possuir nada menos que 302 casais brancos, 658 solteiros e 125 casais pardos livres, 235 solteiros pardos livres, 11 casais pretos livres, 10 solteiros pretos livres, 5 casais pardos cativos, 43 solteiros pardos cativos, 150 casais pretos cativos, 539 solteiros pretos cativos, 6 índios casados [destaque nosso].
A informação do padre Fajardo de Assis, datada de 1825, em confronto com a informação de Toledo, referente ao final do século XVIII, pode suscitar alguns questionamentos como: estes “índios casados” referenciados em 1825 realmente eram originários daquela região, sendo descendentes de possíveis indígenas que ali estavam no final do século XVIII? Tais indígenas não poderiam ser de outras localidades, tendo chegado ali já no século XIX? Ambas são possibilidades com as quais temos que contar nos próximos passos das pesquisas. Podemos, por exemplo, nos amparar na primeira possibilidade pensando nos relatos de Armelim Guimarães (Cristina e Itajubá são vizinhos); mas, também podemos nos amparar na segunda possibilidade pensando nos relatos sobre indígenas que vinham com os exploradores (temos referências disto, por exemplo, em Bernardo Saturnino da Veiga e Monsenhor Lefort); ou ainda, podemos pensar estas possibilidades baseando-se em outras fontes a serem pesquisadas futuramente. No entanto, a primeira possibilidade se reforça quando vamos ao relato de Luiz Gonzaga Teixeira (2013, p. 66), que em sua obra Cristina afirma que
Os primeiros habitantes da região teriam vivido no período neolítico, conforme comprovam vestígios rupestres e restos arqueológicos, tais como artefatos diversos de pedra polida, encontrados em vários locais, inclusive no município de Cristina.
Sucederam-lhes os índios Puri e Coroados, simbólica e historicamente seus primeiros proprietários, que aí viviam quando chegaram os desbravadores. [...] Eram encontrados em todo o território do chamado Sertão da Pedra Branca, onde se localizam Cristina e suas cidades vizinhas.
O autor, na própria obra, cita artefatos que estão em poder de sua família e não cita as fontes que embasam sua fala, embora faça uma nota no livro falando mais profundamente dos Puri e dos Coroado; além disso, mais uma vez podemos olhar para os relatos de Armelim Guimarães como uma possibilidade de compreensão e afirmação da presença Puri e Coroado na região itajubense e cristinense.
2. ENTRE APAGAMENTOS E INTEGRAÇÃO
Dadas as evidências e abordagens sobre a presença indígena em Itajubá e Cristina, através de autores recentes como Armelim Guimarães e Luiz Gonzaga Teixeira, precisamos questionar sobre as negligências em torno dos indígenas nos relatos de autores mais antigos, como Bernardo Saturnino da Veiga, Pedro Bernardo Guimarães e Luís Barcellos de Toledo, considerando ainda um período transitório no qual o indígena “cresce” nos relatos, mas ainda subordinado ao “heroico” explorador (como no caso dos relatos do Monsenhor Lefort). No caso dos relatos de Lefort, como não há relevantes menções a indígenas de Itajubá e Cristina, não vamos nos ater às características dos relatos, destacando apenas que se vê uma frequência maior nas referências aos indígenas do sul de Minas em relação aos relatos de memorialistas mais antigos (Veiga, Toledo, etc).
Para falar do apagamento destes indígenas nos relatos, vamos pensar o termo “apagamento” como uma “indigência bibliográfica” (RESENDE, 2011, p. 1), evocando a contribuição de Maria Leônia Chaves de Resende quando afirma (op. cit., p. 1):
Ainda que uns poucos historiadores admitissem sua presença [a indígena] nesse cenário [a formação de Minas Gerais], antecipavam suas ressalvas, ao reduzirem a atuação dos índios aos primeiros contatos, sem os tomar sequer como agentes da História e da formação sociocultural de Minas. E, mesmo quando assim foram considerados, eram tidos como meros apêndices dos estudos, prestando-se, quase sempre, a penduricalhos à ação colonizadora e ao protagonismo português [...].
Objeto de raríssimas pesquisas, a etno-história indígena mineira deixou, por isso, esparsas contribuições, acabando por impor aos povos nativos um silêncio avassalador. Situação ainda mais agravada quando se percebe uma desproporção entre a produção acadêmica e a riqueza qualitativa e quantitativa das fontes depositadas nos arquivos. Se abunda farta documentação, capaz de assegurar investigações de grande fôlego e de diversos matizes, como entender então essa indigência bibliográfica sobre a trajetória dos índios em Minas Gerais?
Com este olhar da autora, compreendemos o apagamento do indígena nos relatos sobre Itajubá e Cristina como um resultado do desinteresse de quem escreveu a respeito das localidades e um consequente destaque a presença não-indígena na região, especialmente o desbravador que supostamente inicia o povoamento local.
Em Almeida (2012, p. 22), vemos outras perspectivas para o apagamento do indígena: “civilização e mestiçagem”. Ambas as perspectivas buscavam justificar uma ideia de que o índio deixa de ser índio quando se insere na civilização de moldes europeus e se mistura com os não-indígenas. A autora ainda levanta a construção do nacionalismo em uma perspectiva europeia como forma de compreender o apagamento do indígena, não permitindo, nos relatos do século XIX, as “pluralidades étnicas e culturais”.
Fernandes (2010, p. 1) destaca, sobre este apagamento, que “historiadores mineiros [...] dificilmente elegiam os indígenas como sujeitos ativos, concebendo-os, principalmente, como mão de obra, objeto de catequese ou bárbaros que obstaculizavam a colonização”. O argumento reforça a ideia de Almeida sobre o apagamento do indígena devido a questões civilizatórias e a ideia de Resende ao apresentar o indígena como alguém que, nos relatos sobre os municípios sul-mineiros, fica reduzido aos primeiros contatos; assim, o indígena dá lugar ao protagonista branco que desbrava o interior.
Partindo da ideia apresentada por John Manuel Monteiro em sua obra Negros da terra, podemos pensar em um processo de integração presente nas relações entre indígenas e não-indígenas em Itajubá e Cristina. As pesquisas ainda têm de avançar neste sentido, mas é possível discutir, atualmente, questões importantes para compreendermos um processo de integração na região.
O primeiro ponto importante diz respeito a contestação da narrativa em torno do indígena de Itajubá e Cristina. Voltamos a Armelim Guimarães quando este afirma que “mansos e conformados, à vista dos civilizados que iam chegando para se apropriarem das glebas da região, os puris-coroados iam deixando pacificamente estas terras, sem oferecerem a mínima resistência, e emigravam para o centro e o norte do País” (2000, p. 11). Oras, será que Puri e Coroado eram tão pacíficos assim, ao ponto de abandonarem terras sem resistências e entregarem estas terras aos desbravadores e “povoadores” não-indígenas? Ou ainda, mesmo que tivessem feito isto, todos saíram de suas terras? Não ficou nenhum indígena? Tais narrativas deverão ser objetos de análise, contestação e reflexão, a fim de compreendermos melhor os processos de contato e integração nas regiões itajubense e cristinense.
Outro ponto importante refere-se aos indígenas que, possivelmente, vieram de fora da região pesquisada. A vinda de indígenas junto com os exploradores não-indígenas era algo comum (VASCONCELOS, 1948, p. 53), devido ao conhecimento dos indígenas a respeito das regiões exploradas. Como era obrigatório que os desbravadores criassem arraiais para darem apoio à colonização do interior (VASCONCELOS, op. cit., p. 28), muitos que participavam das expedições (inclusive indígenas) ficavam nestes arraiais, dando origem a vilas e povoados ao longo do sul de Minas. Assim, não é difícil pensar em indígenas de fora de Minas Gerais passando a viver nas regiões de Itajubá e Cristina, exploradas por sertanistas vindos de São Paulo (GUIMARÃES, 1998). Estes indígenas já estariam integrados a nova realidade social, sem, no entanto, ser meros receptores de normas civilizatórias exteriores; pelo contrário, são agentes históricos que ressignificaram suas culturas diante dos novos tempos (contatos com os não-indígenas), podendo ser caracterizados como “índios coloniais” (RESENDE, 2003, p. 3).
Integrados à sociedade que se formava especificamente na região de Itajubá e Cristina, os indígenas (sejam eles da própria região ou de outras regiões) mantém presença até os dias de hoje (de acordo com o Censo de 2010, em Itajubá temos 41 indígenas, enquanto em Cristina há apenas um indígena[5]).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa em História Indígena na região dos municípios de Itajubá e Cristina deve continuar, assim como nos municípios limítrofes ou próximos, devido a pouca produção (memorialista ou acadêmica) dedicada aos indígenas desta região. A compreensão do papel do indígena na Serra da Mantiqueira auxilia no entendimento dos processos históricos que caracterizaram a região nos séculos XVII a XIX, confrontando desbravadores e exploradores não-indígenas com povos que, de forma sedentária ou nômade, viviam na Mantiqueira com suas múltiplas formas de organização social e cultural.
Retomando o título desta pesquisa, quando falamos em “contribuição do indígena à cultura branca”, estamos destacando o protagonismo do indígena como sujeito histórico ativo e indicando o seu papel na integração com as novas realidades sociais e culturais vindas com os não-indígenas e com moldes europeus.
Apesar do apagamento em relatos do século XIX, vemos um resgate da memória indígena de Itajubá e Cristina em autores memorialistas da virada do século XX para o XXI, ora de forma tímida (como em Luiz Gonzaga Teixeira), ora de forma mais frequente (como em Armelim Guimarães). Quanto a produções acadêmicas, esta pesquisa ainda desconhece autores que tenham se dedicado aos indígenas de Itajubá e/ou Cristina, embora se admita que, prosseguindo as pesquisas, podem surgir referências em autores dos meios acadêmicos.
A integração deixou, por exemplo, marcas culturais na sociedade que se formou a partir do surgimento das vilas de Nossa Senhora da Soledade (Itajubá) e Espírito Santo dos Cumquibus (Cristina). Para pensarmos nisto, temos as pesquisas de Silva (2015) e Guimarães (2016), que, ao pensarem costumes de municípios próximos aos pesquisados aqui, nos permitem apontar para as marcas culturais presentes no cotidiano itajubense e cristinense, como detalhes peculiares na fala, costumes agrícolas, entre outras.
As pesquisas prosseguirão, buscando compreender melhor algumas lacunas que não foram respondidas ainda, como, por exemplo, um aprofundamento sobre os contatos entre indígenas e não-indígenas, as posturas dos indígenas diante das novas realidades sociais e culturais, os possíveis conflitos com os não-indígenas, entre outras lacunas a serem pesquisadas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] José Armelim Bernardo Guimarães (seu nome completo) era filho de Pedro Bernardo Guimarães e neto do romancista Bernardo Guimarães (1825-1884), autor de A Escrava Isaura. Para saber mais sobre este escritor: https://sites.google.com/site/sitedobg/Home/descendentes/armelim-guimaraes
[2] Luiz Gonzaga Teixeira, autor de História de Cristina, é neto de Luís Barcellos de Toledo.
[3] O Pico dos Marins fica em território paulista, na divisa dos municípios de Piquete e Cruzeiro. Para maiores informações sobre a localização do Pico dos Marins: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/mapas/GEBIS%20-%20RJ/SF-23-Y-B-VI-2.jpg
[4] Advogado, escritor, fazendeiro, deputado, ministro do Supremo Tribunal Federal e Procurador-Geral da República. Nascido em Campanha (MG) e falecido no Rio de Janeiro. Para saber mais sobre sua vida: http://www.stf.jus.br/portal/ministro/verMinistro.asp?periodo=stf&id=188
[5] Não é possível saber, porém, se estes indígenas são descendentes dos que viviam na região nos séculos XVIII e XIX. Mesmo assim, é importante perceber que a presença indígena sobrevive, mesmo que modestamente nos dias atuais.