INSOLVÊNCIA TRANSNACIONAL
Por Genessy Assunção Souza | 09/05/2018 | DireitoGENESSY ASSUNÇÃO SOUZA [2]
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo investigar a insolvência transnacional e seu tratamento pela doutrina nacional, haja vista a falta de legislação específica no ordenamento jurídico pátrio. Foi analisado o conceito de insolvência transnacional, bem como as correntes de jurisdição universalista e territorialista. Analisou-se também o julgamento do pedido de recuperação judicial do Grupo OGX, bem como o tratamento da insolvência transnacional no Projeto de Novo Código Comercial.
INTRODUÇÃO
Em outubro de 2013, quando o Grupo OGX ingressou com processo de recuperação judicial perante o Poder Judiciário do Rio de Janeiro, a comunidade jurídica nacional se viu diante de um tema até então pouco tratado pela doutrina e jurisprudência: a insolvência transnacional. Ocorre que as empresas do grupo OGX eram sediadas e possuíam ativos em outros países[3]. O ocorrido despertou a atenção dos comercialistas e internacionalistas brasileiros sobre esse instituto, até então quase desconhecido no país.
Verificou-se, diante da inexistência de legislação específica no Brasil regulamentando a insolvência transnacional, a necessidade de se estabelecer critérios para se regulamentar a falência e a recuperação judicial das chamadas empresas transnacionais, atores estes cada vez mais presentes e atuantes na economia globalizada.
O presente trabalho abordará exclusivamente a insolvência das chamadas empresas transnacionais. Não será analisada a insolvência civil. A doutrina brasileira sobre o tema é ainda bastante escassa. Os poucos artigos jurídicos encontrados sobre o tema citam como referências autores estrangeiros e a tese de doutorado defendida por Paulo Fernando Campana Filho em 2013 na USP.
Desse modo, o presente estudo abordou, na primeira parte, as soluções apontadas pela doutrina para viabilização do instituto no território nacional.
Em seguida, foi analisada a proposta legislativa sobre o tema, em trâmite perante o Congresso Nacional.
Por fim, teceu-se uma conclusão, acerca da necessidade de regulamentação da insolvência transnacional no ordenamento jurídico pátrio.
1. INSOLVÊNCIA TRANSNACIONAL: CONCEITO E REGULAÇÃO
Embora nenhum dos autores consultados tenha elaborado um conceito claro e preciso do instituto “insolvência transnacional”, também chamada de “insolvência transfronteiriça” (do inglês: cross-border insolvency), podemos conceituá-lo pelo desmembramento dos termos “insolvência” e “transnacional”.
O termo “insolvência” deve ser entendido aqui no seu sentido mais amplo para se abarcar “todo o fenômeno de crise econômico-financeira, seja ele voltado para o encerramento da atividade ou tentativa de sua recuperação” (BECUE, 2016, p. 248).
Já o termo “transnacional” segundo o Dicionário Aurélio, indica aquilo “que ultrapassa os limites da nacionalidade”, o mesmo que “multinacional”.
Desse modo, podemos conceituar insolvência transnacional como a insolvência envolvendo empresas transnacionais ou multinacionais. Para conceituarmos empresas transnacionais e multinacionais, faz-se necessário compreender o processo de internacionalização das empresas. Segundo Ludmila Culpi:
O processo de internacionalização de empresas é um fenômeno central para compreendermos a atual dinâmica das relações internacionais. Tradicionalmente, as teorias clássicas de relações internacionais não consideravam as empresas multinacionais ou transnacionais como atores do sistema internacional, o que mudou especialmente a partir da década de 1970, quando os países deixaram de ser entendidos como os únicos atores desse sistema, embora ainda sejam considerados centrais. As empresas, então, devido ao poder de influência, à capacidade econômica que têm e ao papel que exercem no comércio e nas finanças internacionais, se tornaram, desde então, elementos fundamentais na governança global. (CULPI, 2016, p. 49)
Ludmila Culpi (2016, p. 62-64) diferencia empresas internacionais, multinacionais e transnacionais. Segundo a autora, são empresas internacionais, “todas aquelas que tenham filiais instaladas em mais de um país”. Já, as multinacionais, “são mais abrangentes, porque são grandes corporações oligopolistas”. Já as empresas transnacionais, “diferentemente das multinacionais, perdem sua referência nacional ao não terem capital social pertencente a qualquer país”.
A empresa transnacional está acima das fronteiras geográficas, pois as distâncias têm sido diminuídas pelo avanço das comunicações e dos transportes, mas também acima das fronteiras representadas pela língua, pela cultura, pela mentalidade e pela tecnologia. A empresa transnacional opera no mercado financeiro nas diferentes bolsas de valores ao redor do mundo. (CULPI, 2016, p. 65).
Nesse cenário, verifica-se que o fenômeno da insolvência transnacional é uma realidade mundial, inclusive no contexto brasileiro (BECUE, 2016, p. 248). Segundo Sabrina Becue:
Num cenário de transações puramente nacionais, as partes envolvidas estão cientes do regime legal aplicável à insolvabilidade e da marcha processual que se sucede. No entanto, a abertura dos mercados para exportação e a internacionalização das empresas adicionam um elemento crucial na equação da crise econômico financeira: como lidar com contratos e credores situados em outras jurisdições, sobretudo em repeito aos direitos e obrigações garantidos lá fora que podem não corresponder exatamente com a norma aplicável internamente e com o regime de execução? Mais: com ponderar os princípios de soberania nacional e ordem pública com os eventuais efeitos advindos de sentenças estrangeiras? (BECUE, 2016, p. 248).
Apesar da importância do tema, verifica-se que a legislação pátria é totalmente silente sobre o assunto, o que é causa de grande insegurança jurídica, vez que existem duas correntes completamente distintas sobre a matéria – a territorialista e a universalista – o que conferem uma enorme margem de discricionariedade ao Poder Judiciário, que também ainda não pacificou o entendimento sobre o assunto.
A corrente universalista, segundo Sabrina Becue (2016, p. 249), “sustenta a concentração das normas e jurisdição aplicáveis como melhor solução para enfrentar todos os possíveis conflitos”. Desse modo, “restam às cortes nacionais dos países que guarnecem bens ou são de residência de devedor e credores o dever de prestar assistência e respeitar a aplicação da lei-regente”. Já o territorialismo, ensina Becue, “defende a autonomia de cada jurisdição para administrar os bens e credores localizados em seu território segundo a legislação doméstica” (BECUE, 2016, p. 249).
O debate entre territorialistas e universalistas vem ganhou impulso com a crise do petróleo da década de 1970, conforme ensina Paulo Fernando Campana Filho:
O acalorado debate, que ganhou impulso com os reflexos da crise do petróleo da década de 1970, culminou na adoção, pelas Nações Unidas, da Lei Modelo da UNCITRAL sobre Insolvências Transnacionais, em 1997, e, pela Comunidade Europeia, de um regulamento comunitário a respeito do assunto, em 2000 – ambos incorporando formas modificadas ou mitigadas do universalismo. A tensão entre universalismo e territorialismo deixou, ainda, um extenso legado de casos, especialmente envolvendo países de tradição jurídica anglo-saxã, em que acordos de cooperação ad hoc foram celebrados para permitir a coordenação entre processos, de modo que uma pluralidade de insolvências pudesse, na medida do possível, ser orquestrada como se fosse uma única falência de alcance universal.
O confronto entre essas duas correntes sobre o tratamento jurídico da insolvência transnacional ficou claro no julgamento do pedido de recuperação judicial do Grupo OGX, pelo Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro entre 2013 e 2014, conforme será analisado no capítulo seguinte.