Não é incomum na vida acadêmica lermos, ou até mesmo discutirmos em debates acalorados, que a cultura indígena é aquela ideal, aquela que deve ser um exemplo a ser seguido pelas outras culturas. No entanto, valorar culturas e colocá-las em uma escala de melhor ou pior, é uma atividade muito delicada, além de difícil de quantificar tal escala. Porém, utilizando outro viés, em que se busca aproximar o que se tem em comum do ser humano em sociedade, é possível verificar que somos muito mais iguais que diferentes, e esta diferença está mais na forma de paradigmas românticos do que lastreados na realidade.

          O primeiro grande paradigma é a ideia de que todos os índios são iguais e que toda cultura indígena é igual. Segundo dados do IBGE sobre os povos indígenas baseados no censo de 2010, há aproximadamente 305 etnias e, ao menos 274 línguas. Etnia significa grupo que é culturalmente homogêneo. Do grego ethnos, povo que tem o mesmo ethos, costume, e tem também a mesma origem, cultura, língua, religião, etc. A etnia, ou grupo étnico, divide uma uniformidade cultural, com as mesmas tradições, conhecimentos, técnicas, habilidades, língua e comportamento. Desta forma, não há de se falar no índio como gênero sem qualquer tipo de diferenciação em suas culturas. Há sim, grandes diferenças, dai porque temos 305 etnias somente no Brasil.

          O segundo grande paradigma é que não existe entre cultura indígena a dominação de homem sobre homem, de que a afirmação de Thomas Hobes, o “homem é lobo do homem”, não se aplicaria sobre o indígena. A dominação homem sobre homem também existe na cultura indígena, por exemplo, Rodrigo Otávio em sua obra Os Selvagens Americanos Perante o Direito descreveu:

É preciso notar também que, bem antes da ocupação europeia, as tribos do Norte haviam adquirido o hábito de associação para melhor se defenderem contra as tribos inimigas; e essa prática, desenvolvendo nos diversos grupos indígenas o sentimento de solidariedade, aumentava sua força e as tonava mais temidas. […] No princípio do XII século, essa forte aglomeração tornou-se, entre os pele vermelha, a força preponderante. Eles exterminavam os povos inimigos, como foram os casos dos Andirodacks, repelidos para regiões longínquas, e dos Mohegans, varridos de toda a região do Hudson e Connecticut.”

          O terceiro grande paradigma é a ideia do índio ateu, de que a religião não fazia parte de sua cultura. Assim como o não indígena, a religião também existe na sua cultura. Talvez o que se queira com a afirmação de que não existe religião entre os índios é afirmar que não existe a religião como conhecemos entre os não indígenas, com por exemplo, a judaica-cristã, mas isso não implica afirmar a exclusão da religião entre os índios. Rodrigo Otávio bem explica essa afirmação:

Que os selvagens viveram sem fé, sem lei, sem rei, é, uma afirmação que não se poderá aceitar sem reservas. Devem ser considerados como rudimentos de fé o plano primitivo e rudimentar sobre o qual se passava, sua existência, o receio supersticioso de certos elementos naturais como o raio e o trovão, uma certa significação espiritual que atribuíam ao sol e à luz, o respeito que lhes inspiravam os feiticeiros (pajés), que eles tinham por adivinhos e mágicos.”

           Outro grande paradigma é que os principais anseios do não índio, em relação ao modo de vida em sociedade, principalmente em relação aos direitos do ser humano, são questões que os índios não conheciam pois já viviam/vivem em uma situação de fato, perfeita, nas quais os não indígenas deveriam seguir. Vem da ideia de que há uma homogeneidade da cultura indígena e que todo índio é bom. Percebe-se nos relatos a seguir feitos por Carlos Frederico Von Martius, um exemplo de que o índio pode ter reações que não são tidas como ideais pelo não índio, como: “O selvagem brasileiro, às vezes, vende os filhos – infelizmente temos, que constatar – quase sempre aos brancos e raramente aos homens da própria cor” outro exemplo, em relação ao tratamento dado as mulheres, o mesmo autor afirma: “A grande dependência das esposam obriga-as a serem sempre submissas aos maridos. Daí provem o crime corrente em muitas tribos de provocar o aborto. Entre os Guaycurús é muito comum, que as mulheres só depois de trinta anos comecem a parir, educando filhos. […] Consta que os Guarás do Paraguay enterram vivos os filhos femininos. Também o abandono do recém-nascido pela mãe é consequência do estado de extrema inferioridade em que se acham”. Outro comentário um tanto inquietador são as relações de guerra como: “uma inimizade constante e hereditária entre certas tribos, está intimamente ligada com o seu nacionalismo. Pedindo a um selvagem o nome de sua tribo ele quase sempre sem disso ser interpelado, dá também o nome da tribo que é sua inimiga mortal. Assim, cada Mundrucú entende como inteiramente natural, até como dever sagrado para com o seu povo, de perseguir por toda parte o pobre e fraco Parentintim, cortar-lhe a cabeça e mumificá-la para figurar como um troféu horrível.

          Deve-se ter em mente que a descrição dos paradigmas não é uma valoração negativa ou positiva em relação a cultura indígena, mas apenas um alerta de quão próximos são as culturas indígena da não indígena. Assim, em ambas culturas, há aquelas que são referência de uma boa convivência social como há aquelas que não o são. A grande questão dos paradigmas expostos é desmitificar que certos fatos sociais, ditos ruins do mundo não indígena, também acontece/aconteceram naquela cultura. Desta premissa pode-se afirmar que não é exclusividade do não índio de praticar atos cruéis e injustos, o índio também o fez, e assim, pode-se facilmente chegar a conclusão que a cultura indígena, como um referencial universal, é mais romantismo do que realidade fática.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

OTÁVIO, Rodrigo. Os Selvagens Americanos perante o Direito. 1 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1946.

MARTIUS, Carlos Frederico Von. O Direito entre os Indígenas do Brasil. 1 ed. São Paulo: Edições e Publicações Brasil, 1938.