Introdução

O Sistema Único de Saúde (SUS) funciona como uma espécie de rede que deve estar integrada para que o atendimento aos usuários não sofra interrupções, sendo o indivíduo acompanhado nos diversos níveis de atenção à saúde de acordo com suas especificidades. O sistema inicialmente organizado como uma pirâmide contém a atenção básica (ou nível primário) na base, sendo ela considerada a porta de entrada do usuário nesse sistema. O nível secundário estaria localizado na parte intermediária composta por unidades de urgência e emergência, além de consultas especializadas. Finalmente, no topo da pirâmide, tem-se o nível terciário de atenção que abrange as hospitalizações e procedimentos de alta complexidade. Essa hierarquia ainda é mantida e é necessária para a organização segundo níveis de complexidade, porém, com uma visão mais ampla do processo, onde estes níveis se interligam e se comunicam de forma a manter o vínculo com o usuário.

Entretanto, a atenção básica não tem conseguido ser a porta de entrada mais importante dos pacientes, e esta função ainda está centrada nos hospitais, públicos ou privados, e nos serviços de urgência/emergência.1 Nesse contexto, as Unidades de Pronto Atendimento (UPA) assumem papel essencial no acolhimento desses pacientes e do seufluxo no sistema como um todo. Atualmente, em Belo Horizonte existem 7 unidades de pronto atendimento nesses moldes sendo, portanto, necessário que estejam organizadas de forma a atender integralmente a população.

Assim, é imprescindível que haja efetivamente a articulação dos serviços de saúde, nos diferentes níveis de atenção, através de uma relação dialética entre eles, respondendo adequadamente, com eficácia e com eficiência, às condições agudas e crônicas da população2, especialmente quando o acesso aos serviços de saúde se iniciam nos níveis secundário e terciário.

O sistema de referência e contra-referência assume, nesse sentido, papel fundamental para que esse processo ocorra efetivamente. Referenciar um paciente implica em transferi-lo a um estabelecimento especializado a partir do Centro de Saúde. Porém, a comunicação deve ocorrer também no sentido oposto, ou seja, através da contra-referência desse caso, ocorrendo assim uma dinâmica constante no sistema.3 Devem existir normas claras para o "estabelecimento de mecanismos e fluxos de referência e contra-referência, com o objetivo de garantir a integralidade da assistência e o acesso da população aos serviços e ações de saúde de acordo com suas necessidades"4, evitando dessa forma, os furos nos serviços e no acompanhamento dos pacientes. Não deve haver hierarquia entre os diferentes nós da rede, e sim uma organização horizontal dos serviços, pois todos são igualmente importantes para os objetivos propostos.2

"As redes de atenção à saúde devem ser integradas por sistemas logísticos, sustentados por potentes tecnologias de informação. A ausência de sistemas logísticos adequados é que faz com que a referência e contra-referência no SUS sejam um discurso reiterado, mas sem possibilidade de concretização".2

O que se observa no cotidiano das unidades de saúde é que, rotineiramente, a referência e contra-referência não ocorre de forma sistemática, ficando o usuário solto no sistema, sem possibilidades de acompanhamento do seu estado de saúde de maneira integral.

Torna-se necessário uma reflexão acerca do tema e sobre a importância do preenchimento das guias e do encaminhamento do usuário para o nível de complexidade adequado. A não adesão a este importante instrumento de trabalho e de informação atinge diretamente os usuários e também o sistema de saúde.

Articulação dos Serviços através da Referência e Contra-referência

 

A NOB-SUS 01/96 quando traz a responsabilidade dos municípios no que se refere à atenção básica, compreende a necessidade da "criação de vínculos entre a população e os serviços" (grifo meu). Nesse sentido, traz como responsabilidade do município desenvolver métodos de planejamento e de gestão, incluídos os mecanismos de referência e contra-referência, e ações que estabelecem esta conexão e fluxo do paciente para os serviços de maior complexidade. Para MENDES (1996), a hierarquização do sistema exige um fluxo e contrafluxo de pacientes e informações, gerenciais e tecnocientíficas, por meio dos diferentes níveis do sistema.

O que se pretendia com a pirâmide era possibilitar uma racionalização do atendimento, através desse mecanismo de referência e contra-referência, permitindo um fluxo ordenado de pacientes tanto de baixo para cima como de cima para baixo. Isso permitiria que as necessidades das pessoas fossem atendidas nos espaços adequados, com tecnologias adequadas, além do acompanhamento até a resolução de todos os seus problemas, assegurando assim, a continuidade dos serviços.1

Entretanto, o que se observa na prática é que após dez anos de implantação do SUS o sistema ainda caminha de forma segmentada e desarticulada, sendo que na prática as guias de referência e contra-referência não são preenchidas pelos profissionais responsáveis. Esta atitude impossibilita um atendimento integral do paciente. Percebe-se que os usuários têm que buscar, por conta própria, os serviços e procedimentos que achar que convém, e onde for possível o atendimento de que necessita. "Todos aqueles que têm atuado no setor saúde ou precisado se utilizar dele nos últimos anos podem afirmar, sem muitas dúvidas, que anda bastante difícil visualizar qualquer coisa que, de fato, se aproxime da imagem projetada da pirâmide."1

Desta maneira, os serviços ambulatoriais especializados mantêm certas "clientelas cativas", já que não os contra-referenciam, sendo que estes usuários poderiam muito bem ser acompanhados em nível de rede básica. As UPA ficam como "peças soltas" dentro do sistema devido a esta falta de articulação tanto com os serviços de atenção básica, quanto com o nível terciário de atenção. No primeiro caso, deveria funcionar como um suporte mais especializado e com investimentos tecnológicos mais complexos, de forma a atender as referências vindas da rede básica. Por outro lado, deveria ser para o nível terciário como um "ambulatório de egressos", que atenderia à demanda de pacientes que apesar de ainda necessitar de atendimento diferenciado, poderia recebê-lo fora do ambiente hospitalar, desafogando, assim, este nível de atenção.1

Como a contra-referência não é atividade rotineira nesses serviços, não há como manter a articulação formal com a atenção primária. O não cumprimento dessa norma implica sobre a qualidade da assistência prestada pelas unidades de pronto-atendimento. A alta demanda de usuários, dificulta o atendimento àqueles que realmente precisam da urgência e emergência e àqueles cujo atendimento ambulatorial acaba restrito apenas à queixa apresentada naquele momento, não compreendendo a integralidade da atenção.7

A integralidade deveria nortear as práticas de todos os profissionais da saúde e a organização do processo trabalho, buscando uma melhoria nas condições de vida da população. Essa ação intersetorial em saúde, no que tange aos níveis de complexidade, assegura a finalização do cuidado através dessa rede de serviços e por meio do sistema de referência e contra-referência.7 Assim, a articulação dos serviços torna-se fundamental para o cumprimento desse direito assegurado por lei aos usuários.

Deve-se pensar o motivo que leva aos profissionais a não utilizarem este mecanismo tão importante de articulação no serviço. Muitas vezes por falta de organização do trabalho não se dá a atenção necessária ao processo de referência e contra-referência dos usuários. Isso nos faz refletir sobre até que ponto esses profissionais estão bem orientados quanto ao trabalho que executam e sua importância para se estabelecer os princípios propostos com a institucionalização do SUS.

É perceptível também a falha no gerenciamento do sistema pelos órgãos administrativos. "A ausência de mecanismos eficazes de regulação e ordenamento" do cumprimento da referência e contra-referência faz com que isso não seja interpretado com a seriedade que lhe é imprescindível. Apesar desse processo ocorrer o tempo todo, o preenchimento adequado das guias não é efetivado. Isso contribui para a persistência de sérios problemas no sistema de saúde brasileiro5.

Uma solução possível para este impasse seria efetivar uma proposta iniciada com a NOB-SUS 01/96, a partir das Bases para um novo Modelo de Atenção – Saúde:

"Cada sistema municipal deve materializar, de forma efetiva, a vinculação aqui explicitada. Um dos meios, certamente, é a institucionalização do Cartão SUS-MUNICIPAL, com numeração nacional. Essa numeração possibilita uma melhor referência intermunicipal e garante o atendimento de urgência por qualquer serviço de saúde, estadual ou privado, em todo o país".

Esse cartão de identificação dos usuários além de permitir ao profissional avaliar os procedimentos pelos quais o paciente já passou, deveria obrigar o mesmo a referenciá-lo ao nível de maior complexidade ou contra referenciá-lo para a atenção básica, reconstruindo a trajetória e o vínculo da população com as unidades de saúde.

Conclusão

O não preenchimento das guias de referência e contra-referência pelos profissionais alimenta as falhas no sistema de saúde e prejudica os seus usuários. Essa atitude faz com que os pacientes superlotem os serviços de urgência e emergência com problemas que poderiam ser resolvidos na atenção básica. Além disso, o não acompanhamento desse paciente pelas equipes de saúde de forma integral, atendendo todas as suas necessidades, faz com que ele tenha que retornar frequentemente às unidades de pronto atendimento, impedindo inclusive o atendimento daqueles que realmente necessitam desse tipo de serviço.

Deste ponto surgem dois problemas para o sistema: o paciente que não é acompanhado integralmente, não recebe atenção preventiva necessária, e com o tempo pode evoluir para quadros mais graves, aumentando o ônus para o governo e em segundo lugar, a superlotação das UPA impede que esse atendimento flua adequadamente e atue como suporte ao nível terciário, que também fica sobrecarregado.

Torna-se necessário redesenhar os movimentos reais dos usuários, e refletir sobre novos fluxos e relações dentro do sistema. Compreender o paciente de forma holística é fundamental para o seu acolhimento e direcionamento. Além disso, para se construir um sistema mais humanizado e comprometido com a vida das pessoas, é essencial que haja incorporação de novas tecnologias que permitam visualizar esses caminhos e melhorar o trabalho em saúde.Garantir a integralidade do atendimento é de responsabilidade de todos os níveis de atenção e profissionais da área da saúde, e não uma batalha individual de cada paciente, que deveria sempre ser encaminhado para o centro de saúde mais próximo de sua residência, a alguma especialidade ou a qualquer outra possibilidade de existente no sistema.1

Conclui-se que a referência e contra-referência é um método eficaz de vinculação e acompanhamento do fluxo do usuário no sistema, mas que pode ser aprimorado de forma a facilitar o trabalho dos profissionais de saúde, especialmente nesse momento em que os sistemas de informação estão sendo cada vez mais utilizados no setor saúde. Devem ser desenvolvidos também métodos de conscientização e de capacitação profissional para que este importante meio de comunicação se torne eficaz e seja utilizado coerentemente com os preceitos a que se propõe o SUS.

Referências Bibliográficas

1 CECÍLIO, Luiz Carlos de Oliveira. Modelos tecno-assistenciais em saúde:da pirâmide ao círculo, uma possibilidade a ser explorada.Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(3):469-478, jul-set, 1997

2 Brasil. Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS). SUS avanços e desafios. Brasília Conass, 2006 - cap. 4 (disponível em http://www.conass.org.br)

3 NOVAES, Humberto de Moraes. Ações integradas nos sistemas locais de saúde (SILOS) - Análise Conceitual e Apreciação de Programas Selecionados na América Latina – Biblioteca Pioneira de Administração e Negócios. Livraria Pioneira e Editora, São Paulo, 1990

4 NOB-SUS 01/96

5 SILVA, Pedro Luiz Barros. SERVIÇOS DE SAÚDE: o dilema do SUS na nova década.SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1): 69-85, 2003

6 MENDES, E.V. Um novo Paradigma Sanitário: a produção social da Saúde. In: Mendes, E.V. Uma Agenda para Saúde. São Paulo. HUCITEC, 1996. pp 233-294

7KOVACS, Maria Helena, FELICIANO, Katia V. O., SARINHO, Sílvia W. et al. Acessibilidade às ações básicas entre crianças atendidas em serviços de pronto-socorro. Jornal de Pediatria (Rio de Janeiro), Maio/Junho 2005, vol.81, no.3, p.251-258. ISSN 0021-7557

8 Guia do Usuário do SUS BH – Secretaria Municipal de Saúde – Prefeitura de BH