Implicações do diagnóstico de TDAH e a Medicalização na educação: Uma compreensão por meio da Psicologia Histórico-Cultural
Por Isabella Vaini Alves | 10/03/2020 | SaúdeRESUMO
O presente trabalho apresenta o resultado parcial da revisão teórica sobre a questão do estabelecimento do diagnóstico do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade TDA/H e a medicalização na educação. Baseando-se nos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural, que é elaborada pelos psicólogos Lev S. Vigotski, Alexander R. Luria e Alex N. Leontiev, fundamentada no Materialismo histórico dialético, que explica a formação e o funcionamento do psiquismo humano conceituando o processo de desenvolvimento histórico do homem estruturado na produção material alcançada pelo trabalho. Apresentamos neste artigo uma reflexão sobre o processo histórico que deu origem ao TDA/H, o desenvolvimento epistemológico do conceito desse Transtorno, os principais medicamentos utilizados para o tratamento, os efeitos que os mesmos desencadeiam na criança durante o processo de educação escolar e a confiabilidade do diagnóstico. Este estudo visa à análise para compreensão mais aprofundada de uma prática atual que vem ocorrendo que é um processo de medicalização de crianças com dificuldades escolares encaminhadas para atendimento na área da saúde, tendo em vista que vem ocorrendo muitos diagnósticos precoces causando sérios danos para criança e a medicalização exacerbada vem crescendo dia após dia na nossa sociedade. Na tentativa de subsidiar a análise e a compreensão sobre o TDA/H, apresentamos os aspectos teóricos desse referencial que aqui apontamos a seriedade, o conhecimento, e a excelência no manejo das técnicas e testes indicados para auxiliar na identificação da criança com TDAH mostrando a importância do papel do psicólogo no enfrentamento dessas questões do desenvolvimento que envolve a comunidade escolar.
Palavras-chave: Medicalização. Educação. Diagnóstico. TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade). Psicologia.
INTRODUÇÃO
De acordo com o levantamento teórico, constatou-se que grande parte dos encaminhamentos com queixas escolares aos centros de diagnósticos, hospitais e clínicas, tem o TDAH como principal causa. Algumas dificuldades foram detectadas no estabelecimento do diagnóstico e a intervenção, devido à semelhança dos sintomas com outros quadros clínicos de distúrbios comportamentais e dificuldades de aprendizagem.
A definição do diagnóstico para o TDAH é recente, surgiu na passagem do século XIX para o XX. Inicialmente, os comportamentos similares foram descritos como desordens causadas por problemas cerebrais, tais como traumatismo craniano e outras infecções no Sistema Nervoso Central. Ao longo da história o Transtorno de Déficit de Atenção recebeu várias denominações, como lesão cerebral mínima, disfunção cerebral mínima, síndrome hipercinética e distúrbio de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TOLEDO E SIMÕES, 2003).
Somente em 1980, de acordo com essas autoras, a Academia de Psiquiatria (APA), passou a utilizar Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade – TDAH para compor o quadro e unir os termos relacionados ao desvio de comportamento e distúrbios de aprendizagem usados.
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-V, o mais recente atualizado em 2014, descreve o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade como um advindo dos Transtornos do Neurodesenvolvimento, que é apresentado pelos níveis prejudiciais de desatenção, desorganização e/ou hiperatividade-impulsividade. Pode-se perceber a incapacidade de permanecer em uma tarefa, devido a desatenção e a desorganização que envolve. Devido a Hiperatividade –impulsividade participam de atividades excessivas, inquietação, que torna-se uma incapacidade de permanecer sentado e de aguardar, se intromete em atividade de outros. O TDAH surge na infância e pode persistir na vida adulta.
Para melhor compreensão os critérios para o diagnóstico do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, foram divididos em A, B, C, D e E no DSM-V, p. 59-.
No critério A, ocorre um padrão persistente de desatenção e/ou hiperatividade-impulsividade que se envolve no funcionamento e no desenvolvimento que ocorrem frequentemente.
1) Na desatenção é necessário apresentar seis ou mais dos sintomas persistentes pelo menos por seis meses, gerando impacto negativo em atividades sociais, acadêmicas e profissionais. Dificuldade em prestar atenção nos detalhes ou por descuido acaba cometendo erros nas tarefas escolares, no trabalho e em outras atividades. Não consegue manter atenção nas atividades lúdicas. Demonstra não escutar quando alguém lhe dirige a palavra diretamente, como se estivesse distraído ou distante. Dificilmente segue as instruções até o fim e não consegue terminar trabalhos escolares, tarefas ou deveres no local de trabalho. Dificuldade em organizar e gerenciar tarefas que são sequencias, assim como, dificuldade em manter em ordem materiais e objetos pessoais, o trabalho é sempre desorganizado, não gerência bem o tempo, não consegue cumprir prazos. Evita se envolver em tarefas que requer esforço mental prolongado. Evita em se envolver em atividades que exigem esforço mental prolongado. Perdas de objetos necessários para desenvolver as tarefas. Distrai-se facilmente com estímulos externos. É esquecido nas atividades quotidianas.
2) Na hiperatividade e impulsividade é necessário apresentar seis ou mais dos sintomas persistentes pelo menos por seis meses, ocorre em grau inconsciente e tem um impacto negativo nas atividades sociais e acadêmicas e/ou profissionais. Frequentemente remexe ou batuca as mãos ou os pés ou se contorce na cadeira. Frequentemente levanta da cadeira em situações em que se espera que permaneça sentado. Frequentemente corre ou sobe nas coisas. Com frequência é incapaz de brincar ou se envolver em atividades de lazer calmamente. Com frequência “não para”, agindo como se estivesse “com o motor ligado”. Frequentemente fala demais. Frequentemente deixa escapar uma resposta antes que a pergunta tenha sido concluída. Frequentemente tem dificuldade para esperar a sua vez. Frequentemente interrompe ou se intromete.
No critério B, que verificado que vários dos sintomas de desatenção ou hiperatividade-impulsividade estavam presentes antes dos 12 anos de idade.
No critério C, vários sintomas de desatenção ou hiperatividade-impulsividade estão presentes em dois ou mais ambientes.
No critério D, há evidências claras de que os sintomas interferem no funcionamento social, acadêmico ou profissional ou de que reduzem sua qualidade. E. Os sintomas não ocorrem exclusivamente durante o curso de esquizofrenia ou outro transtorno psicótico e não são mais bem explicados por outro transtorno mental. Determinar o subtipo: 314.01 (F90.2) Apresentação combinada: Se tanto o Critério A1 (desatenção) quanto o Critério A2 (hiperatividade-impulsividade) são preenchidos nos últimos 6 meses. 314.00 (F90.0) Apresentação predominantemente desatenta: Se o Critério A1 (desatenção) é preenchido, mas o Critério A2 (hiperatividade-impulsividade) não é preenchido nos últimos 6 meses. 314.01 (F90.1) Apresentação predominantemente hiperativa/impulsiva: Se o Critério A2 (hiperatividade-impulsividade) é preenchido, e o Critério A1 (desatenção) não é preenchido nos últimos 6 meses. Especificar se: Em remissão parcial: Quando todos os critérios foram preenchidos no passado, nem todos os critérios foram preenchidos nos últimos 6 meses, e os sintomas ainda resultam em prejuízo no funcionamento social, acadêmico ou profissional. Especificar a gravidade atual: Leve: Poucos sintomas, se algum, estão presentes além daqueles necessários para fazer o diagnóstico, e os sintomas resultam em não mais do que pequenos prejuízos no funcionamento social ou profissional. Moderada: Sintomas ou prejuízo funcional entre “leve” e “grave” estão presentes. Grave: Muitos sintomas além daqueles necessários para fazer o diagnóstico estão presentes, ou vários sintomas particularmente graves estão presentes, ou os sintomas podem resultar em prejuízo acentuado no funcionamento social ou profissional.
A PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL
De acordo com a Psicologia Histórico-Cultural, a atenção involuntária da criança nos primeiros meses de vida, tem o caráter de simples reflexos orientados por estímulos fortes ou novos. A atenção precisa passar por um processo de desenvolvimento para se tornar seletiva e voluntária. O processo de aprendizagem, com acesso ao material cultural elaborado ao longo da história da humanidade, ocupa posição de destaque nesse processo de desenvolvimento, especialmente o processo de escolarização.
A interação existente entre a criança e o adulto é a fonte do desenvolvimento da atenção. Ou seja, o adulto direciona a atenção da criança através da linguagem, orientando, nomeando, ou chamando atenção da criança para algum objeto ou situação. As formas superiores de atenção voluntária são resultado de um complexo processo de desenvolvimento, e se manifestam com formas estáveis de subordinação do comportamento regulado por instruções de adultos e posteriormente pela auto regulação.
A atenção seletiva representa um nível de evolução dessa função psíquica e se torna um dos principais requisitos para a aprendizagem. É a atenção voluntária que faz com que o estímulo seja percebido, elaborado, processado e transformado em resposta.
A aprendizagem realizada na escola ocorre pelo processamento entre o pensar, sentir, falar, ouvir e agir. Por isso, as crianças que apresentam dificuldades para controlar a própria atenção podem exibir comportamentos incompatíveis com os necessários para o processo de aprendizagem. Na sala de aula torna-se necessário impor algumas restrições que podem limitar alguns comportamentos que permitiriam produzir bons resultados acadêmicos.
A falta de controle da impulsividade do TDA do tipo hiperativo e combinado pode levar a criança a enfrentar sérios problemas comportamentais em sala de aula com as atividades que exigem concentração, reflexão e respostas elaboradas. Isto pode levar a indisposição com colegas e professores, fazendo com que apresente em seu histórico escolar registro de suspensão, expulsão, reprovação e até o abandono.
MEDICALIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO
O TDAH tem levado ao encaminhamento de escolares aos centros de diagnóstico infantil causando o aumento expressivo na comercialização de medicamentos, o que nos leva à necessidade de refletir sobre o aumento das queixas escolares e os diagnósticos que acarretam o processo de medicalização.
Segundo Collares e Moysés (1985) o termo medicalização se refere ao processo de transformar questões não médicas, que têm origem social e política, em questões médicas. Neste sentido, busca-se encontrar no campo da ciência médica as causas e soluções para problemas que discute o processo saúde-doença centrada no indivíduo, pela abordagem biológica, organicista, fazendo com que as questões sociais sejam apresentadas como problemas individuais, perdendo sua determinação coletiva.
As autoras ainda descrevem que com a criação e o crescimento de outras áreas do conhecimento envolvidas com a problemática descrita, psicólogos, fonoaudiólogos, enfermeiros e psicopedagogos estão se aliando aos médicos nessa prática biologizante, provocando a substituição do termo medicalização por um mais amplo: patologização.
Os estudos acerca da neurociência e o aumento de psicofarmacos desenvolvidos pela indústria farmacêutica faz com que aumente o número de prescrição de medicamentos para patologias psíquicas, sem que antes, ocorra a comprovação do diagnóstico. O agravante, é que a maioria dos consumidores desse mercado de medicamentos são as crianças.
As crianças acabam sendo medicalizadas, devido os comportamentos que apresentam em casa ou na escola, quando esses problemas íntimos e familiares comprometem o aprendizado e surge o fracasso escolar, tornando-se uma questão de saúde, quando a criança não corresponde aos padrões mais rígidos impostos pela sociedade. Caso a criança não se enquadre nesse padrão, deve fazer o uso do remédio que foi intitulado como, “remédio da obediência”. A medicalização na educação está tornando as crianças em pacientes clínicos e muitas vezes não considera a individualidade de cada um.
A psicologia entende o indivíduo como biopsicossocial e espiritual, cada ser humano é único na sua totalidade e isso deve ser levado em consideração diante de um diagnóstico.
[...] Cada organismo humano tem suas características peculiares; assim como não existem duas árvores iguais, também não existem dois organismos iguais. Mesmo que geneticamente sejam idênticos, no caso de gêmeos, as primeiras interações dos organismos com o ambiente já provocam diferenças entre eles, assim como: mais ou menos luz, som, enfim, diferentes estímulos que levam a diferentes reações já propiciam uma diferenciação nos dois organismos. (LANE, 2006, p.8)
Os possíveis sintomas que apontam o TDAH, são no mínimo 18, e o paciente precisa preencher esses itens para poder ser diagnosticado como tal.
Mas infelizmente o diagnóstico não passa por criteriosa avaliação de todos esses itens, ou possivelmente inicia pelo inverso, da escola, direto para um consultório médico e logo uma prescrição do remédio da obediência.
Sabemos que os medicamentos mais utilizados para o tratamento do TDAH são: Ritalina, Ritalina LA, e Concerta.
Contudo, a problemática que aqui apontamos se instala no momento do seu diagnóstico até a forma de tratamento, pois o conjunto de sintomas que se enquadra como TDAH é tão amplo que pode se facilmente diagnosticar alguém como portador do transtorno, de forma equivocada. É muito importante a seriedade, o conhecimento, e a excelência no manejo das técnicas e testes indicados para auxiliar na identificação da criança com TDAH.
Lembrando que não visamos desconsiderar a importância do medicamento para crianças que realmente apresentem algum transtorno ou patologia, porem alertarmos que o diagnóstico precoce pode trazer sérios danos para uma criança, e que a medicalização exacerbada vem crescendo dia após dia na nossa sociedade.
VERIFICAÇÃO DO DIAGNÓSTICO DO TDA/H POR MEIO DA PSICOLOGIA
Com essas afirmações compreende-se que o processo de medicalização/patologização desloca problemas de origem coletiva para a esfera individual, ou problemas sociais e políticos para problemas de saúde. E esses deslocamentos consistem na biologização e, consequentemente na normalização desses problemas. Mas essa atitude se contrapõe a um dos principais conceitos de saúde que defende o bem estar como uma condição bio/psico/social, pois reduz o ser humano apenas a um corpo biológico, determinado por células. O homem não pode ser reduzido à herança genética, pois resulta de um longo processo de desenvolvimento que contempla a cultura e a história.
Existem vários instrumentos que devem ser utilizados pelos psicólogos para avaliação de crianças com hipótese de TDA/H para delinear o diagnóstico diferencial como: Transtorno de Aprendizagem, Transtorno de Conduta, Dificuldades Escolares (pedagógicas) ou Dificuldades Familiares Significativas. Com isso, o psicólogo deve esclarecer se os comportamentos são sintomas reais e condizentes a um quadro de TDA/H ou se são respostas de outra situação. Os instrumentos que devem ser utilizados para uma análise detalhada são:
· Histórico Familiar;
· Critérios Diagnósticos de TDA/H (DSM-IV) (APA, 1994);
· Avaliação Cognitiva: WISC-V, (WESCHELER, 2013);
· Avaliação Percepto-motora: Viso Motor Bender (BENDER, 1938, apud. CIASCA, 1994);
· Avaliação Emocional: Fábula de Düss (DÜSS, 1950);
· Avaliação de Desempenho Escolar: Teste de Desempenho Escolar - TDE (STEIN, 1994);
· Avaliação Neuropsicológica: Bateria Neuropsicológica para criança Luria – Nebraska (apud CIASCA, 1994);
· Entrevista com a Professora e Análise do Material Escolar, entre outros.
CONCLUSÃO
Assim, para a Psicologia Histórico–Cultural o ser humano não se restringe as suas necessidades biológicas imediatas, é preciso compreender o homem inserido em um processo de desenvolvimento dinâmico, que passa por constantes contradições e sínteses envolvendo o natural e o histórico, o biológico e o social. A partir dessa perspectiva teórica tornou-se possível entender o processo de medicalização presente no campo da educação.
Importante ressaltar que esse processo de desenvolvimento psíquico é resultado de um processo alcançado pelo gênero humano ao longo da história da humanidade, e que na ontogênese é apropriado por cada indivíduo conforme as peculiaridades de cada pessoa. Na perspectiva desta abordagem, a relação entre os processos de aprendizagem e desenvolvimento revelou-se fundamental para o processo de humanização, ou mais especificamente, para o processo de formação para ser humano.
REFERÊNCIAS
Collares, C. A. L., Moysés, M. A. A. (1985) Educação ou saúde? Educação X saúde? Educação e saúde! In: Cadernos Cedes, n. 15. Recuperado em 7 dezembro, 2013: http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ideias_23_p025-031_c.pdf
Collares, C. A. L.; Moysés, M. A. A.(1996) Preconceitos no cotidiano escolar: ensino e medicalização. São Paulo, Cortez / FE-FCM-UNICAMP.
EIDT, N. M. & TULESKI, S. C.(2007) Discutindo a medicalização brutal em uma sociedade hiperativa. In: MEIRA, M. E. M. & FACCI, M. G. D. (orgs).Psicologia Histórico - Cultural: contribuições para o encontro entre a subjetividade e a educação. São Paulo: Casa do Psicólogo.
LANE, Silvia T. Maurer. O que é Psicologia Social. São Paulo. Brasiliense. 2006
Leite, H. A. (2010) O desenvolvimento da atenção voluntária na compreensão da psicologia histórico-cultural: uma contribuição para o estudo da desatenção e dos comportamentos hiperativos. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Maringá PR.
Toledo, M. M. Simão, A. (2003) Transtorno de Déficit de Atenção/ Hiperatividade. In: CIASCA, Sylvia Maria, (Org.) Distúrbios de Aprendizagem: Proposta de Avaliação Interdisciplinar. 2 ed. São Paulo: Casa do Psicólogo. p. 187-199
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