IDEOLOGIA 

Atílio Borges Neto

RESUMO  

Com um olhar voltado à produção de sentidos nos discursos e na vida social, o exame que se segue procurará explicitar o conceito de ideologia, partindo da concepção de Althusser. Concepção esta que se encontra na obra Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. É cabível expor que entendemos o conceito de ideologia como um pertinente fenômeno capaz de dar manutenção nas relações sociais, assim como transformá-las.  

PALAVRAS-CHAVE: Ideologia, Aparelhos Ideológicos, Relações Sociais. 

ABSTRACT:

With a focus to production of meaning in discourse and social life, the examination that follows will seek to explain the concept of ideology from  Althusser`s conception. This conception is into work Ideology and Ideological State Apparatus. It is appropriate to expose that we understand the concept of ideology as a relevant phenomenon able to keep social relationships, and transform them.

KEYWORDS: Ideology, Ideological Apparatus, Social Relations.

 

 

Com o intuito de explorar o conceito de ideologia em diferentes dimensões, abordaremos tal conceito partindo dos estudos efetuados por Louis Althusser na obra Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. No início dessa obra, Althusser (1970) discute primeiramente sobre fatores relevantes que se relacionam com sua descrição a respeito da ideologia. Entre outros, alguns desses fatores são: A reprodução das condições da produção, reprodução da força de trabalho, a infra-estrutura e a superestrutura. Em vista desse procedimento adotado por Althusser, inicia-se daqui adiante uma exposição que se debruça primeiramente no campo da reprodução das condições de produção.

Antes de se ater em questões mais internas da ideologia, Althusser (1970) expõe que deve haver uma renovação dos meios de produção para que seja possível a produção. Disso, tem-se que a condição necessária para a produção é a reprodução das condições da produção[1]. E pensando na reprodução das condições da produção, o autor expõe que existem evidências ideológicas de tipo empirista (do ponto de vista da prática produtiva[2]) que estão introjetadas na nossa consciência de forma que é quase impossível enxergarmos toda a extensão do processo de reprodução.

 Considerando que toda formação social, segundo o autor, provém de um modo de produção dominante, pode-se dizer que o processo de produção coloca em ação forças produtivas existentes em relações de produção determinadas. Assim, para poder existir, toda formação social tem de reproduzir as condições de sua produção, somente dessa maneira é possível haver sua produção. Por isso, qualquer formação social deve reproduzir as forças produtivas [3] e as relações de produção existentes. Com foco em uma acepção marxista, Althusser diz que não há produção possível sem que exista asseguradamente a reprodução das condições materiais da produção, isto é, a reprodução dos meios de produção.

Uma ilustração dessa assertiva pode ser observada da seguinte forma: tanto um economista como um capitalista sabem que tempo a tempo é necessário prever o que tem de ser substituído e também o que se gasta e se usa em uma produção: instalações, matéria prima, instrumento de produção (máquinas) etc., assim qualquer economista ou capitalista exprime o ponto de vista da empresa. Diante dessa visão marxista, tem-se que não é em torno da empresa que a reprodução das condições materiais da produção deve ser pensada. Isso pelo motivo de que não é na empresa que a reprodução das condições materiais (matéria prima, ferramentas etc.) existe em realidade. Essa é uma questão que propicia notar a necessidade da reprodução em qualquer esfera produtiva da sociedade. Relacionada a essa questão, Althusser faz uma exemplificação:

[...] o sr. X, capitalista que na sua fiação produz tecidos de lã, deve ‘reproduzir’ a sua matéria prima, as suas máquinas, etc. Ora não é ele que as produz para a sua produção – mas outros capitalistas: um grande criador de carneiros australiano, o sr. Y..., o dono de uma grande metalurgia, o sr. Z..., etc, etc..., os quais devem por sua vez, para produzir estes produtos que condicionam a reprodução das  condições da produção do sr. X..., reproduzir as condições da sua própria produção e assim indefinidamente (ALTHUSSER, 1970, p. 14).

Com este exemplo, o autor mostra que é a produção de um capitalista que vai dar condições para que exista a produção de outro capitalista e isso ocorre de forma infinita. Sempre há alguém que necessita da produção de um outro, isto quer dizer que a existência da produção ocorre por intermédio de uma reprodução.

Vista por outro ângulo, a reprodução também ocorre em termos de mão de obra. Nesse caso, ela é tida por reprodução da força de trabalho. Tornando a se basear nos acontecimentos de uma empresa, o autor revela que a reprodução da força de trabalho está em um campo abstrato que acontece de forma essencial fora da empresa, mas de certa maneira também ocorre na empresa, isso no sentido de que a empresa paga salário ao trabalhador. Porém, não basta dar à força de trabalho apenas as condições materiais de sua reprodução (esse meio material que é o salário que propicia ao assalariado o local para morar, a alimentação, a educação dos filhos etc.), pois essa força de trabalho tem de ser diversificada, o que implica condições também diversificadas. 

O que deve ser observado com relação à reprodução da força de trabalho é que essa reprodução deve ser ‘competente’, ou seja, apta a entrar em ação no complexo sistema do processo de produção e para que isso ocorra, as forças produtivas têm de possuir qualificação diversificada em conformidade com as exigências da separação técnica e social do trabalho nos seus diversos postos e empregos. Portanto, no regime capitalista, essa qualificação diversificada deve ser reproduzida e assegurada não com aprendizagem na própria produção, mas fora dessa produção por meio de um sistema escolar capitalista, por meio de instituições e por outras instâncias. 

Observando o papel do sistema escolar capitalista, segundo o autor, a escola é o lugar onde se aprende a ler, a escrever e a contar e nela ainda se ensina elementos de cultura científica ou literária que são utilizáveis em diferentes locais da produção. Na escola, aprende-se, então, saberes práticos, ela ensina não só técnicas e conhecimentos, mas ensina também as regras dos bons costumes, ou seja, o comportamento que todo o indivíduo da divisão do trabalho deve compreender e aprender de acordo com a posição que se destina a ele. Tais costumes estão relacionados com as regras da moral, da consciência profissional e cívica. Dito de outra forma, esses costumes equivalem às regras de respeito pela divisão técnica e social do trabalho. Elas são regras de respeito também em função da ordem estabelecida pela dominação de classe. Além do mais, a escola ensina também a falar bem e a redigir bem, o que para os capitalistas tem o significado de “mandar bem” que corresponde a falar bem aos operários.

Levando em conta o papel do sistema escolar capitalista em relação à força de trabalho, Althusser diz que a reprodução da força de trabalho requer não apenas uma reprodução da qualificação dessa força, mas simultaneamente uma reprodução da submissão dessa força de trabalho às ordens estabelecidas pelo Estado. Essa submissão significa submissão à ideologia dominante por parte dos operários. Ainda em termos de reprodução, é preciso haver uma reprodução da capacidade de manejar bem a ideologia dominante a favor dos indivíduos da exploração e da repressão de forma que eles possam garantir o seu domínio de classe dominante também pela palavra. Em síntese, a escola como outras instituições de Estado (igreja, exército) ensina saberes práticos nos modelos que garantem a sujeição à ideologia dominante ou o manejo da prática dessa ideologia. Logo, os indivíduos devem estar de um meio ou de outro inscritos nessa ideologia para desempenharem as suas tarefas que podem ser a de explorados ou de exploradores ou de auxiliares da exploração.

Disso, podemos dizer que a reprodução da força de trabalho está condicionada não apenas a uma qualificação diversificada, mas também a uma reprodução da sua submissão à ideologia dominante e à prática dessa ideologia.

Até este ponto, foi possível destacar a questão da reprodução das forças produtivas que se deu pela explicação dos meios de produção e da reprodução da força de trabalho. Contudo, Althusser destaca que uma outra questão relevante é a da reprodução das relações de produção, mas antes de se focar nessas relações de produção, o autor deslinda o conceito de sociedade, segundo um ponto de vista marxista, começando pela exposição de que a estrutura de qualquer sociedade é entendida como a realização de níveis articulados: um deles é a infra-estrutura tida como base econômica das forças produtivas e das relações de produção, o outro é a superestrutura que se desdobra em dois níveis: o político-jurídico (relacionado ao direito e ao Estado) e o ideológico que são diferentes ideologias (religiosa, moral, política, jurídica etc.).

Na relação entre infra-estrutura e superestrutura, a infra-estrutura é como a base de um edifício e em cima dessa base estão os andares correspondentes à superestrutura. Assim, em um espaço definido estão os lugares ocupados por uma ou outra realidade: a econômica (infra-estrutura) está em baixo e a superestrutura está por cima. Nessa representação da estrutura de qualquer sociedade, segundo Althusser, há o equivoco de que tal representação é metafórica, ou seja, é abstrata e descritiva. No entanto, é essa representação descritiva que abre caminho para que haja observações além dela. E é se projetando além dela que o autor estuda o Estado, o Direito e a Ideologia.    

O Estado na ótica marxista é, para Althusser, como uma máquina de repressão que dá para as classes dominantes a possibilidade de garantirem as suas dominações sobre a classe operária que fica submetida a uma exploração capitalista. Nessa situação, o Estado é tido como aparelho de Estado que é composto a partir de exigências da prática jurídica (relativo ao Direito), ou seja, é composto pela polícia, os tribunais, as prisões e também pelo exército que pode intervir diretamente como força repressiva de apoio para a polícia e seus corpos auxiliares. Acima dessa prática jurídica há o chefe de estado, o governo e a administração. Com isso, o aparelho de Estado define o estado como força de execução e intervenção repressiva. Essa é a representação clássica do Estado  como sendo o aparelho de Estado.

Contudo, para o autor, o estado só tem sentido em razão do poder de Estado e é por causa disso que todas as lutas entre as classes giram em torno do Estado, giram em torno do poder de Estado e da conservação desse poder por parte de uma classe, de uma aliança de classes ou de frações de classes. Segundo o autor, o aparelho de Estado se coloca acima de acontecimentos que afetam a detenção do poder de Estado, ou seja, mesmo passando por quedas, golpes de Estado ou revoluções, a estrutura do Estado pode permanecer inatingível, “intacta”:

[...] Mesmo após uma revolução social como a de 1917, uma grande parte do aparelho de Estado permaneceu intacta após a tomada do poder de Estado pela aliança do proletariado e dos camponeses pobres [...] (ALTHUSSER, 1970, p. 37).

Segundo Althusser, as lutas entre as classes visam ao poder do Estado, isso em função dos objetivos que possuem as classes. Ainda com relação ao Estado, o autor expõe que deve ser realizada uma distinção entre aparelhos de Estado e aparelhos ideológicos de Estado que é uma outra realidade que se situa ao lado do aparelho do Estado e que não se confunde com tal aparelho. Efetuando uma distinção, o autor coloca que o aparelho de Estado corresponde ao governo, à administração, ao exército, à policia, aos tribunais, às prisões e a outros. Devido a essa composição, o aparelho de Estado acaba sendo entendido como aparelho repressivo de Estado.

Por outro lado, os aparelhos ideológicos de Estado correspondem a um determinado número de realidades sob a forma de instituições especializadas e distintas, classificadas da seguinte maneira: aparelho ideológico religioso (sistema de igreja), aparelho ideológico escolar (sistema de escolas públicas e particulares), aparelho ideológico familiar, aparelho ideológico jurídico, aparelho ideológico político (sistema político de diferentes partidos), aparelho ideológico sindical, aparelho ideológico da informação (o rádio, a televisão etc.), aparelho ideológico cultural (as artes, as letras etc.). Os aparelhos repressivos de Estado são totalmente de domínio público enquanto que a maior parte dos aparelhos ideológicos de Estado é de domínio privado. No caso dos privados, estão as igrejas, partidos, família, jornais, empresas culturais etc..

A respeito do Direito, ele pertence reciprocamente ao sistema dos aparelhos ideológicos de Estado e dos aparelhos repressivos de Estado. Estes repressivos funcionam pela violência e os aparelhos ideológicos funcionam pela ideologia. Fato este que permite aos aparelhos ideológicos um funcionamento tanto em instituições privadas como em instituições públicas. Contudo, o autor ressalta que não há aparelho totalmente repressivo nem totalmente ideológico. Quaisquer que sejam os aparelhos, eles funcionam reciprocamente pela violência (repressão física ou não) e pela ideologia.

O que se pontua na distinção dos aparelhos é o fato de que os aparelhos repressivos funcionam com maior foco na repressão, mas também funcionam de forma secundária pela ideologia. O aparelho ideológico funciona enfaticamente pela ideologia, mas também funciona de forma secundária pela repressão, mesmo que essa repressão seja dissimulada, ou seja, simbólica. Perante essas evidências, conclui-se que não há aparelho de Estado puramente repressivo nem puramente ideológico: 

[...] os Aparelhos Ideológicos de Estado funcionam de um modo massivamente prevalente pela ideologia, embora funcionando secundariamente pela repressão, mesmo que no limite, mas apenas no limite, esta seja bastante atenuada, dissimulada ou até simbólica. (Não há aparelho puramente ideológico). Assim a escola e as Igrejas ‘educam’ por métodos apropriados de sanções, de exclusões, de selecção, etc., não só os seus oficiantes, mas as suas ovelhas. [...] (ALTHUSSER, 1970, p. 47).

Os aparelhos ideológicos funcionam pela ideologia que apesar de ter contradições é sempre unificada na ideologia dominante que pertence à classe dominante. Assim, a princípio, a classe dominante possui consigo o poder de Estado, dispondo, portanto, do aparelho repressivo de Estado e ao mesmo tempo dispondo dos aparelhos ideológicos de Estado. Segundo o autor, nenhuma classe pode de forma durável deter o poder de Estado sem que exerça mutuamente a sua prepotência no e sobre o aparelho ideológico de Estado. Nessa perspectiva, o local e o alvo da luta entre as classes acabam sendo os aparelhos ideológicos de Estado. O fato interessante é que as classes dominantes não dominam facilmente os aparelhos ideológicos de estado assim como dominam o aparelho repressivo, porém essas classes podem conservar fortes posições nos aparelhos ideológicos, mas por outro lado as classes exploradas também podem encontrar nos aparelhos ideológicos os meios e as ocasiões para se expressarem.

 Após toda essa discussão sobre os aparelhos ideológicos e os repressivos de Estado, Althusser retoma a questão da reprodução das relações de produção e expõe que essa reprodução das relações de produção é em maior parte garantida pela superestrutura ideológica e jurídico-política. Isso porque as relações de produção são reproduzidas pela materialidade do processo de produção e de circulação, estando também presentes, nesse mesmo processo, as relações ideológicas. Representando essas reproduções das relações de produção, o autor expõe que o relevante papel do aparelho repressivo de Estado é garantir pela força física ou não as condições políticas da reprodução das relações de produção que consistem em relações de exploração.

O aparelho de Estado reproduz também a si próprio, mas também assegura pela repressão as condições políticas do exercício dos aparelhos ideológicos de Estado. Estes fatos são que asseguram a própria reprodução das relações de produção e é no aparelho repressivo de Estado que está a maior parte do funcionamento da ideologia dominante. É por meio dessa ideologia que se assegura a harmonia entre aparelhos repressivos de Estado e aparelhos ideológicos públicos e privados.

Após ter revelado as diferenças entre os aparelhos de Estado e ter expressado que o aparelho ideológico de Estado funciona de forma enfática pela ideologia, foi que Althusser se remeteu a uma abordagem do conceito de ideologia. Primeiramente, o autor manifestou que a ideologia foi concebida como “teoria (genética) das ideias”. (Cabanis, Destutt e Tracy apud Althusser, 1970, p. 69). Contudo para Marx apud Althusser (1970, p. 69), o sentido do termo ideologia passou a ser “o sistema das idéias e das representações que domina o espírito de um homem ou de um grupo social”. Para Althusser, um conceito de ideologia de certa forma recai na história das formações sociais que engloba os modos de produção e a história das lutas de classes. Em sua abordagem sobre a ideologia, o autor a compara com o inconsciente Freudiano:

[...] na sua forma ao longo da história, retomarei palavra por palavra, a expressão de Freud e direi: a ideologia é eterna como o inconsciente. E acrescentarei que esta aproximação me parece teoricamente justificada pelo facto de que a eternidade do inconsciente tem uma certa relação com a eternidade da ideologia em geral. [...] (ALTHUSSER, 1970, p. 75).

Em seguida, o autor afirma que a ideologia é uma representação imaginária dos indivíduos com as suas condições reais de existência e assim a ideologia pode ser concebida como concepção do mundo (ideologia moral, ideologia política etc.), mas que, de um ponto de vista crítico, não corresponde com a realidade. Daí, a ideologia coincide com uma ilusão que faz alusão à realidade.

[...] embora admitindo que elas não correspondem à realidade, portanto que constituem uma ilusão, admite-se que  fazem alusão à realidade, e que basta ‘interpretá-las’ para reencontrar, sob a sua representação imaginária do mundo, a própria realidade desse mundo (ideologia = ilusão/ alusão). (ALTHUSSER, 1970, p. 78). 

 Na ideologia os homens têm a imagem das suas condições reais de existência, porém o problema, nessa acepção, é saber por que motivo os homens necessitam dessa transposição imaginária para representarem suas condições reais de existência. Este problema é exposto com uma explicativa do autor, relativa ao fato de que alguns padres e déspotas do séc. XVIII assentaram a sua dominação e exploração do povo em uma representação ludibriosa do mundo que inventaram para persuadir os outros homens, dominando a imaginação desses homens.

Outra resposta dada pelo autor para o fato dos homens necessitarem de representar as suas condições reais de existências é o fato de que existe uma alienação material que reina nas condições de existência dos próprios homens. O autor afirma ainda que na ideologia o que é representado não é o sistema das reais relações que regem a existência dos indivíduos, mas uma relação imaginária desses indivíduos com as reais relações em que eles vivem. Além da parte imaginária, o autor manifesta que na ideologia há uma existência material:

[...] vejamos o que se passa nos ‘indivíduos’ que vivem na ideologia, isto é, numa representação do mundo determinada (religiosa, moral, etc.), cuja deformação imaginária depende da relação imaginária destes indivíduos com as suas condições de existência, isto é, em última instância, com as relações de produção e de classe (ideologia = relação imaginária com relações reais). Diremos que esta relação imaginária é em si mesma dotada de uma existência material. (ALTHUSSER, 1970, p. 85).   

A existência material diz respeito ao fato de que uma ideologia sempre existe em um aparelho (Igreja, escola, etc) e também nas práticas[4] realizadas nesse aparelho. Assim, o autor assinala que os indivíduos vivem na ideologia, pois é por meio desses indivíduos que as práticas se realizam tanto dentro dos aparelhos repressivos como nos aparelhos ideológicos.

[...] o indivíduo em questão conduz-se desta ou daquela maneira, adopta este ou aquele comportamento prático e, o que é mais, participa em certas práticas reguladas, que são as do aparelho ideológico de que ‘dependem’ as ideias que enquanto sujeito escolheu livremente, conscientemente. Se crê em Deus, vai à Igreja para assistir à Missa, ajoelha-se, reza, confessa-se [...] (ALTHUSSER, 1970, p. 86).

Com um olhar voltado às práticas dos indivíduos, o autor manifesta que todo sujeito que crê nas ideias que sua consciência lhe coloca e que livremente aceita tais ideias deve agir segundo essas suas ideias. Porém se tal sujeito não age em acordo com suas ideias, é porque “as coisas não estão bem” (ALTHUSSER, 1970, p. 87). Nessa acepção, uma não concordância entre as ações e as ideias de um sujeito resulta em deformação:

[...] se não faz o que deveria fazer em função daquilo em que acredita, é porque faz outra coisa, o que, sempre em função do mesmo esquema idealista, dá a entender que tem ideias diferentes das que proclama, e que age segundo essas outras ideias, como homem quer ‘inconsequente’ (‘ninguém é mal voluntariamente’), quer cínico ou perverso. Em qualquer dos casos, a ideologia da ideologia reconhece portanto, apesar de sua deformação imaginária, que as ‘ideias’ de um sujeito humano existem nos seus actos, ou devem existir nos seus actos, e se isto não acontece, empresta-lhe outras ideias correspondentes aos atos (mesmo perversos) que ele realiza. [...] (ALTHUSSER, 1970, p. 87).

Os atos de um sujeito, para o autor, estão inseridos em práticas que, por sua vez, são regulamentadas por rituais de um determinado aparelho ideológico. Portanto, práticas e rituais pertencem à existência material de um aparelho ideológico. Nessa linha de raciocínio, a ideologia existe em um aparelho ideológico material, ditando práticas materiais, regidas por um ritual material. Tais práticas existem nos atos materiais de um sujeito que age conscientemente conforme sua crença. É em vista desse processo que Althusser (1970, p. 91) faz as seguintes afirmações: “1 - Só existe prática através e sob uma ideologia; 2 – Só existe ideologia através do sujeito e para sujeitos”.     

A relação entre sujeito e ideologia é algo que podemos averiguar também no trabalho de Orlandi (2005), referente a uma especificação discursiva de ideologia. Segundo essa autora, não há sentido sem interpretação e esse fato atesta a presença da ideologia. Isso acontece porque diante de qualquer objeto simbólico o homem é levado a praticar um movimento de interpretação: “[...] diante de qualquer objeto simbólico o homem é levado a interpretar, colocando-se diante da questão: o que isto quer dizer? Nesse movimento da interpretação o sentido aparece-nos como evidência, como se ele estivesse já sempre lá”. (ORLANDI, 2005, p. 46).

Reparando a constituição de sujeitos e sentidos no discurso, a autora diz que a ideologia coloca o homem em uma relação imaginária com as condições materiais de existência, as quais pertencem ao próprio homem. Partindo disso, a ideologia se apresenta como um mecanismo de uma necessária relação entre mundo e linguagem. Assim, enquanto prática significante a ideologia se faz presente como efeito da relação indispensável do sujeito com a historia e com a língua para que dessa relação surja o sentido. O sentido, então, é uma relação definida do sujeito, afetado pela língua, com a história:

[...] O sentido é assim uma relação determinada do sujeito – afetado pela língua – com a história. É o gesto de interpretação que realiza essa relação do sujeito com a língua, com a história, com os sentidos. Esta é a marca da subjetivação e, ao mesmo tempo, o traço da relação da língua com a exterioridade: não há discurso sem sujeito. E não há sujeito sem ideologia [...] (ORLANDI, 2005, p. 47).

Perante todas as exposições que até aqui se sucederam acerca do  conceito de ideologia, parece-nos interessante ressaltar alguns pontos que se tangenciam a respeito da ideologia tanto nas exposições de Althusser e de Orlandi quanto nas exposições de Miotello, que se seguem.

As exposições de Miotelo (2010) são apoiadas na concepção Bakhtiniana de ideologia. Tal autor trabalha com exemplificações que nos parecem adequadas à realidade contemporânea. Contudo, de modo semelhante ao de Althusser, esse autor também parte do conceito marxista de ideologia para desencadear sua exposição. Assim, com base no marxismo, Miotello debruçasse sobre a ideologia entendida como uma “falsa consciência”, isto é, como ludibriação e ocultamento da realidade social.

Essa ideologia ficou marcada como uma não-percepção da existência de desacordos entre ideias, e com isso as forças dominantes promoviam suas ações de domínio nos seus espaços sociais para mantê-los da forma como se encontravam. Nessa forma marxista de conceber a ideologia, observa-se um importante ponto que também foi levantado na abordagem de Althusser. Trata-se de um dado que podemos demonstrar do seguinte modo: com o intuito de saber o motivo pelo qual os homens necessitavam de uma transposição imaginária para representarem suas reais condições de existência, Althusser disse que no séc. XVIII alguns déspotas e padres firmaram suas práticas de dominação e de exploração do povo em uma representação enganosa do mundo, produzida para dominar a imaginação de outros homens.

Essa abordagem apresenta-nos o ponto de vista da ideologia tida como a “falsa consciência” que Miotello expõe sob a forma de ocultamento da realidade social. Esse dado parece-nos relevante porque foi a partir dele que Althusser desencadeou sua exposição sobre a ideologia. E é também partindo desse mesmo princípio que a concepção marxista de ideologia foi desaprovada por outros estudiosos como Bakhtin e Voloshinov apud Miotello (2010).

No entanto, Bakhtin apud Miotello (2010) se apropriou de parte da concepção ideológica marxista para efetuar uma nova visão de ideologia. A qual pôde ser evidenciada sob a forma de conjuntos ideológicos em relação dialética: em uma face estava a ideologia dominante que, segundo Miotello, era considerada ideologia oficial, como conteúdo ou estrutura, relativamente estável; na outra face estava a ideologia cotidiana que, como acontecimento, era relativamente instável. As duas ideologias formavam o contexto ideológico unificado e focado no processo global de reprodução e produção social. Essa ideologia do cotidiano era, segundo o autor, compreendida como a que se constituía em encontros casuais, gerada em sua aproximação social com as condições de produção e reprodução da vida.

Com um olhar voltado à relação dialética observada na visão Bakhtiniana de ideologia, podemos apontar que tal relação também se apresenta em uma pertinente descrição de Althusser e coincide com a explicitação de que as classes dominantes podem conservar fortes posições nos aparelhos ideológicos, mas não domina-los como dominam os repressivos, porque são nos aparelhos ideológicos que as classes exploradas podem achar meios e ocasiões para se expressarem.

Com essa afirmação, é possível dizer que são nos aparelhos ideológicos que há maior possibilidade de diversas ideologias se encontrarem em relação dialética, visto que são neles que as classes exploradas conseguem meios de expressão e atentando para o fato de que qualquer classe social se expressa por meio da linguagem que, segundo Orlandi, só produz sentido na sua relação com o mundo pelo funcionamento da ideologia, é possível dizer que Althusser na sua concepção de ideologia também leva em conta o fato de que as ideologias estão em relacionamento dialético, pois ele aponta que em termos de ideologia são nos aparelhos ideológicos que as lutas de classes se realizam.

Apoiado na ótica dialética, Miotello (2010, p. 169) faz a seguinte exemplificação:

[...] De um lado é possível, por exemplo, ouvir alguém dizer em um ponto de ônibus: ‘Cara, estou desempregado há seis meses’; de outro, os meios de comunicação afirmando: ‘Aprovação do presidente cai mais dez pontos’ ou ‘ Todos os indicadores econômicos apresentam melhora no semestre’; e compreender essas afirmações em relação dialética [...] (MIOTELLO, 2010, p. 169).

O que o autor propõe é que não se deve observar afirmações como as exemplificadas com foco na causa[5] delas, mas sim de forma dialética[6].    

As relações dialéticas se fazem presentes não apenas no jogo de estabilidade e instabilidade de ideias na visão Bakhtiniana de ideologia, mas também se encontram, segundo Miotello, na concepção de signo formulada nos estudos de Bakhtin e seu Círculo. Tais estudos tiveram como ponto de partida a união entre as abordagens examinadoras da linguagem e o estudo da ideologia:

[...] Por ideologia entendemos todo o conjunto dos reflexos e das interpretações da realidade social e natural que tem lugar no cérebro do homem e se expressa por meio de palavras [...] ou outras formas sígnicas. [...] (VOLOSHINOV apud MIOTELLO, 2010, p. 169).

Partindo dessa menção que evidencia o fato de que a ideologia está no homem e que é expressa por palavras e signos, Miotelo afirma que todo signo representa a realidade em referência a um local valorativo, assim o signo ganha um ‘ponto de vista’, manifestando a realidade como falsa ou verdadeira, ruim ou boa, negativa ou positiva, esse mecanismo é que faz o signo coincidir com o domínio da ideologia.

[...] Como exemplo do que aqui se está discutido, penso na luta ideológica que vem se dando na sociedade brasileira para estabilizar o sentido de ‘casamento’. Basta olhar para as múltiplas composições familiares, parta os vários tipos possíveis de casamentos, para as discussões sem fim em torno do ‘casamento de pessoas do mesmo sexo’ para entender que estamos diante de uma luta declarada de sentidos; a ideologia oficial buscando construir um sentido relativamente estável para ‘casamento’ (união entre duas pessoas de sexo diferente), enquanto os estratos inferiores da ideologia produzem uma multidão de sentidos e realidades. [...] (MIOTELLO, 2010, p. 174). 

Observando o sentido de casamento[7] sendo mantido e ao mesmo tempo sendo refeito ideologicamente, o autor concebe todo signo como signo ideológico que se constitui e se materializa na comunicação que ocorre de forma incessante nos grupos organizados acerca de todas as esferas da atividade humana. A comunicação, por sua vez, se dá na interação verbal que põe a língua como lugar evidente e completo da materialização do fenômeno ideológico.

A constituição da ideologia, segundo o autor, tem, então, como ponto de partida a comunicação na vida cotidiana. Comunicação que tem vínculo direto com o processo de produção material e, por esse ângulo, o autor nos leva a pensar nas diversas situações de comunicação do dia a dia para notarmos que os signos (no discurso, as palavras, os objetos...) estão sempre em desenvolvimento, tornando-se parte da unidade da consciência verbalmente constituída. E Ainda nos propondo visualizar que o signo se faz presente necessariamente em todas as relações sociais, o autor diz que em cada uma dessas relações os signos se enchem de sentidos próprios e se produzem a serviço de interesses de grupos sociais que demonstram contradições entre suas classes e disso vê-se que as ideologias respondem a diversos interesses.

 Diante de todas essas abordagens acerca da ideologia e apoiados nos dizeres de Orlandi (2005, p. 47): “O sentido é assim uma relação determinada do sujeito afetado pela língua – com a história [...] E não há sujeito sem ideologia”, podemos redizer que a ideologia está presente em todos os lugares da atividade humana, pois ela faz parte do homem, da língua e da história.  

 

REFERÊNCIAS

 

 

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Lisboa: Presença, 1970.

AMOSSY, Ruth. (org.) Imagens de Si no Discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005.

ARANHA, M. L.; MARTINS, M. H. Pires. Temas de Filosofia. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1998.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1979.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio século XXI Escolar: O minidicionário da língua portuguesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. O Texto e a Construção Dos Sentidos. São Paulo: Contexto, 2005.

LAPA, Manoel Rodrigues. Estilística Da Língua Portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

LIMA, Heitor Ferreira. História Política, Econômica e Industrial do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1970.

LIMA, Maria Cecília. Leitura e Escrita como Práticas Discursivas: Ensino, Discurso e Mudança da Prática Discursiva e Social. Pelotas: Educat, 2001.

MACHADO, Irene. Gêneros Discursivos. In: BETH, Brait. (org) Conceitos-Chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2010.

MACHADO, José Pedro. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Lisboa: Confluência, 1952.

MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso. Campinas, SP: Pontes, 1997.

MAINGUENEAU, Dominique. Termos-Chave Da Análise Do Discurso. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

MIOTELLO, Valdemir.  Ideologia. In: BETH, Brait. (org) Conceitos-Chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2010.

NASCENTES, Antenor. Dicionário Etimológico Resumido. Porto Alegre: Instituto Nacional do Livro; Ministério da Educação e Cultura, 1966.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise de Discurso: Princípios e Procedimentos. Campinas, SP.: Pntes, 2005.

RIOS, Dermival Ribeiro. Minidicionário Escolar da Língua Portuguesa. São Paulo: DCL, 2008.



[1]  O termo condições de produção diz respeito às condições de produção da vida social em termos de aprendizados, de ocupações em postos de trabalho, de substâncias materiais para a construção de produtos industrializados etc. 

[2]  O termo em questão se refere ao processo de produção.

[3]  As forças produtivas se referem à relação das reproduções das condições de produção com as reproduções das forças de trabalho (“mão de obra diversificada”).

[4]  Um exemplo de prática seria o fato de que em uma igreja o individuo ajoelha, reza, confessa-se etc.

[5]         Perante a concepção de Miotello (2010), a visão de causa pode nos remeter a um tratamento da ideologia como “falsa consciência”.  

[6]      Segundo o autor, uma visão dialética não deixa de levar em conta as diversas relações que ocorrem em razão do processo global de produção e reprodução social.

[7]          No caso, trata-se de casamento enquanto signo linguístico.