35 ANOS NO SOUTO DA CASA DE UM HOMEM BOM

Estou certo que não haverá aqui, entre todos nós que nos reunimos hoje para prestar uma justíssima homenagem ao padre António Genro da Silva, alguém que não tenha na memória um acontecimento, uma história, uma vivência que nos pudesse contar, envolvendo-o com mais ou menos vivacidade. As minhas lembranças, por exemplo, da própria infância, despontam praticamente já com ele. Estamos a comemorar um múnus sacerdotal de 35 anos, na nossa terra. E eu falei na hipótese de uma história. Mas com uma duração destas, provavelmente, não será só uma, mas muitas histórias.

É seguro que o próprio tempo ajuda a clarificar a memória. Os factos longínquos, habitualmente, quando são avivados com empenho, mesmo que ainda tocados pelo coração das paixões, parecem mais verdadeiros à distância! É possível, hoje, limpar nebulosidades que marcaram atitudes antigas e que então nos pareceram controversas ou penosas. Mas não é o caso. O que quero é contar-vos um acontecimento recente, de há pouco mais de um ano, que ajuda a definir o vulto do amigo que homenageamos.

Numa manhã chuvosa do inverno, o padre Genro apareceu no Hospital do Fundão, com aquela placidez característica que lhe conhecemo, trazendo um caso em mãos para resolver. Contou-me então que um homem fora encontrado morto, quando pela manhã funcionárias do Centro de Dia iam arrumar o quarto. A pessoa não era do Souto da Casa, mas o padre Genro havia-lhe dado guarida, através do Centro, proporcionando-lhe também dormida, em cama limpa debaixo do abrigo dum tecto (“clandestino” considerarão alguns, já que o Centro não tem ainda este recurso tão importante e que urge concretizar!). Tratava-se de um homem idoso, doente, oriundo das bandas da Covilhã, sem ninguém e provavelmente sem coisa nenhuma, amputado nos dois ante-pés, por sofrer de doença circulatória grave, mas que ali vivia, com algum conforto, entre as refeições no Centro e o refúgio do quarto, na antiga casa paroquial, onde dormia e certamente se apaziguava da dureza da vida. Não estava pois abandonado!

Mas uma morte assim, na solidão, exige esclarecimento. Habitualmente, o entendimento faz-se, para além do relato de gente séria que testemunhou o último tempo da vida do defunto, com a certidão de óbito do médico que conhece a causa desse acontecimento final. Quantas vezes, no entanto, não morre o idoso sozinho, deixando a família, que vive ao longe, com a angústia reforçada pela burocracia, que às vezes é bem desumana, da regularização destes casos!?

Eu próprio havia tratado o agora defunto. Este havia sido operado no Hospital e pude rever o seu processo. Era, seguramente, uma morte de contornos naturais, garantidos à plenitude pela idoneidade do testemunho do padre Genro. Tive então oportunidade de certificar o óbito, in loco, mas o documento foi depois devassado a incitamento de “espias”, pretensos guardiães de uma ordem em que o humano pouco vale. É um outro lado da história dos homens, mas adiante!

O quarto ficava num local de memórias. Foi com grande emoção que revi, quando lá chegámos, a sala da biblioteca da casa paroquial, agora despida, mas limpa e onde, num catre, com lençóis branquíssimos, arrumado a um canto, jazia o cadáver. Muito novo me recordo de ali ser confrontado com os livros do padre Genro que ele nos anunciava com tanto entusiasmo, sempre que o visitávamos. Os livros pertenciam a um dos seus interesses predilectos. Com recordo a leitura emocionante do Quo Vadis, que me emprestou um dia, muito jovem? Como me lembro ainda do deslumbramento das imagens coloridas de A Dios por la Ciencia, o pavão real “de cem mil rosas vestido” e as orquídeas tropicais, demonstrando a glória da Criação? Tenho que falar também dessa obra profunda e finíssima, Ciencia Moderna e Filosofia, do jesuita José Mª Riaza, que me foi oferecida ali, com estímulo, pelo seu irmão, o padre João Genro. Este saudoso amigo, que gosto e quero recordar, acabou os seus dias no quarto contíguo. Tivemos por ali tão longas e apaixonantes conversas que aumentaram durante o seu período de “reclusão” domiciliária por causa da sua doença fatal. Guardo este livro-sabedoria, como memória grata de um grande e nobre amigo, com a distinção de ser preciosidade entre os meus livros!

Revivi algumas destas memórias associadas a um espaço que, embora presentemente vazio de pessoas tão gratas e dos objectos tão cheios de ressonância, se tinha transfigurado noutras dimensões, talvez ainda mais profundas e, porque não, mais vivas. O padre António Genro da Silva havia conseguido humanizar ainda mais a antiga sala da biblioteca, amparando aí, no limite, um homem despido socialmente de tudo, quase mesmo do nome, mas que era um homem! Solução de recurso, certamente, mas que, nem por isso ou até por isso, deixava de ser tão sugestiva da grandeza humana do nosso antigo pároco, que hoje aqui temos entre nós, com muita alegria. O Centro Paroquial, que fundou em instalações e terrenos doados por ele e pela sua família à nossa terra, é a materialização definitiva desta nobre dimensão e cujo altíssimo valor todos recohecemos. A fundação do Centro é um dos factos mais marcantes da história recente do Souto da Casa, ao qual devemos associar a sua irmã, D. Teresa de Jesus, também aqui presente. A sua dedicação aos nossos conterrâneos doentes, velhos e sozinhos, que usufruiram dos seus cuidados feitos com tanta competência e desvelo, muito contribuiu para esta realidade magnífica.

Não podia calar faceta tão distinta do padre Genro. Discreto, avesso a vanglórias ou a elogios (quão difícil foi conseguir a sua adesão a esta homenagem singela, o padre Américo que o diga!), fez uma boa obra no Souto da Casa. Foi um seu grande benfeitor.

Para além disto, tivemo-lo connosco 35 anos, tempo largo para a convivência. Também nos actos solenes ou simples da vida e da morte a sua presença esteve profundamente ligada a muitos habitantes do Souto da Casa.

Podia também ter falado na reconstrução e ampliação da Igreja Paroquial, uma das suas outras obras maiores na nossa terra. Preferi, no entanto, realçar esta faceta humana do pároco revelada tão bem no caso do homem acolhido, mas que viamos ao mesmo tempo nas suas atitudes do dia-a-dia que honram a autêntica solidariedade.

Bem-haja, padre Genro, em nome de todos, e muita saúde para si.

(Texto lido na homenagem prestada ao Padre António Genro da Silva, após terminar o seu lugar de pároco do Souto da Casa)

Souto da Casa, 10 de Abril de 1994.